RESUMO: Hodiernamente, o governo é obrigado judicialmente a arcar com os mais caros tratamentos para os usuários da saúde pública, pois o ofertado pelo SUS, na maioria das vezes, não atende às demandas requisitadas pela sociedade. Demandas estas que, por vezes, versam sobre moléstias de alta complexidade as quais exigem tratamentos de alto custo. Diante deste panorama, o presente estudo pretende expor o papel do judiciário na efetivação do constitucional direito à saúde, abordando o posicionamento da jurisprudência pátria, a qual tem se manifestado reiteradamente sobre o tema.
Palavras-chave: Direito à saúde. Sistema Único de Saúde. Judicialização. Tratamento de saúde. Artigo 196 da CF/88. Jurisprudência.
1. Prelúdio à análise jurisprudencial da proteção do direito à saúde no ordenamento jurídico brasileiro
A litigiosidade presente na prestação do direito à saúde tem como combustível, em grande parte, a má prestação dos serviços públicos e a ineficiência (ou inexistência) de políticas pública apropriadas. Porém, nem sempre esta afirmação se subsume à realidade, considerando que, de forma reiterada, o poder público tem sido obrigado a despender grandes somas de verba pública no cumprimento de decisões judiciais teratológicas. Destarte, verifica-se que a razão está ora com o jurisdicionado, ora com a Administração Pública, a depender do caso concreto.
Neste contexto, não é possível, em regra, dar azo às afirmações de que o Poder Judiciário faz as vezes de Poder Legislativo, mitigando a discricionariedade que este possui na elaboração da legislação. De outra parte, também não é possível defender que o único poder competente para a busca da concretização do ideal de Justiça seja o Judiciário. De fato, é inequívoco que a função legislativa, bem como, a atuação do Poder Executivo, também constituem meios possíveis para concretizar a Justiça, demonstrando ser mais razoável a integração destes poderes estatais, cada um com suas particularidades.
Ocorre que, em alguns casos, o Poder Judiciário acaba por extrapolar sua função constitucional. Isto ocorre, por exemplo, nas situações em que o poder público é obrigado a custear tratamento puramente experimental no exterior sem que haja qualquer reconhecimento de sua eficácia pelos órgãos nacionais competentes. Assim, as decisões judiciais, que versem neste sentido, deixam de visar a efetivação dos direitos sociais para implementar pretensos direitos individuais custeados com o erário.
Destarte, tem-se que tal panorama chega a causar certo receio posto que, ao atribuir a certo indivíduo um direito individual custeado pelo dinheiro público, o erário passa a ser sobrecarregado, considerando que ocorrerão verdadeiras redistribuições de verbas as quais continham destinações diversas determinadas pelo Legislativo e a serem realizadas pelo Executivo.
E é de se levar em linha de conta que tais incongruências, apesar de bastante gravosas, ocorrem com uma repetibilidade espantosa, nas quais se chega ao absurdo de custear com dinheiro público os tratamentos mais avançados e custosos que a ciência moderna pôde alcançar, ratificando, como dito anteriormente, o erro de implementar questionáveis direitos individuais em detrimento dos direitos sociais. Ressalte-se ainda, que tais incongruências têm se repetido na mesma proporção em que se verifica um aumento da litigiosidade e, por via de consequência, da judicialização.
Com efeito, não podemos olvidar que a conjuntura socioeconômica colaborou para um crescimento vertiginoso das demandas ligadas ao direito à saúde, bem como, o presente quadro de variados incentivos para a litigação e para a interposição de recursos que só se apresentam para reforçar a morosidade e o congestionamento do sistema judicial, em um círculo vicioso e em uma conjuntura em que o requerimento realizado pela via administrativa ainda encontra pouca efetividade para contemplar os anseios da sociedade.
Quanto à este aspecto que consubstancia crucial fator para a morosidade judicial, faz-se necessária uma série de medidas, como, por exemplo, a cooperação interinstitucional com órgãos da Administração Pública ligados às prestações dos serviços de saúde e a elaboração de políticas de redução das demandas judiciais, através da atribuição de efetividade aos processos administrativos ligados à referida área. Em última instância, faz-se salutar o incentivo de que as pessoas passem a recorrer ao Sistema Único de Saúde (SUS) através do meio ordinário, sem que se recorra ao Poder Judiciário, de cujas decisões, mesmo com as mais nobres das intenções, acaba por gerar vistosas discrepâncias.
Corroborando o exposto acima, no que concerne à judicialização do direito à saúde no Brasil, Antônio Maués corrobora com o entendimento exposto. De acordo com este autor:
O modo como se desenvolveu a judicialização do direito à saúde no Brasil permite a determinados indivíduos - muitas vezes das classes mais abastadas - ter acesso a prestações que não são oferecidas para toda a população, prejudicando a equidade e a eficiência do sistema público. Na raiz dessas dificuldades, encontra-se uma compreensão imperfeita dos princípios que regem as políticas de saúde no Brasil, o que faz com que as demandas nessa área sejam tratadas como problemas de justiça comutativa e não de justiça distributiva.[1]
O autor supracitado critica a aplicação da justiça sob sua forma comutativa em detrimento da maneira distributiva, considerando a questão da prestação do direito à saúde. Neste aspecto, conforme defende o doutrinador, há de ser adotada a ideia de igualdade material, que mais se aproxima do conceito de justiça distributiva, cuja finalidade consiste em possibilitar que os indivíduos participem do bem comum através de uma distribuição equitativa, afastando, portanto, a aplicação da justiça sob sua forma comutativa, a qual se relaciona com a igualdade meramente formal.
Reverter este raciocínio implicaria em deturpar o direito à saúde garantido constitucionalmente mediante a previsão do artigo 196, da Constituição Federal de 1988, de cujo teor se infere que tal direito será efetivado por intermédio de políticas sociais e econômicas. Com efeito, seguir tal entendimento contrário ao ora defendido, comprometeria o interesse social resguardado por este multicitado direito, enaltecendo a ideia de um direito à saúde individual que poderia ser usufruído diretamente por cada indivíduo, sem que houvesse a implementação de uma política pública.
Ocorre que tal interpretação deve ser extirpada do meio jurídico, posto que, como é sabido, o judiciário não cria recursos financeiros para a efetivação de determinada decisão judicial ligada ao direito à saúde, este poder simplesmente modifica a destinação de verbas, já limitadas, para a efetivação de tal decisão, apresentando, assim, verdadeiros "planos de saúde" custeados através deste "rapto" de recursos públicos.
Em que se pese o exposto, não se pode confundir as situações em que o judiciário é utilizado como ferramenta para obtenção de tratamentos experimentais de alto custo com as situações em que a política pública é insuficiente ou, até mesmo, inexistente. Demonstra-se, assim, que o magistrado deve decidir com parcimônia, verificando o caso concreto para aferir se o pleito se subsume às situações elencadas anteriormente ou se o ente federado realmente foi desidioso em assegurar o efetivo cumprimento do direito constitucional à saúde.
Isto posto, faz-se mister a análise do entendimento adotado pelo tribunais superiores, concentrando o foco, inicialmente, no Superior Tribunal de Justiça, cuja função uniformizadora da jurisprudência infraconstitucional atribuiu-lhe, por diversas vezes, a tarefa de decidir acerca de casos que versem sobre o direito à saúde.
2. O entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ)
De início, colaciona-se julgado da 1ª Turma do STJ, a qual adotou o entendimento da integral responsabilidade dos entes federados no custeamento de tratamento medicamentoso de alto custo, in verbis:
AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO ESPECIAL. TRATAMENTO MÉDICO NO EXTERIOR. ARTIGO 196 DA CF/88. DIREITO À VIDA E À SAÚDE. DEVER DA UNIÃO. LEGITIMIDADE PASSIVA.
1. O Sistema Único de Saúde-SUS visa a integralidade da assistência à saúde, seja individual ou coletiva, devendo atender aos que dela necessitem em qualquer grau de complexidade, de modo que, restando comprovado o acometimento do indivíduo ou de um grupo por determinada moléstia, necessitando de determinado medicamento para debelá-la, este deve ser fornecido, de modo a atender ao princípio maior, que é a garantia à vida digna.
2. Ação objetivando a condenação da entidade pública ao fornecimento gratuito dos medicamentos necessários ao tratamento de doença grave.
3. O direito à saúde é assegurado a todos e dever do Estado, por isso que legítima a pretensão quando configurada a necessidade do recorrido.
4. A União, o Estado, o Distrito Federal e o Município são partes legítimas para figurar no pólo passivo nas demandas cuja pretensão é o fornecimento de medicamentos imprescindíveis à saúde de pessoa carente, podendo a ação ser proposta em face de quaisquer deles.
Precedentes: REsp 878080 / SC; Segunda Turma; DJ 20.11.2006 p. 296; REsp 772264 / RJ; Segunda Turma; DJ 09.05.2006 p. 207; REsp 656979 / RS, DJ 07.03.2005.
5. Agravo Regimental desprovido.[2]
Como é possível depreender da ementa supratranscrita, a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça entendeu haver a responsabilidade estatal na prestação do direito à saúde, visualizando o fornecimento de medicamentos, ainda que destinado para indivíduo específico, como uma forma de implementação de tal direito. Ressalte-se que, no caso em tela, os doutos Ministros chegaram a tal ilação apesar de tratar-se de doença considerada de caráter individual que requer tratamento longo com o uso de medicamentos de custos elevados.
A questão assume ainda maior relevo, quando se toma em linha de conta o entendimento adotado pela Primeira Turma do STJ, no julgamento do Recurso em Mandado de Segurança nº 24.197-PR, ementado do seguinte modo:
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO LÍQUIDO E CERTO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. HEPATITE C. PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL À SAÚDE, À VIDA E À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. LAUDO EMITIDO POR MÉDICO NÃO CREDENCIADO PELO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS). EXAMES REALIZADOS EM HOSPITAL ESTADUAL. PROTOCOLO CLÍNICO E DIRETRIZES TERAPÊUTICAS DO MINISTÉRIO DA SAÚDE.
1. A ordem constitucional vigente, em seu art. 196, consagra o direito à saúde como dever do Estado, que deverá, por meio de políticas sociais e econômicas, propiciar aos necessitados não "qualquer tratamento", mas o tratamento mais adequado e eficaz, capaz de ofertar ao enfermo maior dignidade e menor sofrimento.
2. Sobreleva notar, ainda, que hoje é patente a idéia de que a Constituição não é ornamental, não se resume a um museu de princípios, não é meramente um ideário; reclama efetividade real de suas normas. Destarte, na aplicação das normas constitucionais, a exegese deve partir dos princípios fundamentais, para os princípios setoriais. E, sob esse ângulo, merece destaque o princípio fundante da República que destina especial proteção a dignidade da pessoa humana.
[...]
8. Recurso Ordinário provido, para conceder a segurança pleiteada na inicial, prejudicado o pedido de efeito suspensivo ao presente recurso (fls. 261/262), em razão do julgamento do mérito recursal e respectivo provimento (fls. 368/372).[3]
Data maxima venia, os termos do julgado exposto vai de encontro ao defendido anteriormente, senão vejamos. Inicialmente, verifica-se que os insignes ministros lastrearam a decisão em comento através de laudo médico emitido por profissional não pertencente aos quadros do Sistema Único de Saúde, fator este o qual, ainda que considerado isoladamente, denotaria certa impossibilidade de ser concedido tratamento medicamentoso custeado pela Administração Pública ao referido paciente impetrante.
Ocorre que vincular o fornecimento gratuito de certos medicamentos à prescrição de médicos não integrantes do Sistema Único de Saúde, poderá prejudicar sobremaneira a organização deste sistema único, uma vez que há um natural desconhecimento dos profissionais particulares quanto às regulamentações SUS, favorecendo, assim, aqueles que possuam a capacidade financeira de recorrer aos médicos particulares, em detrimento daqueles que somente podem se consultar com os profissionais da rede pública. Deste modo, seria justo que àqueles mais desafortunados incidissem todas as regras de organização do SUS, enquanto os mais abastados poderiam contornar tais regras, posto que os profissionais particulares que lhes atendessem não estariam vinculados ao cumprimento de tais regras?
No caso em lume não ocorreu de forma diversa, o enfermo impetrou, originalmente, mandado de segurança com pedido de liminar, visando o fornecimento de medicamentos (Interferon Peguilado e Ribavirina) para o tratamento da doença hepatite crônica do tipo C da qual estava acometido, sendo denegada a segurança, entre outras razões, por ser portador do vírus com genótipo 3a, enquanto a Portaria nº 863/2002 do Ministério da Saúde delimita o fornecimento do medicamento somente para portadores do vírus com genótipos 1. Entretanto, como visto, invocando o tão importante quanto abrangente, argumento da proteção da dignidade da pessoa humana, os ministros daquele egrégio tribunal decidiram por contrariar a portaria em comento, enaltecendo o laudo médico particular em face das normas de organização do SUS.
Ora, o próprio Estado, através do Ministério da Saúde, edita portarias com o intento de estabelecer quais os medicamentos que estão disponíveis para os tratamento das mais variadas moléstias. Deste modo, a Administração Pública deveria atender somente aos tratamentos constantes das referidas portarias, uma vez que ir de encontro a tais normas significa desestabilizar a política de saúde pública a ser implementada, ainda que tal desestabilização se dê minimamente, considerando tratar-se de um único indivíduo. Com efeito, quando o Poder Judiciário vai de encontro ao estabelecido nessas portarias, gera-se certo desequilíbrio na prestação dos serviços de saúde, uma vez que entes que não são originariamente responsáveis pelo fornecimento de certos medicamentos são determinados a fornecê-los. O deslocamento forçado e repetitivo do orçamento do ente público causa, então, deficiência em suas responsabilidades originárias, podendo, inclusive, gerar a carência de medicamentos direcionados à Atenção Básica, por exemplo.
Em igual passo, a falta de vinculação dos médicos privados às diretrizes estabelecidas pelo SUS, associada ao pronto atendimento dos tribunais às prescrições de tais profissionais, vinculando a política de dispensação gratuita de medicamentos, transporta o problema para uma questão ainda maior, qual seja: o crescimento do erário não acompanha os custos oriundos do avanço da ciência médica. Razão pela qual, resta de todo impossibilitada a hipótese de contornar as portarias do Ministério da Saúde, concedendo-se judicialmente aos enfermos, medicamentos não previstos pela política de saúde adotada, considerando a finitude dos recurso públicos e a necessidade de investimento na proteção de outros bens essenciais à sociedade.
Contudo, há de ser destacada no julgamento em comento, a posição divergente e, diga-se de passagem, isolada, do Ministro Teori Zavascki, o qual preleciona não haver, na Constituição Federal de 1988, direito subjetivo individual de acesso incondicional, universal, gratuito e a qualquer custo a todo e qualquer meio de proteção à saúde. Com propriedade, indica o referido ministro que "à luz dos princípios democrático, da isonomia e da reserva do possível, não há dever do Estado de atender a uma prestação individual se não for viável o seu atendimento em condições de igualdade para todos os demais indivíduos na mesma situação".
Em seu supracitado voto dissidente, o Ministro Teori Zavascki argumenta que o direito à saúde pode se traduzir de diversas formas, não se limitando às medidas que intentam recuperar a saúde já comprometida, concorrendo em importância as medidas preventivas de resguardo da saúde. Deste modo, o direito constitucional em comento não denota a configuração simplista e linear que por vezes lhe atribuem, devendo, portanto o direito à saúde ser observado como um direito a um sistema adequado de proteção à saúde, ao invés de ser visto como um direito a estar saudável o tempo todo.
Ocorre que, historicamente, a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça tem entendido pela implementação do direito à saúde mesmo quando o caso se trata de um único indivíduo. Ante tal panorama, por via de consequência, o entendimento da Primeira Seção do multicitado tribunal coincide com o defendido em ambas as Turmas, posto que tal Seção representa exatamente a reunião das duas Turmas.
De fato, este é o posicionamento mais atual da referida Corte, a qual também entende que a obrigação de fornecimento de medicamentos é solidária entre os entes federados, os quais poderão ser submetidos ao sequestro de verbas públicas em caso de descumprimento.
Nas ações para fornecimento de medicamentos, apesar de a obrigação ser solidária entre Municípios, Estados e União, caso o autor tenha proposto a ação apenas contra o Estado-membro, não cabe o chamamento ao processo da União, medida que apenas iria protelar a solução da causa.[4]
Em ação para fornecimento de medicamentos, o juiz pode determinar o bloqueio e sequestro de verbas públicas em caso de descumprimento da decisão.
Tratando-se de fornecimento de medicamentos, cabe ao Juiz adotar medidas eficazes à efetivação de suas decisões, podendo, se necessário, determinar, até mesmo, o sequestro de valores do devedor (bloqueio), segundo o seu prudente arbítrio, e sempre com adequada fundamentação.[5]
A jurisprudência dessa Corte já chegou a se manifestar, reiteradamente, no sentido de que a competência para julgar as ações de fornecimento de medicamentos, com valor menor que 60 (sessenta) salários mínimos, ante a Lei 10.259/2001, é do Juízo Federal do Juizado Especial, conforme previsão do art. 3º da mencionada lei (Precedentes: AgRg no CC nº 1.01.126/SC, Rel. Min. Castro Meira, DJe 27/02/09; AgRg no CC nº 96.687/SC, Rel. Min. Denise Arruda, DJe 16/02/09; AgRg no CC nº 95.004/SC, Rel. Min. Humberto Martins, DJe 24/11/08 e AgRg no CC nº 97.279/SC, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe 03/11/08).
Deste modo, houve uma patente facilitação para que a discussão do direito à saúde na seara judicial se distancie ainda mais dos Tribunais Superiores, posto que foram deslocados, para os Juizados Especiais, os processos decisórios sobre o fornecimento de medicamentos custeados com recursos públicos, tornando-se, portanto, prescindível a devida análise probatória. Em suma, excluindo as hipóteses em que haja afronta aos pressupostos constitucionais, os litígios que versem sobre esta matéria tendem a findar em única instância, incrementando potencialmente as possibilidades de má interpretação do direito insculpido no artigo 196 de nossa Lei Maior.
3. O entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF)
O estudo da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal deve ser efetuado adotando-se como divisor de águas a Audiência Pública, ocorrida em meados de 2009, onde os Ministros se debruçaram sobre a questão objeto deste trabalho, qual seja, a judicialização do direito à saúde. De fato, anteriormente a essa Audiência Pública, a Corte Maior não havia ainda se pronunciado de forma definitiva e amplamente embasada sobre o assunto, não tendo abordado por completo os inúmeros pontos do debate referente ao direito à saúde.
Diante de tal contexto, dentre as vezes que o STF se manifestou a respeito do tema, adota certo relevo a expressão desta Corte no AgRg em Pet 1246-1-SC. Em que se pese o deslinde da questão ter se fundamentado em aspecto processual, não se pode ignorar a posição adotada pelo Ministro Celso de Mello em seu despacho monocrático, que chegou a ser reproduzida em outros julgados do STF, ainda anteriores à mencionada audiência, senão vejamos:
E M E N T A: PACIENTES COM ESQUIZOFRENIA PARANÓIDE E DOENÇA MANÍACO-DEPRESSIVA CRÔNICA, COM EPISÓDIOS DE TENTATIVA DE SUICÍDIO - PESSOAS DESTITUÍDAS DE RECURSOS FINANCEIROS - DIREITO À VIDA E À SAÚDE - NECESSIDADE IMPERIOSA DE SE PRESERVAR, POR RAZÕES DE CARÁTER ÉTICO-JURÍDICO, A INTEGRIDADE DESSE DIREITO ESSENCIAL - FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS INDISPENSÁVEIS EM FAVOR DE PESSOAS CARENTES - DEVER CONSTITUCIONAL DO ESTADO (CF, ARTS. 5º, "CAPUT", E 196) - PRECEDENTES (STF) - ABUSO DO DIREITO DE RECORRER - IMPOSIÇÃO DE MULTA - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA. - O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. - O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE. - O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. DISTRIBUIÇÃO GRATUITA, A PESSOAS CARENTES, DE MEDICAMENTOS ESSENCIAIS À PRESERVAÇÃO DE SUA VIDA E/OU DE SUA SAÚDE: UM DEVER CONSTITUCIONAL QUE O ESTADO NÃO PODE DEIXAR DE CUMPRIR. - O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, "caput", e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF. MULTA E EXERCÍCIO ABUSIVO DO DIREITO DE RECORRER. - O abuso do direito de recorrer - por qualificar-se como prática incompatível com o postulado ético-jurídico da lealdade processual - constitui ato de litigância maliciosa repelido pelo ordenamento positivo, especialmente nos casos em que a parte interpõe recurso com intuito evidentemente protelatório, hipótese em que se legitima a imposição de multa. A multa a que se refere o art. 557, § 2º, do CPC possui função inibitória, pois visa a impedir o exercício abusivo do direito de recorrer e a obstar a indevida utilização do processo como instrumento de retardamento da solução jurisdicional do conflito de interesses. Precedentes.[6] (grifou-se)
O entendimento adotado pelo Ministro Celso de Mello, relator deste Recurso Extraordinário cuja ementa fora colacionada acima, ratifica a manifestação deste jurista apontada em seu despacho monocrático inerente ao AgRg em Pet 1246-1-SC. Em tal ocasião, o eminente magistrado defendeu que inviolabilidade do direito à vida constitui direito subjetivo inalienável e constitucionalmente garantido, tornando-se impossibilitada a hipótese de prevalência dos interesses financeiros do Estado ante a magnitude do direito à vida/saúde. Importante destacar que, Celso de Mello chegou inclusive a classificar o interesse financeiro estatal como de natureza secundária.
Dentre os julgados do STF ocorridos anteriormente à Audiência Pública sobre a judicialização do direito à saúde, é possível perceber certa similitude no que concerne às justificativas apresentadas pelos Ministros. As fundamentações tornam-se repetitórias, principalmente, nos trechos em que se ressalta a hipossuficiência econômica da parte autora, fator este que demonstra certo caráter paternalista das referidas decisões.
Ocorre que o direito à saúde, o qual deverá ser implementado através de políticas públicas, tem de ser efetivado de forma a atender a todos os membros da sociedade sem que haja privilégios àqueles que ingressem judicialmente. Com efeito, as decisões judiciais, por vezes, sob o pretexto de concretizar a justiça, acabam por concretizar injustiças, concedendo, por exemplo, mudanças de posições em filas de transplante, fornecimento de tratamentos medicamentosos e de exames avançados não acessíveis aos demais cidadãos, desrespeitando o princípio da igualdade material.
Nos dias 27, 28 e 29 de abril e 4, 6 e 7 de maio de 2009, concretizou-se o "divisor de águas" para a matéria em estudo consubstanciado em Audiência Pública. Precisamente com o intuito de tentar ponderar sobre o tema, e inspirado no modelo, estudado por Peter Häberle, de sociedade aberta dos intérpretes da Constituição, o Ministro Gilmar Ferreira Mendes, então Presidente do Supremo Tribunal Federal, à vista dos inúmeros pedidos de suspensão de liminar, suspensão de tutela antecipada e suspensão de segurança, convocou a Audiência Pública, nos termos do artigo 13, inciso XVII, do Regimento Interno daquele Tribunal, para perceber os pareceres de indivíduos com expertise em matéria de Sistema Único de Saúde, vislumbrando o esclarecimento de questões técnicas, científicas, administrativas, políticas, econômicas e jurídicas relativas às ações de prestação de saúde.
Na Audiência Pública foram abordados diversos pontos imprescindíveis para a compreensão do tema, quais sejam:
a) Responsabilidade dos entes da federação em matéria de direito à saúde;
b) Obrigação do Estado de fornecer prestação de saúde prescrita por médico não pertencente ao quadro do SUS ou sem que o pedido tenha sido feito previamente à Administração Pública;
c) Obrigação do Estado de custear prestações de saúde não abrangidas pelas políticas públicas existentes;
d) Obrigação do Estado de disponibilizar medicamentos ou tratamentos experimentais não registrados na ANVISA ou não aconselhados pelos Protocolos Clínicos do SUS;
e) Obrigação do Estado de fornecer medicamento não licitado e não previsto nas listas do SUS;
f) Fraudes ao Sistema Único de Saúde.
Dentre os inúmeros pontos[7] abordados, alguns pontos merecem maior destaque, posto se coadunarem com o entendimento adotado no presente estudo monográfico. Com o reconhecimento, pela maioria dos que abordaram o tema, do papel do Poder Judiciário na efetivação do direito à saúde, muito se discutiu a respeito da abordagem propícia que o Judiciário deverá executar ao decidir sobre tal matéria.
Neste quadro, a totalidade daqueles que examinaram a questão das ações judiciais baseadas em laudo de médico estranho aos quadros do sistema público afirmaram sua ilegitimidade, salvo situações excepcionais. De outra parte, discutiu-se, sem, contudo, chegar a um consenso, sobre o dever da Administração Pública de custear prestações de serviços saúde não albergadas pelas políticas públicas já adotadas; a possibilidade de fundamentação do princípio da reserva do possível como escusa para o cumprimento de questões relacionadas à saúde; o tema do congelamento judicial de verbas estatais; e o estabelecimento de condição para o acesso ao Poder Judiciário, consubstanciada na exigência de apresentação prévia do paciente à instância administrativa. Além disso, ocorreram abordagens sobre as controvérsias do fornecimento de remédios sem registro no Brasil, dos serviços médicos experimentais e do aperfeiçoamento das políticas públicas do setor.
De todo o exposto acerca da Audiência Pública sobre o direito à Saúde, não se pode negar que esta AP representou um marco fundamental para o, nem tão recente, fenômeno da judicialização presente no Brasil. Ademais, a multicitada Audiência Pública teve a aptidão de demonstrar os conflitos que são inerentes à sociedade brasileira: várias compreensões da ideia de saúde em discussão. Certo é que está patente o avanço que isto trouxe para a própria sociedade brasileira, tanto no que diz respeito aos seus reflexos na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal quanto aos efeitos concretos que a audiência trouxe para a saúde, sendo o mais evidente de tais efeitos, a garantia da possibilidade do direito à saúde ser demandado judicialmente.
Efetivamente, com o fim da Audiência Pública sobre saúde de 2009, o STF criou as referências jurisprudenciais para decidir sobre pedidos de prestação à saúde, tendo figurado como valoroso precedente a decisão acerca do AgRg da STA 175-CE, a qual será estudada, a seguir, a partir da análise do voto do Relator Ministro Gilmar Mendes, levando em linha de conta a propriedade e relevância jurídica dos argumentos expendidos no referido voto. Entretanto, para que haja uma maior compreensão do litígio em comento contido nestes autos, faz-se necessária a explanação de alguns dados fáticos que devem ser salientados.
Tratava-se de jovem, de 21 anos, acometida pela doença de Niemann-Pick Tipo C, doença neurodegenerativa rara, a qual vinha sido tratada sintomaticamente sem a utilização de um fármaco que combatesse a citada moléstia. Considerando a condição socioeconômica da enferma e de seus familiares, restou impossibilitada a hipótese da mesma adquirir por meios próprios o medicamento Zavesca (Miglustat), posto que tal tratamento medicamentoso custaria, mensalmente, R$ 52.000,00 (cinquenta e dois mil reais), montante este incompatível com a renda familiar da jovem, razão pela qual a mesma recorreu ao Judiciário para ver o remédio em tela custeado pela União, Estado do Ceará ou Município de Fortaleza.
Todavia, em que se pese os laudos médicos apontarem o Zavesca (Miglustat) como o fármaco mais indicado para o tratamento da jovem, tal remédio, na época da propositura da ação, não estava registrado na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), tampouco estava contemplado pela Política Farmacêutica da rede pública, não existindo Protocolo Clínico para seu uso perante o Sistema Único de Saúde.
Não obstante, o processo judicial sob análise ainda perpassou por diversos tópicos amplamente recorrentes em litígios desta natureza, senão vejamos:
a) a hipótese de controle jurisdicional das política públicas;
b) a inexistência de responsabilidade solidária entre os entes federados;
c) o desrespeito à separação de poderes;
d) a desconsideração dos regulamentos e normas próprias do SUS;
e) as consequências do efeito multiplicador;
f) as consequências da modificação da destinação de verbas, que dantes deveriam ser aplicadas na política de saúde a ser implementada, entretanto, há mudança no destino de parte dessa verba para o cumprimento de decisão judicial.
Para a análise de todos esses pontos, o Ministro Gilmar Mendes, relator do processo, optou por destrinchar todo o texto do artigo 196 da Constituição Federal de 1988, explicitando o significado das expressões inclusas no referido dispositivo constitucional, quais sejam: 1) "direito de todos", 2) "dever do Estado", 3) "garantido mediante políticas sociais e econômicas", 4) "visem à redução do risco de doenças e outros agravos", 5) "acesso universal e igualitário", 6) "ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação".
No que concerne à primeira expressão, explica o Ministro Relator que há no texto constitucional a previsão de um direito público subjetivo à implementação de políticas públicas recuperadoras e protetoras da saúde, não existindo no referido permissivo constitucional um direito absoluto a todo e qualquer procedimento de promoção, proteção e recuperação da saúde que prescinda de uma política pública concretizadora. Deste modo, para que seja assegurada um prestação de saúde individualizada, faz-se indispensável a existência de um contexto fático no qual não esteja sendo respeitada a política pública de saúde existente.
Ao esmiuçar o conceito de "dever do Estado" o Relator discorreu sucintamente a respeito da responsabilidade existente entre os entes federados sobre o direito à saúde. Para tanto, leva-se à lume o disposto no artigo 23, II, da Constituição, o qual estabelece a competência para a proteção da saúde, in verbis:
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
[...]
II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;[8] (grifou-se)
Na visão do supracitado pretor, o artigo em destaque estabelece, entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios, uma responsabilidade solidária pela promoção do direito à saúde, figurando como legitimados passivos nos litígios que envolvam tal direito. A descentralização na prestação dos serviços inerentes ao Sistema Único de Saúde, bem como, a existência de uma rede regionalizada e hierarquizada, segundo o critério da subsidiariedade, só vem a reforçar a teoria de que há uma obrigação solidária entre os entes federados, segundo a ótica do Ministro.
Já no que concerne ao ponto 3 do rol de conceitos esmiuçados no voto do relator, tem-se que tal conceito atribui ao direito à saúde um certo viés programático, na proporção em que a evolução da ciência médica acaba por trazer novas medidas mais efetivas para a proteção da saúde. E o acompanhamento de tais avanços científicos deverá vir previsto e exercido por políticas econômicas e sociais, as quais indicarão as providências a serem adotadas, considerando a limitação dos recursos, para que se possa alcançar a maior efetividade na proteção do direito à saúde.
Pari passu, ratificando o exposto no ponto 3, o conceito contido no item 4, "visem a redução do risco de outras doenças e outros agravos", vem ratificar a posição de que as políticas públicas a serem adotadas não podem olvidar das medida preventivas de proteção à saúde, lembrando o Ministro Gilmar Mendes que a própria Carta Magna, em seu artigo 198, II, estabelece o caráter prioritário das ações preventivas na campo da saúde.
A quinta parte do dissecado artigo 196 da Constituição Federal destaca a universalidade do Sistema Único de Saúde, de modo que as ações deste sistema alcancem a sociedade como um todo, sem que se façam presentes privilégios ou preconceitos, ou seja, visando a proteção da saúde de todos e em igual medida. De fato, a própria Lei nº 8.080/90, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, preconiza em seu artigo 7º, incisos I e IV, estabelece como duas das treze diretrizes do SUS a universalidade e a igualdade, reproduzindo na legislação infraconstitucional os princípios contidos na Carta Magna atinentes ao direito à saúde.
Art. 7º As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios:
I - universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência;
IV - igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie;[9] (grifou-se)
Quanto ao sexto e último tópico da dissecação, do artigo 196, contida no voto do Ministro Relator Gilmar Ferreira Mendes, verifica-se que o referido jurista deteve-se de forma mais prolongada na abordagem deste tópico. É realizado um apanhado geral das ações que subiram ao Supremo Tribunal Federal, as quais versem sobre o direito à saúde, explicitando toda a conjuntura antecedente que culminou na necessidade e realização da afamada Audiência Pública da saúde.
Após a realização desta digressão, aduz o magistrado que a problemática da judicialização do direito à saúde, origina-se, na maioria dos casos, devido à má implementação de determinada política pública já existente, ou seja, toda a legislação pertinente já existe, porém a mesma não é cumprida ou o é de forma inapropriada, prejudicando toda a sociedade.
Nestes casos, não há que se falar em impossibilidade do Judiciário se imiscuir em atribuição de outro Poder, posto que o Judiciário não estaria assumindo função política, posto que não está criando uma política de saúde pública, mas tão somente determinando o cumprimento de política já definida, a qual não esteja sendo efetivamente executada. Isto posto, a partir desta linha raciocínio é possível a elaboração de parâmetro que norteiem a atividade jurisdicional ante qualquer ação que possua como objeto a prestação do serviço público de saúde.
Desta feita, diante de litígio judicial com tal objeto, caso a prestação do serviço de saúde requerida não estiver entre as políticas do Sistema Único de Saúde, faz-se mister discernir a razão para tanto, observando se esta é consequência de uma omissão legal ou executiva, de uma proibição legal ou de uma deliberação expressa da Administração Pública. Isto porque, são abundantes as demandas judiciais cujo pedido vislumbra o fornecimento de medicamento não registrado na Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
Demandas estas que devem ser julgadas improcedentes, uma vez que, a partir da Audiência Pública da saúde, fixou-se o entendimento de que ao Judiciário não é permitido decidir pelo fornecimento de determinado fármaco pleiteado sem que este seja registrado. Ademais, caso o magistrado entenda de forma diversa, estaria a infringir o disposto na Lei nº 6.360/76, que dispõe, em seu artigo 12, a proibição de venda ou entrega de insumos farmacêuticos, medicamentos e correlatos sem que seja precedida de registro junto ao Ministério da Saúde, considerando o respectivo registro figura em última análise como medida de garantia à saúde pública.
De outra parte, também se revela considerável o número de ações judiciais nas quais se pleiteia uma prestação de saúde a qual deliberadamente o SUS optou por não fornecer, uma vez que não reconhece cientificamente as benesses de determinado tratamento. Esse eventual posicionamento negatório adotado geralmente se fundamenta em uma das seguinte hipóteses: a) o SUS adota outro tratamento inadequado a certo paciente; b) o SUS não prevê tratamento específico para certa moléstia.
Considerando a primeira situação, haverão de ser valorizadas as prestações dos serviços de saúde elencados nos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas - PCDT para os tratamentos das moléstias a serem combatidas no SUS, em detrimento dos tratamentos requestados judicialmente os quais não haja previsão junto aos protocolos e diretrizes. Isto porque é através dos PCDT que são estabelecidos os critérios de diagnóstico de cada doença, o algoritmo de tratamento das doenças com as respectivas doses adequadas e os mecanismos para o monitoramento clínico em relação à efetividade do tratamento e a supervisão de possíveis efeitos adversos, fixando, assim, os parâmetros necessários para o Componente Especializado da Assistência Farmacêutica - CEAF, aprovado por meio da Portaria GM/MS nº 2.981, de 26 de novembro de 2009, o qual constitui, por sua vez, uma estratégia de acesso a medicamentos no âmbito do Sistema Único de Saúde.
Ademais, tais critérios e estratégias têm de ser observados uma vez que não é possível, como dito anteriormente, acompanhar todos os avanços da medicina experimental, bem como, dada a finitude dos recursos públicos, deverá ser adotada a estratégia mais eficaz na distribuição de tais verbas de forma a abranger o maior número de pessoas. Nas palavras do próprio Ministro Gilmar Mendes, em seu referido voto, defendeu-se o seguinte:
Ademais, não se pode esquecer de que a gestão do Sistema Único de Saúde, obrigado a observar o princípio constitucional do acesso universal e igualitário às ações e prestações de saúde, só torna-se viável mediante a elaboração de políticas públicas que repartam os recursos (naturalmente escassos) da forma mais eficiente possível. Obrigar a rede pública a financiar toda e qualquer ação e prestação de saúde existente geraria grave lesão à ordem administrativa e levaria o comprometimento do SUS, de modo a prejudicar ainda mais o atendimento médico da parcela da população mais necessitada. Dessa forma, podemos concluir que, em geral, deverá ser privilegiado o tratamento fornecido pelo SUS em detrimento de opção diversa escolhida pelo paciente, sempre que não for comprovada a ineficácia ou impropriedade da política de saúde existente.
Essa conclusão não afasta, contudo, a possibilidade de o Poder Judiciário, ou de a própria Administração, decidir que medida diferente da custeada pelo SUS deve ser fornecida a determinada pessoa que, por razões específicas do seu organismo, comprove que o tratamento fornecido não é eficaz no seu caso. Inclusive, como ressaltado pelo próprio Ministro da Saúde na Audiência Pública, há necessidade de revisão periódica dos protocolos existentes e de elaboração de novos protocolos. Assim, não se pode afirmar que os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas do SUS são inquestionáveis, o que permite sua contestação judicial.[10] (grifo constante no original)
De fato, o pleito do paciente pode até representar o seu melhor interesse, mas não leva em linha de conta os interesses da sociedade como um todo, assim como, por vezes, desconsidera a competência atribuída ao Sistema Único de Saúde para gerenciar as ações de saúde e os parâmetros para o diagnóstico e tratamento das diversas moléstias. Razão pela qual impõe-se ao magistrado decidir pelo indeferimento do pleito de fornecimento de tratamento não elencado nos PCDT, sempre que haver tratamento alternativo sendo fornecido pelo Sistema Único de Saúde e não fica comprovada a sua ineficiência.
De forma diversa, tem-se a segundo situação, na qual inexiste tratamento previsto pelo SUS para o tratamento de certa moléstia. Para tais situações, entendeu o Ministro Gilmar Mendes, na decisão do referido AgRg da STA 175-CE, ser necessária a distinção entre os tratamentos puramente experimentais dos tratamentos ainda não analisados pelo SUS.
Para o jurista, o Estado não pode ser condenado a fornecer tratamentos essencialmente experimentais, mas no caso da mera falta de análise pelo SUS, desde que efetivada toda a produção de provas pertinentes, deverá o Estado ser compelido, seja em ações individuais ou coletiva, a fornecer o tratamento requerido, argumentando o referido Ministro que o direito à saúde não pode ficar refém das burocracias estatais. Defende ainda a necessidade de valorização das instruções nas demandas, sob o risco de estandardizar todos os litígios que versem sobre o direito à saúde, motivo pelo qual o Relator opinou por afastar o argumento de ocorrência de efeito multiplicador dada a necessidade de se olhar as especificidades de cada caso.
Em suma, as posições adotadas pelo Supremo Tribunal Federal no AgRg da STA 175-CE eivaram-se de natureza paradigmática, norteadora da jurisprudência sobre o tema. Em ilustrada síntese, Fernando Facury Scaff aponta as posições escolhidas por nossa Corte Maior, senão vejamos:
1) Quando a ação de saúde pretendida for prevista nos textos normativos e não estiver sendo prestada: O Poder Judiciário deve intervir a fim de fazer cumprir a norma.
2) Quando a ação de saúde pleiteada não estiver entre as políticas do SUS, é imprescindível distinguir se ela decorre:
a) de uma omissão legislativa ou administrativa: Deverá ser privilegiado o tratamento estabelecido pelo SUS, e serem feitas revisões periódicas dos protocolos de saúde, sendo permitido ao Poder Judiciário intervir caso um indivíduo comprove que o tratamento fornecido não é adequado para atender o seu caso.
b) de uma decisão administrativa de não fornecê-la em virtude de:
i) o SUS fornece tratamento alternativo: Igualmente deverá ser privilegiado o tratamento disponibilizado pelo SUS, sempre que não for comprovada a eficácia ou a impropriedade da política existente.
ii) o SUS não possui tratamento para esta patologia:
(1) Por ser um tratamento meramente experimental: Neste caso caracteriza-se como pesquisa médica e não é possível o Poder Judiciário deferir os pleitos efetuados.
(2) Por ser um novo tratamento ainda não testado pelo SUS, mas disponível na rede privada: O Poder Judiciário poderá intervir, em ações individuais ou coletivas, para que o SUS dispense aos seus pacientes o mesmo tratamento disponível na rede privada, mas desde que haja instrução processual probatória, o que inviabiliza o uso de liminares.
b) de uma vedação legal à sua dispensação: Esta hipótese, a despeito de elencada pelo acórdão, não foi tratada em seu texto.[11]
O excerto colacionado, sintetizador da decisão acerca do AgRg da STA 175-CE, indica o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal a respeito dos principais pontos a serem considerados nas ações judiciais de saúde, denotando importância fundamental para os futuros julgados.
Hodiernamente, verifica-se que o STF consolidou seu entendimento sintetizado no excerto supracitado. Porém, a Suprema Corte foi além entendendo inclusive que, em certos casos, faz-se necessário não só obrigar certo ente federado a disponibilizar o medicamento necessário, mas também determinar que seja mantido estoque mínimo de referida substância.
A Administração Pública pode ser obrigada, por decisão do Poder Judiciário, a manter estoque mínimo de determinado medicamento utilizado no combate a certa doença grave, de modo a evitar novas interrupções no tratamento.
Não há violação ao princípio da separação dos poderes no caso. Isso porque com essa decisão o Poder Judiciário não está determinando metas nem prioridades do Estado, nem tampouco interferindo na gestão de suas verbas. O que se está fazendo é controlar os atos e serviços da Administração Pública que, neste caso, se mostraram ilegais ou abusivos já que, mesmo o Poder Público se comprometendo a adquirir os medicamentos, há falta em seu estoque, ocasionando graves prejuízos aos pacientes.
Assim, não tendo a Administração adquirido o medicamento em tempo hábil a dar continuidade ao tratamento dos pacientes, atuou de forma ilegítima, violando o direito à saúde daqueles pacientes, o que autoriza a ingerência do Poder Judiciário.[12]
4. Conclusão
O direito à saúde figura como direito fundamental de todos e dever do Estado, razão pela qual é defendida tão debatida nos tribunais pátrios. De fato, não obstante sua destacada importância, os avanços científicos na seara da medicina acabaram por elevar, sobremaneira, os custos dos tratamentos médicos e farmacêuticos, onerando ainda mais as reservas estatais, fator este que incentivou os membros da federação a adotarem uma posição excessivamente defensiva (ainda que em casos onde a responsabilidade do ente era patente) quando das solicitações administrativas ou até mesmo das querelas judiciais que versem sobre o fornecimento de tratamentos.
Estas verdadeiras desestabilizações das verbas públicas destinadas à saúde têm sido agravadas pelas reiteradas decisões judiciais que, apesar da melhor intenção, deferem todo e qualquer pleito concernente à saúde, ignorando os parâmetros estipulados pelo Supremo Tribunal Federal na AgRg da STA 175-CE, bem como, do apresentado na Audiência Pública da Saúde.
Não se pretende, de forma alguma, alegar a impossibilidade do Judiciário intervir em alguns aspectos desta seara, tampouco procura-se defender a influência do Judiciário de forma a substituir os Poderes Legislativo e Executivo em suas funções. Ocorre que, ao Judiciário é permitida a intervenção desde que o direito fundamental à saúde não esteja sendo implementado em grau satisfatório, ou mesmo nos casos em que inexista política pública de saúde, ou até mesmo em casos em que, apesar de existir, a mesma seja ineficaz.
Esta intervenção do Judiciário chega a representar, ultima ratio, verdadeiro instrumento de participação democrática da população, considerando que o discurso jurídico deverá estar pautado pela fundamentação e a razoabilidade. Com efeito, dado o princípio da inércia jurisdicional, somente através da provocação das partes é que o Judiciário estaria autorizado a fazer o sopesamento entre a reserva do possível e a consecução do mínimo existencial, tudo desde que presentes as condições expostas no parágrafo anterior, bem como, respeitando a discricionariedade de meios atinentes ao demais poderes.
Desta feita, apesar de apresentar facetas de direito individual no caso concreto de inexistência de uma política pública de saúde por exemplo, o direito à saúde figura como direito subjetivo público, tendo as ações coletivas como forma preferencial para sua discussão.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 21 de março de 2016.
___________. Lei nº 8.080/90, de 19 de setembro de 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8080.htm>. Acesso em: 21.03.2016.
NUNES, António José Avelãs; SCAFF, Fernando Facury. Os Tribunais e o Direito à Saúde, Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2011.
SCAFF, Fernando Facury; REVENGA Miguel; ROMBOLI, Roberto. Problemas da Judicialização do Direito à Saúde no Brasil, In: A Eficácia dos Direitos Sociais - I Jornada Internacional de Direito Constitucional Brasil/Espanha/Itália, SP, Quartier Latin, 2010. p. 265-266.
[1] SCAFF, Fernando Facury; REVENGA Miguel; ROMBOLI, Roberto. Problemas da Judicialização do Direito à Saúde no Brasil, In: A Eficácia dos Direitos Sociais - I Jornada Internacional de Direito Constitucional Brasil/Espanha/Itália, SP, Quartier Latin, 2010. p. 265-266.
[2] STJ. AgRg no REsp 1028835/DF, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 02/12/2008, DJe 15/12/2008.
[3] STJ. RMS nº 24.197 - PR (2007/0112500-5), Relator Ministro Luiz Fux, 04/05/2010.
[4] STJ. 1ª Seção. REsp 1.203.244-SC, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 9/4/2014 (recurso repetitivo).
[5] STJ. 1ª Seção. REsp 1.069.810-RS, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 23/10/2013 (recurso repetitivo).
[6] STF. RE 393175 AgR, Relator(a): Min. Celso de Mello, Segunda Turma, julgado em 12/12/2006, DJ 02-02-2007 PP-00140 Ement Vol-02262-08 PP-01524.
[7] Para um aprofundamento maior nas matérias abordadas pela Audiência Pública em questão, interessante realizar o estudo do material contido no sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal, disponível: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaSaude&pagina=Cronograma>
[8] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 21 de março de 2016.
[9] BRASIL. Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8080.htm >. Acesso em: 21 de março de 2016.
[10] STF. AgRg na STA 175-CE, Relator Ministro Gilmar Mendes, DJe 30/4/2010.
[11] NUNES, António José Avelãs; SCAFF, Fernando Facury. Os Tribunais e o Direito à Saúde, Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2011, p. 126.
[12] STF. 1ª Turma. RE 429903/RJ, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 25/6/2014 (Info 752).
Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Especialista em Direito Administrativo pela Universidade Anhanguera-Uniderp.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FREITAS, Diego Santiago de. O direito à saúde sob a ótica jurisprudencial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 mar 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46299/o-direito-a-saude-sob-a-otica-jurisprudencial. Acesso em: 23 dez 2024.
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