Ultimamente, em tempos de crise, tem-se observado forte atuação do Estado na cobrança de tributos, estando envolvidos os três poderes clássicos, Executivo, Judiciário e Legislativo. Até aí, tudo bem.
Ocorre que esta atuação tem extravasado para a espera penal, tendo surgido um sem-número de ações penais relacionadas a fatos criminosos comuns, mas que “aproveita-se” para imputar ao réu, também, crime de sonegação fiscal em relação a rendas de proveniência ilícita, em clara manifestação de excesso de acusação.
Primeiramente, deve-se ter a perfeita noção da desnecessidade absoluta de se tributarem os atos ilícitos. Efetivamente, será efeito automático de uma eventual sentença condenatória a perda do produto do crime, nos exatos termos do art. 91, II, b do Código Penal:
Art. 91 - São efeitos da condenação:
[...]
II – a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé:
[...]
b) do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso. [grifos aditados]
Assim, de nada adianta falar em tributação tendo em vista que, ao final, o agente perderá, se condenado for, todos os bens relacionados com o crime.
O que é intolerável, significativamente, é a necessidade de se tributar ilícito que tenha origem penal, seja porque é desnecessário, haja vista o efeito acessório da perda do crime, seja por lhe faltar fundamento ético.
Efetivamente, a tributação dos atos ilícitos transformaria o Estado em um ente receptador, já que passaria a compartilhar, diretamente, do produto do crime. O Estado passaria a arrecadar parte dos valores oriundos de tráfico, de corrupção, de crimes patrimoniais, tornando-se beneficiário direto destes valores, agindo, pois, como verdadeiro receptador, o que é inaceitável.
Para além disso, além da desnecessidade e da falta de respaldo ético, tenha-se consciência de que a tributação de comportamentos referentes à prática de crimes representaria, com o passar do tempo, verdadeira permissão para que as condutas fossem praticadas. Tributar estes atos seria um passo em prol da legalização.
De outra parte, à luz da teoria do crime, consumado um delito, todos os atos subsequentes são tidos, por motivos de política criminal, como fatos posteriores impuníveis.
Ora, se o cidadão traficou, receptou, furtou, roubou, enfim, se praticou um ilícito qualquer, não irá responder pela prática de qualquer fato posterior. É o que ocorre no chamado princípio da consunção ou da absorção, que respalda o entendimento de que não existe concursus delictorum nem na progressão criminosa, nem no crime progressivo.
Com efeito, uma Constituição pródiga em garantias, que consagrou princípios processuais como o do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório, da presunção de inocência, da vedação das provas obtidas por meios ilícitos, não pode, certamente, se conciliar com a imposição da confissão de um crime para que outro não seja cometido.
É um absurdo, carente de qualquer fundamento científico.
Neste contexto, é de se invocar o direito de não produzir prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere), também denominado de privilégio contra a autoincriminação (privilege against self-incrimination), que se insere no direito à defesa e na cláusula do devido processo legal, positivados na Constituição da República Federativo do Brasil de 1988.
Um dos aspectos do princípio nemo tenetur se detegere é o direito ao silêncio que assiste a todo suspeito, indiciado ou acusado da prática de crime. Deflui da regra constitucional estampada no art. 5º, LXIII, da CF/88, e encontra previsão expressa no art. 8º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 1969, incorporado ao ordenamento jurídico pátrio pelo Decreto 678/92. A propósito, confira-se a posição do Supremo Tribunal Federal sobre essa garantia fundamental:
COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO - PRIVILÉGIO CONTRA A AUTO-INCRIMINAÇÃO - DIREITO QUE ASSISTE A QUALQUER INDICIADO OU TESTEMUNHA - IMPOSSIBILIDADE DE O PODER PÚBLICO IMPOR MEDIDAS RESTRITIVAS A QUEM EXERCE, REGULARMENTE, ESSA PRERROGATIVA– PEDIDO DE HABEAS CORPUS DEFERIDO. - O privilégio contra a auto-incriminação – queé plenamente invocável perante as Comissões Parlamentares de Inquérito - traduz direito público subjetivo assegurado a qualquer pessoa, que, na condição de testemunha, de indiciado ou de réu, deva prestar depoimento perante órgãos do Poder Legislativo, do Poder Executivo ou do Poder Judiciário. –O exercício do direito de permanecer em silêncio não autoriza os órgãos estatais a dispensarem qualquer tratamento que implique restrição à esfera jurídica daquele que regularmente invocou essa prerrogativa fundamental. Precedentes. O direito ao silêncio - enquanto poder jurídico reconhecido a qualquer pessoa relativamente a perguntas cujas respostas possam incriminá-la (nemo tenetur se detegere) - impede, quando concretamente exercido, que aquele que o invocou venha, por tal específica razão, a ser preso, ou ameaçado de prisão, pelos agentes ou pelas autoridades do Estado. - Ninguém pode ser tratado como culpado, qualquer que seja a natureza do ilícito penal cuja prática lhe tenha sido atribuída, sem que exista, a esse respeito, decisão judicial condenatória transitada em julgado. O princípio constitucional da não-culpabilidade, em nosso sistema jurídico, consagra uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sido condenados definitivamente por sentença do Poder Judiciário. Precedentes.(STF, HC 79812, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 08/11/2000, DJ 16-02-2001 PP-00021 EMENT VOL-02019-01 PP-00196) [grifos aditados]
Além do direito ao silêncio, assiste ao indivíduo sobre quem pese suspeita ou acusação de crime, também sob o pálio do princípio nemo tenetur se detegere, a prerrogativa de eximir-se da prática de qualquer conduta que implique colaboração na produção de prova que lhe seja potencialmente desfavorável, de que são exemplos o fornecimento de material gráfico e a participação em reprodução simulada dos fatos.Com fundamento no privilégio contra a auto-incriminação, aduz Pedro Luiz Amaral Marino que:
a ação do contribuinte, por exemplo, omitindo informação ou prestando declaração falsa às autoridades fazendárias, com o único propósito de não confessar um crime contra a ordem tributária ou outro de qualquer natureza, não tipifica o delito previsto no art. 1º, inciso I, da Lei nº 8.137/90.
Também não comete o crime previsto no parágrafo único do art. 1º, da mesma Lei, o contribuinte que deixa de atender exigência da autoridade, no prazo legal, com a finalidade de acobertar anterior conduta criminosa.
Ademais, deve-se atentar para o elemento subjetivo especial do tipo, que no artigo 1º, consiste no especial fim de suprimir ou reduzir tributo e, no artigo 2º, I, na finalidade de eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo.
Se, com a omissão de informação ou com a informação prestada incorretamente, o contribuinte intenta unicamente evitar a confissão de um crime já praticado, e não suprimir ou reduzir tributo ou eximir-se do seu pagamento, não ocorre a implementação dos tipos penais referidos, por conta da não configuração do tipo subjetivo.
Por tais razões, tem-se que o alcance correto da interpretação dos artigos 118 e 126 do CTN foi dado por Sacha Calmon Navarro Coelho:
evidentemente não se trata da tributação dos atos ilícitos tipificados como delituosos, já que o fato gerador dos tributos é sempre um fato lícito. A questão se resolve da seguinte maneira: a) são tributáveis os fatos lícitos embora realizados ilicitamente; b) não podem ser tributados os fatos ilícitos, como, por exemplo, o rufianismo, o jogo do bicho ou o tráfico de drogas.
Logo, além de manifestamente inconstitucional, é absolutamente descabido aplicar-se, ao Direito Penal, o princípio do non olet.
Destarte, não se mostra possível a configuração de crime contra a ordem tributária em razão das rendas alegadamente omitidas supostamente derivarem de ato supostamente ilícito.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
COELHO, Sacha Calmon Navarro.Manual de Direito Tributário. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 378.
MARINO, Pedro Luiz Amaral. O dever de Informar e o Direito ao Silêncio: o direito ao silêncio (CF, art. 5º, LXII); o dever de informar (CTN, art. 197) e o direito de não se auto-incriminar. Inadmissibilidade de discriminação contra o contribuinte. In.: MARIZ DE OLIVERIA, Antonio Cláudio; CAMPOS, Dejalma de. Direito Penal Tributário Contemporâneo: Estudos de Especialistas. São Paulo: Atlas, 1996, p. 115.
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 3ª ed. rev. e atual., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.
NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios constitucionais penais e processuais penais. São Paulo: RT, 2010
PRADO, Luiz Regis. Direito penal econômico: ordem econômica, relações de consumo, sistema financeiro, ordem tributária, sistema previdenciário, lavagem de capitais, crime organizado. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
Advogado Criminalista. Bacharel em Direito pela Universidade Salvador - UNIFACS. Monografia orientada pelo Prof. Rômulo Moreira. Pós-graduado em Direito Penal Econômico e Europeu pelo Instituto de Direito Penal Económico e Europeu (IDPEE), da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Pós-Graduado em Ciências Criminais pelo Juspodivm - Faculdade Baiana de Direito.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RAFAEL BRUNO DE Sá, . Inaplicabilidade do pseudo-princípio do non olet ao direito penal e a consequente impossibilidade do crime de sonegação fiscal derivado de rendas provenientes de atividade ilícita Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 abr 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46322/inaplicabilidade-do-pseudo-principio-do-non-olet-ao-direito-penal-e-a-consequente-impossibilidade-do-crime-de-sonegacao-fiscal-derivado-de-rendas-provenientes-de-atividade-ilicita. Acesso em: 23 dez 2024.
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