RESUMO: O presente trabalho busca explicar o fenômeno chamado pelo jusfilósofo Marcelo Neves de constitucionalização simbólica. São descritos, primeiramente, os fundamentos teóricos da constitucionalização simbólica, que são a linguagem sistêmica de Niklas Luhmann e a noção de legislação simbólica. Os principais conceitos atinentes à teoria sistêmica que embasam a constitucionalização simbólica são as diferenciações entre sociedade, sistemas e subsistemas; a função do subsistema jurídico e a sua autonomia operacional. A legislação simbólica, por sua vez, consiste na hipertrofia da função simbólica da lei em detrimento da sua função instrumental. A constitucionalização simbólica é caracterizada como a hipertrofia da função simbólica da norma constitucional em detrimento da sua função instrumental da qual resultem danos ao núcleo do subsistema constitucional, compreendido pelas eleições democráticas, princípio da separação de poderes e os direitos fundamentais. Da constitucionalização simbólica são explicitadas diferentes consequências: do ponto de vista sistêmico, o subsistema jurídico enfrenta problemas tanto com relação à sua auto-referência quanto em relação à heterorreferência; do ponto de vista semiótico, a constitucionalização simbólica resulta em deficiências sintáticas, semânticas e pragmáticas do subsistema jurídico; politicamente, as consequências observáveis são três, o inconformismo das massas, a indiferença ou a imposição autoritária.
Palavras-chave: 1. Constitucionalização simbólica; 2. Teoria sistêmica; 3. Legislação simbólica.
Este artigo a teoria da constitucionalização simbólica de Marcelo Neves, a qual se afigura como uma matéria de filosofia do direito que se insere na temática do constitucionalismo. Trata-se de questão pertinente à concretização das normas constitucionais sob uma perspectiva sistêmica e semiótica.
Será visto que Marcelo Neves busca, ao tratar da constitucionalização simbólica, explorar as relações entre a função instrumental da norma jurídica constitucional (qual seja, a função de regular a conduta) com a função simbólica, a função político-ideológica. Nesse sentido, a constitucionalização simbólica surge em face da hipertrofia da função simbólica em detrimento da função instrumental da norma jurídica constitucional, da discrepância entre uma e outra dimensão.
Dessa maneira, começaremos com a explanação de alguns dos principais marcos teóricos utilizados por Marcelo Neves na confecção de sua teoria da constitucionalização simbólica. Tal explanação começará pela teoria sistêmica de Luhmann, uma das grandes influências de Marcelo Neves. Serão elucidados conceitos como a ideia de sistema e de ambiente, código binário, diferenciação funcional, bem como algumas particularidades do sistema jurídico. Em seguida, outra importante fonte teoria da teoria da constitucionalização simbólica será abordada: a legislação simbólica.
Posteriormente, trabalhar-se-á a teoria da constitucionalização simbólica propriamente dita. Realizar-se-á a definição da constitucionalização simbólica, e, após, serão analisadas algumas consequências sistêmicas, semióticas e políticas da constitucionalização simbólica.
2. DAS BASES TEÓRICAS DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO SIMBÓLICA
Este item objetiva elucidar algumas das premissas teóricas utilizadas por Marcelo Neves (jurista pernambucano contemporâneo cuja produção acadêmica concentra-se nos campos da filosofia e sociologia do direito, ciência política e direito constitucional) na elaboração da sua teoria da constitucionalização simbólica. Isso se faz necessário em razão da complexidade dos autores nos quais Neves fundamenta-se para desenvolver sua teoria.
A linguagem e os conceitos da teoria sistêmica do direito nos moldes formulados por Niklas Luhmann são uma referência constante na obra de Neves. No tocante à constitucionalização simbólica, em seu trabalho no qual desenvolve tal teoria, Neves (2007, p. 218-223) faz referência a sessenta e duas obras diferentes de Luhmann. Percebe-se, portanto, a importância desse autor no pensamento de Neves. A compreensão da teoria sistêmica de Luhmann começa pela sua visão da sociedade, a partir da qual surgem as suas principais conceituações, as quais serão vistas mais detalhadamente logo adiante.
Niklas Luhmann (1983, p. 34) formula a teoria sistêmica do direito a partir de sua teoria sociológica. A sua concepção de sociedade e direito, entretanto, é diferente das abordagens tradicionais, razão pela qual Luhmann afirma:
Em termos de esclarecimento suficientemente abstrato da relação entre os desenvolvimentos da sociedade e do direito faltava, tanto na teoria social quanto na teoria do direito, o instrumental conceitual adequado. Daí surgiram as análises parciais já expostas e que, baseadas em pontos de referência diferentes, esclareciam aspectos isolados, mas nunca a totalidade do fenômeno jurídico contemporâneo.
As abordagens tradicionais da sociologia jurídica são inadequadas, desse modo, em razão do fato de que são incapazes de uma compreensão global do fenômeno jurídico, recaindo apenas sob aspectos limitados da questão. Em outras palavras, tais abordagens tradicionais da sociologia jurídica seriam, na perspectiva de Luhmann, escapistas, como observa Mello (2006, p. 352). Luhmann buscou superar tais limitações das teorias sociológicas tradicionais por meio da aplicação da teoria sistêmica, originária de estudos biológicos, trazendo-as ao campo da sociologia. Desse modo, segundo a perspectiva sistêmica:
[…] a sociedade se apresenta como um sistema complexo, tendo como seu mundo circundante e exterior o “ambiente”. O que separa o sistema de seu ambiente é a circunstância de naquele existirem certas operações fáticas denominadas “comunicações”, que se encontram em um processo constante de reprodução (LEITE, 2008, 15).
Do trecho citado, retira-se um dos conceitos fundamentais da teoria sistêmica do direito, qual seja, a dicotomia sistema/ambiente. Como colocado por Ferraz Jr. (1980, p. 4), pode-se dizer que “sistema é para Luhmann um conjunto de elementos delimitados segundo o princípio da diferenciação”. Estes elementos formam entre si um conjunto diferenciado dos demais. Os demais elementos, os excluídos do conjunto, são o seu ambiente.
Tal binômio indica-nos que todo acontecimento deve pertencer, ao mesmo tempo, a um determinado sistema e ao ambiente de outro sistema (NEVES, 2008, p. 59)[1]. Ou seja, um determinado evento não pode ocorrer, de uma só vez, tanto no interior do sistema quanto no seu ambiente. Sendo a sociedade, como citado, um sistema caracterizado pela ocorrência de comunicações, é forçoso concluir que tais operações denominadas de comunicações ocorrem apenas no sistema social, e não no seu ambiente.
Luhmann (1983), ao discorrer sobre a maneira pela qual se dá a diferenciação dos elementos do sistema social (as comunicações), argumenta que a sociedade contemporânea se encontra como um sistema diferenciado funcionalmente, diferentemente do passado, quando se verificava uma diferenciação social segmentária. Mas o que significa dizer isso? Segundo Luhmann (1983, p. 176):
Na diferenciação segmentária são formados diversos sistemas iguais ou semelhantes: a sociedade compõe-se de diversas famílias, tribos, etc. Na diferenciação funcional os sistemas parciais, ao contrário, são formados para exercerem funções especiais e específicas, sendo portanto distintos entre si: para a política e a administração, para a economia, para a satisfação de necessidades religiosas, para a educação, para cuidar dos doentes, para funções familiares residuais (assistência, socialização, recreação), etc.
Dizer que a sociedade é um sistema diferenciado funcionalmente nada mais significa do que dizer que o sistema social divide-se em sistemas parciais, subsistemas, cada qual incumbido, como visto, de uma função específica, dentre os quais está o subsistema jurídico, o subsistema político, o econômico etc. Tal é a caracterização da sociedade contemporânea.
O reconhecimento da multiplicidade dos sistemas sociais coloca-nos diante da questão do reconhecimento de determinado sistema como sendo um subsistema social ou não. Como visto, o que caracteriza o sistema social em oposição ao seu ambiente é a ocorrência no seu interior de operações denominadas comunicações. O mesmo deverá ocorrer com os seus sistemas parciais. Assim, não há de se falar em subsistema social caso não existam comunicações em determinado sistema.
As comunicações, aliás, além de se prestarem à classificação de determinado sistema como sendo um subsistema social, irão também diferenciar os subsistemas sociais entre si. Cada um desses sistemas parciais opera com uma rede de comunicações particular, produzindo e reproduzindo tais comunicações conforme os seus códigos binários específicos. Cada um deles possui o seu próprio código binário, que consiste num par de “valores opostos (positivo/negativo)” (LEITE, 2008, 20), segundo o qual se operarão as suas comunicações, donde o subsistema jurídico, v.g., opera o código lícito/ilícito, o econômico opera o código ter/não-ter, o científico o código verdadeiro/falso etc. Desse modo, para que se saiba diferenciar os subsistemas sociais entre si, basta conhecer os seus respectivos códigos binários.
Visto que a sociedade, na perspectiva de Luhmann, é um sistema que se caracteriza pela ocorrência de operações denominadas comunicações, diferenciada funcionalmente em sistemas parciais, interessa-nos, neste momento, estudar especificamente o subsistema jurídico e suas principais características conforme a referida perspectiva teórica. O primeiro ponto a ser elucidado com relação ao subsistema jurídico diz respeito à sua função.
Primeiramente, deve-se colocar que a diferenciação funcional da sociedade contemporânea ocorreu em razão da sua alta complexidade e da contingência que a permeia. Complexidade e contingência são conceitos bastante específicos na obra de Luhmann (1983, p. 45): “Por complexidade queremos dizer que sempre existem mais possibilidades do que se pode realizar”. A contingência, por sua vez, é vista por Luhmann da seguinte maneira: “Por contingência entendemos o fato de que as possibilidades apontadas para as demais experiências podem ser diferentes das esperadas” (1983, p. 45). Em outras palavras, as possibilidades são inúmeras na contemporaneidade, mas deve-se escolher entre elas, aí reside a complexidade, nessa situação de seleção forçada. A contingência diz respeito ao risco de as possibilidades esperadas não correspondam à realidade, de que não se concretizem, o que pode resultar em decepção no agente que nutria tais expectativas.
Um elevado grau de complexidade e de contingência implicam num elevado risco de desapontamento diante da não concretização de uma determinada expectativa. Para que seja possível contornar as instabilidades sociais que resultariam de tal modelo, Luhmann (1983, p. 56) relata a criação de duas estratégias para contornar a quebra de expectativas, permitindo que elas perdurem: o surgimento de expectativas cognitivas e normativas.
Ao nível cognitivo são experimentadas e tratadas as expectativas que, no caso de desapontamentos, são adaptadas à realidade. Nas expectativas normativas ocorre o contrário: elas não são abandonadas se alguém as transgride. […] Dessa forma as expectativas cognitivas são caracterizadas por uma nem sempre consciente disposição de assimilação em termos de aprendizado, e as expectativas normativas, ao contrário, caracterizam-se pela determinação em não assimilar o desapontamento.
Desse modo, diante do desapontamento de determinada expectativa, quando tal expectativa for reformulada para que fique de acordo com o que se observou, estar-se-á diante de uma expectativa cognitiva. Verificar-se-á uma expectativa normativa quando, ao contrário, a expectativa não se modifique mesmo em face de sua não concretização ou incompatibilidade com a realidade, mas permaneça ainda assim como uma expectativa válida.
Ferraz Jr. (2003, p. 103-104) dá continuidade ao raciocínio pontuando que, no caso das expectativas cognitivas, o que garante a sua durabilidade é a generalização das possibilidades por meio da observação, enquanto que, nas normativas, a durabilidade será garantida por uma generalização não adaptativa, elas seriam expectativas contrafáticas. Por contrafáticas, o autor quer dizer que tais expectativas continuam se sustentando mesmo quando os fatos se mostram contrários a elas, quando não se verificam no plano fático.
Um exemplo de expectativas cognitivas é encontrado na ciência: pode até ser que determinado comportamento seja esperado, mas, caso seja observado, em alguma pesquisa, por exemplo, que tal comportamento esperado não sucede, esse comportamento passará então a ser inesperado. Ou seja, ocorreu uma adaptação da expectativa. Já uma expectativa normativa ocorre, v.g., quando, uma lei obrigar o pagamento de determinado tributo. Caso alguém não pague o tributo, as outras pessoas, ainda assim, esperarão que tal tributo deverá ser pago. Nesse caso, apesar de sua inobservância, a expectativa continua a se sustentar.
Feitas essas considerações, ainda resta a pergunta, qual é a função do subsistema jurídico? Segundo Leite (2008, p. 18), a função do direito na perspectiva sistêmica é “[...] garantir expectativas normativas estabilizadas que viabilizem interações recíprocas entre indivíduos, diminuindo, dessa forma, a contingência”. Com efeito, segundo a definição de contingência apresentada acima – risco de decepção em face da não concretização de determinada expectativa – o subsistema jurídico, ao estabilizar determinada expectativa normativa, permitirá que ela continue valendo mesmo em caso de sua inobservância.
Segundo Luhmann (1983, p. 109), o direito cumpriria a sua função estabilizadora das expectativas comportamentais por meio do que ele chama de generalização congruente de expectativas nas dimensões temporal, social e prática, as quais se dariam, respectivamente, por meio da normatização, institucionalização e criação de núcleos de sentido. É desnecessário, contudo, descer a tais meandros do pensamento de Luhmann para se ater ao escopo deste trabalho. Devemos ter em mente que estamos tratando da teoria da constitucionalização simbólica de Marcelo Neves, e que aquele é citado apenas para que o pensamento deste possa ser mais bem compreendido.
Além de conhecer a função estabilizadora do direito na sociedade, outro conceito luhmanniano fundamental à compreensão da constitucionalização simbólica e relativo ao subsistema jurídico é o da autopoiese do direito. É preciso, contudo, entender primeiramente o que é a autopoiese, saber o que significa dizer que um sistema é autopoiético.
Neves (1996, 403)[2] observa que a palavra autopoiese tem origem grega, significando auto-criação, auto-reprodução. Isso teria lugar porque, nessa acepção, o sistema é constituído a partir dos elementos criados por ele mesmo, segundo o seu código-binário. O sistema autopoiético, desse modo, é chamado também de sistema fechado, ou auto-referencial.
A ideia de ser constituído a partir dos elementos que ele mesmo produz, entretanto, é apenas um dos momentos da auto-referência, chamado de auto-referência elementar, pois há ainda outros dois: a reflexividade e a reflexão. Fala-se em reflexividade quando, em um sistema, é possível verificar que um determinado processo refere-se ao mesmo tipo de processo sistêmico, devendo o processo referente e referido, portanto, possuir o mesmo código binário; a reflexão, por sua vez, remonta à ideia de auto-descrição, é o sistema referindo-se a ele mesmo para diferenciá-lo do ambiente (NEVES, 1996, p. 406-407). Ambos os conceitos são mais facilmente compreensíveis através da exemplificação. A reflexividade de um sistema autopoiético ocorreria quando, tomando como exemplo a pedagogia, ensina-se a se ensinar. A reflexão ocorreria quando se tenta identificar o que seja o sistema pedagógico.
Com relação ao âmbito específico do sistema jurídico, ele é visto por Luhmann como sendo um sistema autopoiético. Contudo, o seu fechamento não é absoluto, não há um isolamento completo do seu ambiente. Na verdade, fala-se que o sistema jurídico é operacionalmente fechado, ou normativamente fechado, ao mesmo tempo em que também é cognitivamente aberto. Como dispõe Neves (2007, p. 136-137):
Sendo assim, o sistema jurídico pode assimilar, de acordo com os seus próprios critérios, os fatores do ambiente, não sendo diretamente influenciado por esses fatores. A vigência jurídica das expectativas normativas não é determinada imediatamente por interesses econômicos, critérios políticos, representações éticas, nem mesmo por proposições científicas, pois depende de processos seletivos de filtragem conceitual no interior do sistema jurídico.
Isso quer dizer que o sistema jurídico, embora fechado, recebe estímulos do seu ambiente, mas processa-os de acordo com os seus critérios próprios. Na verdade, a autonomia do sistema jurídico implica que, embora receba esses estímulos externos, ele os processe conforme o seu código binário próprio. Assim, se o governo decide aumentar o valor de uma determinada taxa, por exemplo, tal evento certamente surtirá efeitos no sistema econômico, político e jurídico, mas esses efeitos serão processados por tais sistemas, caso sejam todos autopoiéticos, conforme os seus códigos binários específicos.
Os três momentos da auto-referência mencionados anteriormente também se aplicam ao direito. Dessa forma, auto-referência elementar, reflexividade e reflexão são relacionadas por Neves (2007, p. 153-154), respectivamente, com legalidade, constitucionalidade e teoria do direito. A legalidade relaciona-se com a auto-referência elementar porque o juízo de legalidade implica numa operação de aplicação do código binário do sistema jurídico, lícito/ilícito. A constitucionalidade relaciona-se com a reflexividade porque ela significa normatização das normas jurídicas. A teoria do direito, por sua vez, pode ser vista como reflexão, já que implica em auto-descrição do sistema jurídico e sua diferenciação do ambiente.
Outro dos pilares da teoria da constitucionalização simbólica é precisamente o tema da legislação simbólica. Mas em que consiste a legislação simbólica e quais são as suas características? A resposta a tais questões é fundamental para que se compreenda o que é a constitucionalização simbólica. Tais respostas, entretanto, serão mais bem compreendidas após algumas notas a respeito da linguagem jurídica que ajudarão a contextualizar a problemática da legislação simbólica no âmbito da teoria de Neves.
Os recursos à linguística como instrumento de investigação científica ocorrem com cada vez mais frequência no âmbito das ciências sociais, e com o direito tem ocorrido coisa semelhante, notadamente por meio do auxílio da semiótica em seus três níveis de investigação.
Mas em que consistem sintática, semântica e pragmática? Segundo Tércio Sampaio Ferraz Júnior (2003, p. 123): “A semiótica é a teoria dos signos (por exemplo, dos signos linguísticos, das palavras), em sua tríplice relação: signos entre si (sintaxe), em relação ao objeto (semântica) e aos seus usuários (pragmática) ”. Abrantes e Gonçalves da Silva (2005, p. 178) trazem maiores elucidações: “O vocábulo Semiótica vem da raiz grega semeion que significa signo, no sentido de linguagem. Sendo, pois, a ciência geral de todos os signos, símbolos, ligados à linguagem. ” Ou seja, semiótica é a ciência dos signos, signo é tudo aquilo que tem significado.
O professor Gustavo Rabay Guerra (2009, p. 13) aprofunda o significado das diferentes dimensões semióticas, inclusive do ponto de vista da sua instrumentalidade, a começar pela semântica:
Na análise semântica, o campo de estudo é o vínculo do signo com a realidade que exprime, onde o objetivo da investigação é procurar destacar dentre diversos possíveis, o significado correto dos signos, distinguindo e eliminando os demais que a ele se encontram associados, procurando extrair ao máximo toda a imprecisão natural dos termos, na maior parte oriundos da linguagem natural.
Juridicamente, a investigação semiótica no plano semântico prende-se à noção de realização da norma jurídica, pois aqui o signo é a norma, enquanto o objeto é o mundo dos fatos, onde se verificará a correspondência entre a prescrição normativa e a realidade. Concepções de cunho sociológico do direito possuem certa identificação com essa dimensão semiótica. Guerra (2009, p. 13) segue adiante com explicações sobre a dimensão sintática:
Na análise sintática, o ponto central de observação é sua relação com os demais que integram o sistema. Assim, tendo em vista o significado lingüístico contido em determinado signo, ou seja, seu conceito através da análise semântica, a investigação desloca-se para a relação formal como os demais integrantes do sistema onde encontra-se situado, imperando, nesse particular, as regras de sintaxe, representadas, sobretudo, pela gramática.
Transportando essa concepção para o direito, as teorias positivistas que tendem a ver o fenômeno jurídico com ênfase nas relações que as normas jurídicas travam entre si, como, por exemplo, o purismo jurídico kelseniano, costumam valer-se desse plano da análise semiótica como forma de trabalho. Por fim, o professor Guerra (Idem, p. 14) explana sobre a ótica pragmática:
Sob o aspecto pragmático, interessam os efeitos interacionais que o uso da linguagem produz entre os membros de uma comunidade linguística; vale dizer, estudam-se as relações sociais que se instauram através do uso concreto da linguagem.
Do ponto de vista jurídico, trata-se das relações instauradas entre os usuários dessa linguagem, o legislador, o aplicador e operador do direito, o intérprete etc. As análises puramente sintáticas do direito mostraram-se insuficientes para explicar satisfatoriamente a complexidade do fenômeno jurídico. A realidade é que as dimensões sintáticas e pragmáticas acabam sendo mais eficazes enquanto instrumento de análise do direito enquanto subsistema social.
De fato, se olharmos para o que foi mencionado anteriormente sobre as comunicações enquanto fenômeno caracterizador do sistema social e o aplicarmos especificamente sobre o sistema jurídico, percebe-se claramente a importância da análise semântico-pragmático desta linguagem. Veja-se Neves (2007, p. 88):
De acordo com o modelo luhmanniano, pode-se sustentar que a especialização da linguagem ordinária relaciona-se com o desenvolvimento separado de mecanismos complementares para a linguagem [...] e, por isso, com a formação dos esquemas binários correspondentes; no caso do direito, a especialização da linguagem resultaria do uso do código-diferença “lícito/ilícito” exclusivamente em um sistema funcional para isso diferenciado.
Como se vê, a linguagem jurídica é uma linguagem especializada a partir da linguagem ordinária que: “desenvolve-se basicamente a partir da situação semântico pragmática, variando intensamente de significado conforme a situação e o contexto comunicativos.” (NEVES, 2007, p. 88). Nesse sentido, o estudo da legislação simbólica insere-se plenamente no contexto dos campos semântico e pragmático da investigação linguístico-jurídica.
Como será visto adiante, o estudo da legislação simbólica implica numa análise tanto da concretização (relação signo-objeto) quanto das intenções ocultas na criação de diplomas legislativos (relação signo-usuário). Essa análise da linguagem jurídica sob o enfoque semiótico é, portanto, um bom link entre a teoria sistêmica luhmanniana – notadamente no que tange às comunicações e ao código binário do subsistema jurídico – com a legislação simbólica, ambas as perspectivas teóricas basilares na construção da teoria da constitucionalização simbólica de Marcelo Neves.
Dando seguimento à questão da legislação simbólica, é preciso primeiramente colocar que expressões como “simbólico”, “simbolismo” e “símbolo” possuem significados abundantes e variados no âmbito das ciências humanas e sociais. Em primeiro lugar, devemos mencionar trecho em que Neves (2005, p. 3) [3] procura explicar da sua maneira a expressão: “Muito comumente, a referência ao termo 'simbólico' sugere que se trata de algo diferente do fático, real. No entanto, toda a dimensão do semiótico, não apenas o simbólico no sentido que pretendo utilizar aqui, é realidade concernente à realidade”. Buscando, em seguida, escapar de eventuais confusões semânticas, procura estabelecer o significado adotado por ele da expressão “simbólico”. Para tanto, Neves (2007, p. 22) introduz os conceitos de agir instrumental e simbólico:
Diferentemente das variáveis instrumentais, a atitude simbólica não é orientada conforme uma relação linear de meio-fim e, por outro lado, não se caracteriza por uma conexão direta e manifesta entre significante e significado, distinguindo-se por seu significado mediato e latente.
No que toca o agir instrumental, por se tratar meramente de relação de meio-fim, não há ambiguidades, há apenas o seu significado imediato, as coisas são da maneira como se apresentam. Com relação ao agir simbólico, além do significado imediato, há um significado latente, indireto.
Ademais, ao afirmar-se que determinada ação é simbólica ou instrumental, não se quer dizer que ocorre apenas uma ou outra, apenas, mas que uma delas predomina em relação à outra (NEVES, 2007, p. 23). A ideia de simbólico, nos moldes adotados por Neves, nunca está, na prática, completamente desvinculada do instrumental, e vice-versa. Tal sobreposição de uma dessas duas funções, instrumental ou simbólica, sobre a outra pode ocorrer também no âmbito da produção legislativa. Com efeito, Neves (2007, p. 30) assevera:
Em sentido mais abrangente, pode-se dizer que uma quantidade considerável de leis desempenha funções sociais latentes em contradição com sua eficácia normativo-jurídica, ou seja, em oposição ao seu sentido jurídico manifesto […] pode-se definir a legislação simbólica como produção de textos cuja referência manifesta à realidade é normativo-jurídica, mas que serve, primária e hipertroficamente, a finalidades políticas de caráter não especificamente normativo-jurídico.
Tal definição, como se vê, encaixa-se muito bem nos conceitos de agir instrumental e simbólico trazidos anteriormente. O normativo-jurídico relaciona-se com o agir instrumental, por se tratar de relação de meio-fim, com significado direto e manifesto.
Quando uma norma determinando certa conduta é adotada precipuamente com o fim de fazer com que tal conduta seja observada, trata-se de um caso em que a função normativo-jurídica, instrumental, sobrepõe-se à político-ideológica, simbólica. Em sentido oposto, quando o que se busca não é, primariamente, a observância da conduta preceituada na norma, mas a realização de determinadas finalidades político-ideológicas, pode-se dizer que a norma tem um significado latente, indireto, que se sobrepõe a regulação instrumental do comportamento dos destinatários da norma.
Neves (2007, p. 33) adota, ademais, classificação que divide a legislação simbólica em três tipos diferentes: a legislação simbólica como confirmação de valores sociais, legislação-álibi e legislação como fórmula de compromisso dilatório.
Muitas vezes, no decorrer do processo legislativo, grupos de interesses afeitos a diferentes valores digladiam-se entre si pela aprovação de lei os reflita. Quando um grupo, então, ao final do processo legislativo, vê os seus valores contemplados em detrimento dos de outro grupo oposto, considera-se em posição de vantagem social. A eficácia da lei figa em segundo plano para este grupo, mais importante é o reconhecimento social dos seus valores, é nisso que consiste a legislação simbólica como confirmação de valores sociais.
Em continuidade, Neves (2007, p. 33-34) cita a seguinte caso a respeito dessa modalidade de legislação simbólica:
Um clássico exemplo no estudo da legislação simbólica é o caso da “lei seca” nos Estados Unidos, abordado pormenorizadamente por Gusfield. A sua tese central afirma que os defensores da proibição de consumo de bebidas alcoólicas não estavam interessados na sua eficácia instrumental, mas sobretudo em adquirir maior respeito social, constituindo-se a respectiva legislação como símbolo de status.
O significado latente, indireto, dessa modalidade de legislação simbólica residiria no reconhecimento dos valores sociais que ela implica, essa é a sua dimensão político-ideológica, que é hipertrofiada com relação à dimensão instrumental, sua eficácia. No exemplo, não interessa aos apoiadores da lei seca que não se consumisse bebidas mais do que o status que a aprovação de uma legislação nesse sentido lhes conferiria.
A segunda categoria de constitucionalização simbólica, a legislação-álibi, foi mencionada por Neves (2007, p. 37) da seguinte maneira:
O legislador, muitas vezes sob pressão direta do público, elabora diplomas normativos para satisfazer as expectativas dos cidadãos, sem que com isso haja o mínimo de condições de efetivação das respectivas normas. A essa atitude referiu-se Kindermann com a expressão “legislação-álibi”. Através dela, o legislador procura descarregar-se de pressões políticas ou apresentar o Estado como sensível às exigências e expectativas dos cidadãos.
Interessa muito mais ao legislador, nesse caso, dar uma resposta à população por meio da edição de uma lei do que, propriamente, em vê-la sendo cumprida. Exemplo típico, e que tem sido observado com relativa frequência no Brasil, é o da legislação penal editada após algum caso de violência que gere comoção nacional. Trata-se de tentativa de satisfazer a população pela simples criação da lei, não de sua observância. Diante do episódio de violência, o eleitorado exige uma resposta que se apresenta sob a forma de uma lei penal severa, que normalmente é inobservada e inócua do ponto de vista da redução da criminalidade. Contudo, tal resposta satisfaz os ânimos do eleitorado.
Ainda com relação à legislação-álibi, é interessante citar trecho em que Neves (2007, p. 39) faz observações finais a respeito de tal modalidade de legislação simbólica:
Parece, portanto, mais adequado afirmar que a legislação-álibi destina-se a criar a imagem de um Estado que responde normativamente aos problemas reais da sociedade, embora as respectivas relações sociais não sejam efetivamente normatizadas de maneira consequente conforme os respectivo texto legal.
Há que se mencionar ainda a última das modalidades de legislação simbólica. Trata-se da legislação simbólica como fórmula de compromisso dilatório. Assim como no caso da legislação como confirmação de valores sociais, nesse caso, ocorrerá também uma disputa entre grupos político-ideológicos diversos que se desdobrará no uso da legislação simbólica. Veja-se o seguinte trecho no qual Marcelo Neves (2007, p. 41) tece comentários a respeito da legislação simbólica enquanto fórmula de compromisso dilatório:
A legislação simbólica também pode servir para adiar a solução de conflitos sociais através de compromissos dilatórios. Nesse caso, as divergências entre grupos políticos não são resolvidas por meio do ato legislativo, que, porém, será aprovado consensualmente pelas partes envolvidas, exatamente porque está presente a perspectiva da ineficácia da respectiva lei.
A ideia é a de que, já prevendo que a lei não vá ser observada, o legislador aprova-a com vistas ao adiamento da solução da questão à que lei se propões resolver. É precisamente nesse adiamento da resolução do conflito que reside o significado latente da lei, ao passo que o significado manifesto está na noção de que ela solucionará a controvérsia.
Bastante ilustrativo, também, é o exemplo elencado por Neves (2007, p. 41-42) dessa modalidade de legislação simbólica:
Como “compromisso fórmula-dilatório” […] enquadra-se perfeitamente o caso da Lei norueguesa sobre empregados domésticos (1948), investigado muito habilidosamente por Aubert. A função manifesta dessa Lei teria sido a regulamentação das relações de trabalho; instrumentalmente o seu fim haveria sido a melhora das condições de trabalho dos empregados domésticos e a proteção dos seus interesses. A suavidade das normas sancionadoras a serem aplicadas nas donas de casa nas hipóteses de violação do diploma legal, dispositivos punitivos cujas dificuldades de aplicação decorriam da própria Lei, constituía um fator importante para garantir sua ineficácia. […] Foi exatamente essa previsível falta de efetiva concretização normativa que possibilitou o acordo entre grupos “progressistas” e tendências “conservadoras” em torno do conteúdo da Lei .
Como se vê, o conflito dos grupos de interesse resolve na própria perspectiva de ineficácia da lei, o que faz com que ambas as facções acordem em torno do seu conteúdo. O mesmo não se dá com a legislação simbólica como confirmação de valores sociais, hipótese na qual um dos grupos sai como vitorioso ideológico, mesmo que a lei não seja aplicada.
Bercovici (2005, p. 38), tratando do que ele chama de “batalha” pela implementação da constituição econômica, rememorou a questão das fórmulas de compromissos dilatórios:
Já em sua Teoria da Constituição (Verfassungslehre), de 1928, Carl Schmitt afirmava que essa Constituição, embora contivesse decisões políticas fundamentais sobre a forma de existência política concreta do povo alemão, possuía em seu texto inúmeros compromissos e obscuridades que não levavam a decisão alguma, mas, pelo contrário, cuja decisão havia sido adiada.
A citação do autor referida a Schmitt ilustra perfeitamente o sentido da legislação simbólica na modalidade de compromisso fórmula-dilatório. Trata-se da ideia de que é por meio de uma decisão legislativa que nada se decide.
A constitucionalização simbólica, contudo, não se confunde com a legislação simbólica. Como se verá, não é possível pegar aleatoriamente um dispositivo ou outro da constituição e classificá-lo como caso de fórmula de compromisso dilatório, legislação-álibi ou confirmação de valores sociais e daí concluir que se está diante de um caso de constitucionalização simbólica. Isso ocorrerá mesmo que em tal dispositivo haja uma discrepância entre sua função político-ideológica exacerbada e sua função instrumental rarefeita. A configuração da constitucionalização simbólica importa em mais requisitos do que a da legislação simbólica. Para compreender melhor a necessidade de tais requisitos, é preciso, antes, que sejam feitas algumas considerações sobre constituição, constitucionalização e concretização constitucional.
3. À CONSTITUCIONALIZAÇÃO SIMBÓLICA
No item anterior, foram vistos os pressupostos que dão sustentação à teoria da constitucionalização simbólica de Marcelo Neves, no presente, estudar-se-á a dita teoria em si. A principal referência será encontrada na obra do próprio Marcelo Neves, notadamente na segunda edição de A constitucionalização simbólica, publicada no Brasil em 2007.
Se a noção de legislação simbólica está clara como se deseja, é preciso, antes de se chegar à constitucionalização simbólica, tecer algumas considerações sobre a constituição no sentido pretendido por Neves. Aí estão inseridas questões como a diferença entre os conceitos de constituição e constitucionalização, bem como as relações entre constituição, direito e política.
Assim como a legislação simbólica relaciona-se com a questão da eficácia normativa, o mesmo se dá com a constitucionalização simbólica, sendo oportuno, portanto, explorar a dicotomia constituição/realidade constitucional. Por fim, caberá a conceituação da constitucionalização simbólica e a análise das suas consequências, tanto do ponto de vista sistêmico quanto sob outras perspectivas.
Assim como os conceitos de símbolo, simbólico e simbolismo, a expressão constituição também possui uma pluralidade de sentidos. Diante desse fato, Neves (2007, p. 64), ao tratar do assunto, faz uma recapitulação dos principais sentidos do termo – passando por Aristóteles, Lassalle, Kelsen, Karl Schmitt, entre outros – para, posteriormente, proceder a uma delimitação semântica:
De acordo com a orientação assumida no presente trabalho, os procedimentos decisórios, tanto constituintes como de concretização constitucional, filtram as expectativas jurídico-normativas vigentes. […] um subsistema normativo-jurídico, o qual, de um lado, tem uma relativa autonomia, de outro, encontra-se em permanente e variado inter-relacionamento com os sistemas sociais primariamente cognitivos, os outros sistemas ou formas de comunicação primariamente normativas e, especialmente, com outras dimensões do sistema jurídico.
Como se vê da definição, a constituição é um subsistema (normativo) do sistema jurídico. Ela mantém relações com outros sistemas sociais (relações estas denominadas, como se verá adiante, prestações) com o sistema social como um todo (relação a qual se denomina, como será explicado, função) e com outros subsistemas jurídicos.
Tais relações envolvem o subsistema constitucional, o sistema jurídico, o político e o social como um todo em uma intrincada rede cuja complexidade demanda análise pormenorizada. Esse complexo será examinado sob a ótica da constitucionalização. Para tanto, faz-se mister compreendê-la.
O termo constitucionalização, segundo Neves (2007, p. 64-65), liga-se à ideia de constituição no sentido moderno, ou seja, “limitação jurídica ao governo”, “antítese do regime arbitrário”. Nesse diapasão, a constituição no sentido moderno pode ser vista como decorrência da diferenciação funcional entre direito e política, sendo que a constitucionalização é o meio através do qual se dá essa diferenciação. É nesse ponto que, por meio de uma leitura sistêmica, fala-se em constituição como acoplamento estrutural entre direito e política. Explica-se.
A diferenciação funcional ocasionou, como visto, o surgimento de um sistema social onde podem ser encontrados um sem número de subsistemas, cada um realizando suas operações mediante códigos-binários próprios. O sistema jurídico e o político, embora sejam ambos os subsistemas autopoiéticos, isto é, operativamente fechados, possuem uma relação de bastante estreiteza entre si.
Na verdade, os sistemas político e jurídico estão sempre realizando interferências recíprocas, embora permaneçam autopoiéticos. O que possibilita isso é precisamente o fenômeno da constitucionalização, do surgimento da constituição em sentido moderno, pelo que Neves (2007, p. 67) assim explicita:
Através da Constituição como acoplamento estrutural, as ingerências da política no direito não mediatizadas por mecanismos especificamente jurídicos são excluídas e vice-versa. A autonomia operacional de ambos os sistemas é condição e resultado da existência desse “acoplamento estrutural”.
A leitura adotada por Neves (2007) é a de que a constitucionalização, o advento das constituições modernas, consiste na ideia de constituição enquanto acoplamento estrutural entre sistema jurídico e político, no fato de que ambos influenciam-se mutuamente apesar de permanecerem operando conforme o código-binário que lhes é próprio (ou seja, permanecendo autônomos) tendo a constituição como ferramenta que possibilita esse status. Curioso notar é que a ocorrência das relações entre direito e política com a manutenção do caráter autopoiético desses sistemas é viabilizada pela constituição, um subsistema normativo do sistema jurídico. Os sistemas político e jurídico, por meio desse arranjo, permanecem autônomos do ponto de vista operacional, embora se irritem reciprocamente.
É possível, aliás, fazer a seguinte analogia: enquanto sistemas não autônomos interagem como gêmeos siameses, a política e o direito, por meio do acoplamento estrutural consistente no subsistema constitucional, interagem como bolas de bilhar, que, embora se chocando umas com as outras, permanecem intactas (CADEMARTORI, 2004, p. 182).
Da constituição enquanto acoplamento estrutural entre direito e política, é possível extrair algumas implicações. A primeira delas diz respeito à importância da constituição para a autonomia do sistema jurídico. A segunda diz respeito à função social e a prestação política da constituição. Para elucidar o significado delas, é preciso dissecar a maneira como elas ocorrem no âmbito das relações que cercam o trinômio direito-constituição-política.
Marcelo Neves (2007, p. 70-71), mais uma vez apoiando-se em Luhmann, entende que é a constituição que permite a autonomia operacional do sistema jurídico. Senão vejamos:
A hierarquização interna “Constituição/lei” atua como condição de reprodução autopoiética do direito moderno; serve, portanto, ao seu fechamento normativo e operacional. […] Dessa maneira, qualquer intervenção legiferante do sistema político no direito é mediatizada por normas jurídicas. O sistema jurídico ganha com isso critérios para a aplicação do código “lícito/ilícito” ao procedimento legislativo.
Com isso, Neves (2007) quer dizer que a constituição impede que questões políticas passem por cima do direito, sem respeito ao seu código-binário, através da criação de normas para elaboração de normas. Para que alguma questão decorrente do sistema político possa afetar as operações do sistema jurídico, é preciso antes que se submeta ao procedimento legislativo descrito no âmbito constitucional, tornando-se, dessa forma, norma jurídica. Trata-se, portanto, de uma questão de reflexividade – no sentido técnico visto acima de processo que se refere ao mesmo tipo de processo dentro do próprio sistema, fazendo uso, portanto, do mesmo código binário – do sistema jurídico.
Em passagem bastante contundente por sua clareza, Neves (2007, p. 71) assevera:
O direito constitucional funciona – pode-se afirmar do ponto de vista jurídico-sociológico – como limite sistêmico-interno para a capacidade de aprendizado (abertura cognitiva) do direito positivo; em outras palavras: a Constituição determina como e até que ponto o sistema jurídico pode reciclar-se sem perder sua autonomia operacional.
Isso significa que o sistema jurídico poderá absorver influências de outros sistemas dentro das balizas traçadas pela constituição para que permaneça autopoiético. Tais balizas residem precisamente no processo legislativo. Todas as injunções intersistêmicas que seguirem os trâmites de tal processo tornam-se norma jurídica, ingressam no sistema jurídico e permite que ele esteja em constante reciclagem e renovação.
No que diz respeito à segunda das consequências da constitucionalização, a função social e a prestação política da constituição, trata-se, primeiramente, de esclarecer que é um assunto precipuamente voltado para as relações entre a constituição, enquanto subsistema do sistema jurídico, com a sociedade e o subsistema político. Se as constituições modernas desempenham um papel perante o sistema jurídico, garantindo-lhe a sua autonomia, é certo que também o fazem com relação ao sistema social e ao seu subsistema político.
Devemos, primeiramente, ressaltar que a nomenclatura adotada para estas relações, segundo Neves, é dividida entre função em sentido estrito e prestação em sentido estrito (2007, p. 74), sendo que aquela diz respeito às relações entre um subsistema e a sociedade enquanto sistema social mais abrangente; e esta, às relações que subsistemas da sociedade travam entre si. Aplicando-se tal sistemática ao tema em estudo, vemos que as relações entre a constituição (um subsistema do direito) com a sociedade consistem num caso de função. Já as relações entre constituição e subsistema político, logo, serão um caso de prestação.
Comecemos com a função social em sentido estrito desempenhada pelas constituições. Veja-se o que diz Neves (2007, p. 78) ao sintetizar a visão sobre o assunto:
Nessa perspectiva pode-se afirmar que, na sociedade supercomplexa de hoje, fundadas em expectativas e interesses os mais diversos e entre si contraditórios, o direito só poderá exercer satisfatoriamente sua função de congruente generalização de expectativas normativas de comportamento enquanto forem institucionalizados constitucionalmente os princípios da inclusão e da diferenciação funcional e, por conseguinte, os direitos fundamentais sociais (Estado de bem-estar) e os concernentes à liberdade civil e à participação política.
Como é possível perceber, Neves (2007) relaciona os direitos fundamentais – institucionalizados por meio das constituições modernas – aos princípios da inclusão e da diferenciação funcional, e os reputa como necessários ao cumprimento da função do direito, já expressa anteriormente, qual seja, estabilizar as expectativas normativas. O trecho supracitado, entretanto, demanda algum detalhamento do significado do princípio da inclusão e da diferenciação funcional.
No que tange ao princípio da inclusão, este diz respeito “à inserção de toda a população nas prestações de cada um dos sistemas dos sistemas funcionais da sociedade” (NEVES, 2007, p. 76). Isso se dá quando os direitos fundamentais asseguram, por exemplo, a participação na vida coletiva, na política, e inclusive condições materiais mínimas por meio dos direitos de cunho social, relacionados ao Estado de bem-estar. O fato de a população inserir-se em todas as prestações dos sistemas funcionais da sociedade – prestações que, como visto logo acima, em seu sentido estrito, significam as relações entre os sistemas parciais da sociedade – está perfeitamente em sintonia com a ideia de institucionalização do princípio da diferenciação funcional. Isso porque a diferenciação funcional dos subsistemas sociais decorrente da crescente complexidade da sociedade atual não é compatível com a não inclusão da população nos diversos grupos sociais.
Além da função social em sentido estrito das constituições, interessa-nos também as suas prestações políticas, notadamente no que tange às eleições democráticas e do princípio da separação dos poderes. Como é fácil perceber, a função social da constituição (a institucionalização dos direitos humanos) abrange as suas prestações políticas, tendo em vista que os direitos políticos e a separação dos poderes são categorias inseridas nos direitos fundamentais, notadamente nos chamados direitos fundamentais de primeira geração. Ainda assim, entretanto, eles merecem análise pormenorizada em face da sua importância.
Em primeiro lugar, a regulação jurídico-constitucional do procedimento democrático como prestação em sentido estrito do direito com relação à política. Vejamos a opinião de Marcelo Neves (2007, p. 80) sobre o assunto:
A “generalização do apoio político” que decorre do procedimento eleitoral constitucionalmente regulado serve, por conseguinte, à diferenciação do sistema político, funcionando como empecilho à sua manipulação por interesses particularistas. Sem eleições democráticas ou um equivalente funcional, parece impossível, na sociedade complexa de hoje, que os sistemas político e jurídico não se identifiquem excludentemente com concepções ideológicas abrangentes ou interesses de grupos privilegiados. A falta de eleições democráticas conduz, nas condições atuais, à identificação do “Estado” com determinados grupos e, com isso, à desdiferenciação do sistema jurídico, inadequada à complexidade da conexão de comunicações, expectativas e interesses constitutivos da sociedade.
Como é possível apreender da citação acima, a regulamentação constitucional de eleições democráticas é assunto que se entrelaça com os mencionados princípios da diferenciação funcional e da inclusão. Se o procedimento eleitoral caracteriza-se por adotar um voto universal, secreto e igual para todos, ocorrerá o seguinte: todos participarão do sufrágio (o voto é universal), há, dessa maneira, inclusão; por ser secreto, não haverá coação na escolha daquele em quem votar; e, finalmente, por ser igual, o voto dos integrantes de classes sociais que possuem status diferente terá o mesmo peso na escolha dos candidatos. Todos os grupos sociais estão incluídos no procedimento eleitoral (princípio da inclusão) e há independência do eleitor em face de seus outros papéis funcionais (diferenciação funcional) com a regulamentação constitucional das eleições.
A segunda das prestações políticas realizadas pela constituição a ser estudada – e a mais importante delas para o exame do problema abordado neste trabalho monográfico – consiste na institucionalização constitucional da separação dos poderes. Como é possível depreender da citação transcrita a seguir, trata-se, mais uma vez, de evitar a confusão entre direito e política, ou seja, impedir a desdiferenciação entre esses sistemas parciais da sociedade. Vejamos como Neves (2007, p. 81) se posiciona sobre esta questão:
A introdução de procedimentos funcionalmente diferenciados (legislativo, judiciário e político-administrativo), mediante a institucionalização da “divisão de poderes”, aumenta a capacidade dos sistemas político e jurídico de responder às exigências do seu respectivo ambiente, repleto de expectativas as mais diversas e entre si contraditórias. A ausência ou deformação do princípio da “divisão dos poderes” leva a desdiferenciação das esferas da vida (politização abrangente) e tem-se mostrado incompatível com a complexidade da sociedade atual.
Desse modo, vemos que Neves considera que a divisão dos poderes se presta “à limitação do poder político por uma esfera jurídica autônoma” (2007, p. 81). Isso claramente significa uma adequação ao princípio da especialização funcional. A própria ideia de separação de funções do Estado, que subjaz à teoria clássica da separação dos poderes, não poderia combinar mais com a noção de especialização funcional.
Mas em quais situações é possível afirmar que o princípio da separação dos poderes está presente e em quais não está? Em obra posterior, Neves (2008, p. 186) propõe uma releitura conceitual do supracitado princípio. Segundo o autor, ao invés de separação dos poderes, no Estado Democrático de Direito, é mais adequado falar em pluralidade e circularidade de procedimentos, pois “O Estado Democrático de Direito legitima-se problematicamente através da conexão circular e conflituosa entre procedimentos eleitoral, legislativo-parlamentar, jurisdicional e político-administrativo”. A releitura proposta por Neves privilegia a ideia de que, além de caracterizem-se por procedimentos distintos (plurais), os poderes interagem entre si, estão conectados. Destarte, é possível concluir que não ocorre separação dos poderes quando há uma quebra da pluralidade ou da circularidade dos procedimentos que caracterizam o Estado Democrático de Direito.
Conhecendo as teorias em torno da legislação simbólica e a ideia de Constituição sob a perspectiva da teoria sistêmica, pode-se, finalmente, partir para a elucidação da teoria da constitucionalização simbólica. Assim como na legislação simbólica, a constitucionalização simbólica implica uma hipertrofia da função simbólica da norma constitucional em detrimento da sua função instrumental. Trata-se de um problema, segundo o tratamento dispensado por Neves (2007) ao assunto, que envolve a realidade constitucional em oposição ao texto constitucional. Em outras palavras, trata-se de um problema de concretização constitucional.
Neves (2007, p. 85), entretanto, não aborda a questão da concretização do texto constitucional pura e simplesmente por meio da discrepância entre norma e realidade constitucional. Sustentado pelo pensamento dos constitucionalistas Friedrich Müller e Peter Häberle, ele entende que a questão da concretização constitucional envolve tanto o ambiente no qual a norma jurídica está inserida quanto as pessoas e grupos envolvidos na sua aplicação, respectivamente. Segundo o pensamento de Müller, lembrado por Neves (2007, p. 85): “A norma jurídica, especialmente a norma constitucional, é produzida no decorrer do processo de concretização”. A perspectiva Häberliana, por seu turno, envolve os participantes da interpretação constitucional, donde é possível deduzir que “o texto constitucional só obtém sua normatividade mediante a inclusão do público pluralisticamente organizado no processo interpretativo” (NEVES, 2007, p. 86).
Tais teorias interpretativas podem ser também explicadas, por meio do recurso à semiótica, sob as perspectivas sintática, semântica e pragmática. Veja-se o que assevera Neves (2007, p. 86-87) a respeito da das visões de tais autores sob um ângulo semiótico:
Em Müller, trata-se das características semânticas da linguagem jurídica, especialmente da linguagem constitucional, a ambiguidade e a vagueza, que exigem um “processo de concretização”, não simplesmente um “procedimento de aplicação” conforme regras de subsunção. No caso de Häberle, a questão diz respeito à relação pragmática da linguagem com diversos expectantes e “utentes”, o que implica um discurso conflituoso e “ideológico”. Os aspectos semânticos e pragmáticos relacionam-se, porém, mutuamente [...] Somente sob as condições de uma unidade de interesse e concepção do mundo, as questões constitucionais perderiam sua relevância semântico-pragmática, para se tornarem primariamente questões sintáticas, orientadas pelas regras da dedução lógica e subsunção. Mas tal situação é seguramente incompatível com a complexidade da sociedade moderna.
Como se vê, além de explicitar os pensamentos de Müller e Häberle de um ponto de vista semiótico, Neves (2007) critica as acepções que tendem a ver o direito de uma maneira sintática – aqui ele refere-se às teorias positivistas, cujo cerne reside nas relações que as normas jurídicas travam entre si, deixando de lado as relações entre a norma jurídica e o seu ambiente (perspectiva semântica) e entre a norma e os seus usuários (perspectiva pragmática) –, cujo paradigma é a teoria kelseniana do direito. Uma perspectiva puramente semântica do direito é uma simplificação do fenômeno jurídico que não corresponde à realidade, ainda mais no campo do direito constitucional, onde o texto das normas é mais vago e ambíguo, no que decorre uma preponderância ainda maior do papel do intérprete. Ferraz Júnior (2003, p. 190) traz uma excelente exemplificação de como se dão as relações de concretização normativa no âmbito constitucional:
Ademais, a posição pragmática é de que o sistema do ordenamento, não se reduzindo a uma (única) unidade hierárquica, não tem estrutura de pirâmide, mas estrutura circular de competências referidas mutuamente, dotada de coesão. Por exemplo, o Supremo Tribunal Federal recebe do poder constituinte originário sua competência para determinar em última instância o sentido normativo das normas constitucionais. Desse modo, seus acórdãos ou norma cuja validade decorre de uma norma constitucional de competência, configurando uma subordinação do STF ao poder constituinte originário. No entanto, como o STF pode determinar o sentido da validade da própria norma que lhe dá aquela competência, de certo modo, a validade da norma constitucional de competência do STF também depende de seus acórdãos (norma), configurando uma subordinação do poder constituinte originário ao STF.
Como se vê, há, na verdade, uma relação de circularidade hierárquica entre aquilo que é decidido pelo tribunal constitucional e o próprio texto constitucional. A corte constitucional deve decidir conforme a constituição, e o significado do texto da constituição deve ser elucidado através da interpretação feita pela corte constitucional. Desse modo, podemos afirmar também que o dogma da supremacia hierárquica da constituição, sempre presente nas explicações de cunho sintático do direito, não é sustentável quando se atenta para as outras duas perspectivas semióticas.
O bom entendimento das relações entre a constituição e a realidade constitucional é fundamental para a compreensão do primeiro dos dois sentidos da constitucionalização simbólica, o sentido negativo, o qual é definido por Neves (2007, p. 91) como sendo a “insuficiente concretização normativo-jurídica generalizada do texto constitucional”. Considerando-se o que foi visto a respeito de concretização constitucional, devemos ter em mente que essa é uma questão que, além de envolver a dicotomia entre texto e realidade constitucional, inclui também os participantes do processo de concretização constitucional. Isso significa que, em situações de constitucionalização simbólica, “as disposições constitucionais não são relevantes para os órgãos estatais vinculados estritamente à sua interpretação-aplicação” (NEVES, 2007, p. 94). Entre os órgãos estatais vinculados estritamente à interpretação-aplicação da constituição, devemos incluir necessariamente aqueles para os quais o texto constitucional emite mandamentos, v.g., Congresso Nacional, Supremo Tribunal Federal, Conselho Nacional de Justiça etc.
Se a constitucionalização simbólica possui dois sentidos, sendo o primeiro deles o sentido negativo, que consiste na insuficiente concretização normativa do seu texto, cabe perquirir a respeito do seu segundo sentido. Este é o sentido positivo, que se caracteriza pela função político-ideológica da atividade constituinte e do texto constitucional. Como é possível perceber, o sentido positivo da constitucionalização simbólica relaciona-se com a própria função simbólica da constituição, hipertrofiada em comparação à função instrumental, tal qual se passa com a legislação simbólica. Ao falar sobre as características de uma constituição simbólica, Marcelo Neves assevera (2007, p. 96):
Portanto, sentido positivo da constitucionalização simbólica está vinculado à sua característica negativa, já considerada no item anterior. Sua definição engloba esses dois momentos: de um lado, sua função não é regular as condutas e orientar as expectativas conforme as determinações jurídicas das respectivas disposições constitucionais; mas, de outro lado, ela responde a exigências e objetivos políticos concretos.
Percebe-se, portanto, que a constitucionalização simbólica, assim como a legislação simbólica, tem como característica marcante a hipertrofia da função simbólica (o papel político-ideológico) em detrimento da função instrumental (o papel de orientação de condutas e expectativas) da norma. Mas em que ponto elas diferem? Afinal de contas, se fossem a mesma coisa, seria inconveniente a criação de duas categorias distintas.
As duas diferenciam-se, na verdade, pelo fato de que a constitucionalização simbólica possui maior abrangência do que a legislação simbólica. Na verdade, a constitucionalização simbólica ocorre quando há comprometimento do sistema jurídico como um todo, e não apenas de diplomas jurídicos específicos, como ocorre com a legislação simbólica. Vejamos a definição de Neves (2007, p. 100):
Fala-se de constitucionalização simbólica quando o problema do funcionamento hipertroficamente político-ideológico da atividade e texto constitucionais afeta os alicerces do sistema jurídico constitucional. Isso ocorre quando as instituições constitucionais básicas – os direitos fundamentais (civis, políticos e sociais), a “separação” de poderes e eleição democrática – não encontram ressonância generalizada na práxis dos órgãos estatais nem na conduta e expectativas da população.
Como é possível perceber, a abrangência da constitucionalização simbólica vai além de certos diplomas legais ou dispositivos normativos, atingindo o âmago do sistema jurídico-constitucional, retratado por Neves (2007, p. 74) como sendo os direitos fundamentais, a divisão dos poderes e a regulamentação de eleições democráticas. É interessante perceber que essas “instituições constitucionais básicas” são, na verdade, a função e a prestação política em sentido estrito desempenhados pelo sistema constitucional perante o sistema social como um todo e o sistema político, respectivamente. Isso leva a crer que a constitucionalização simbólica acarreta importantes consequências do ponto de vista sistêmico – assim como do ponto de vista semiótico –, as quais serão objeto de estudo no próximo item.
Tais consequências, entretanto, serão abordadas em momento mais oportuno, adiante. Interessa-nos, neste momento, abordar outro traço que diferencia a legislação simbólica da constitucionalização simbólica, o qual está relacionado com a tipologia daquela. Vimos que a legislação simbólica é passível de ser classificada em três tipos: a legislação simbólica enquanto confirmação dos valores sociais, como fórmula de compromisso dilatório e a legislação-álibi.
A estas três formas de legislação simbólica, poder-se-ia criar uma correspondência com a constitucionalização simbólica, donde resultaria a seguinte tipologia: “1) a constitucionalização simbólica destinada à corroboração de determinados valores sociais; 2) a Constituição como fórmula de compromisso dilatório; 3) a constitucionalização-álibi” (NEVES, 2007, p. 102). Neves (2007, p. 102-103), no entanto, opta por restringir a constitucionalização simbólica aos casos de constitucionalização álibi, pois apenas nessa situação é possível verificar efetivamente o comprometimento do sistema jurídico-constitucional em seus alicerces (como visto, direitos fundamentais, eleições democráticas e separação dos poderes. Nas hipóteses de constitucionalização simbólica enquanto confirmação de valores sociais e fórmula de compromisso dilatório, a hipertrofia da função simbólica do texto constitucional em detrimento da sua função instrumental restringir-se-ia a questões pontuais, das quais não seria possível observar danos ao núcleo do sistema jurídico-constitucional.
Vimos que a constitucionalização simbólica foi definida por Neves (2007) como a situação na qual ocorre hipertrofia da função simbólica do texto constitucional em detrimento de sua função instrumental com consequente abalo ao núcleo do sistema constitucional, o qual compreende os direitos fundamentais, as eleições democráticas e a divisão de poderes. Qual é, destarte, o significado de um quadro de constitucionalização simbólica do ponto de vista da teoria dos sistemas de Luhmann?
Neves (2007) aborda a questão de um ponto de vista bastante inovador. Para ele, a ideia de que o direito seja um sistema autopoiético é passível de críticas. Neves entende, na verdade, que o direito em certas situações, entre as quais podemos citar a constitucionalização simbólica, é alopoiético, isto é, não possui autonomia operacional.
Embora seja uma perspectiva bastante inovadora de encarar a teoria sistêmica do direito, Neves não é o único a criticar a noção de direito como sistema autopoiético. Autores como Teubner, Ladeur e Pogrebinschi também o fazem. Vejamos a opinião da autora brasileira, que tece comentários ácidos à teoria luhmannuana à luz da nossa realidade (PROGRESBINSCHI, 2004, p. 166):
Para que serve a teoria dos sistemas autopoiéticos se ela é incapaz de explicar a realidade jurídica contemporânea? Seu valor é unicamente teórico. […] Como o direito no Brasil pode ser descrito na linguagem luhmanniana, se não (sic) como um sistema alopoiético, se não (sic) pela corrupção dos códigos? Basta pensar em uma decisão do nosso Supremo Tribunal Federal para perceber que é de outro conceito de autonomia jurídica que precisamos.
Vejamos agora, segundo Neves (2007, p. 146-147) quais são os mecanismos por trás da autopoiese do direito:
Isso significa a sobreposição de outros códigos de comunicação, especialmente do econômico (ter/não ter) e do político (poder/ não poder), sobre o código “lícito/ilícito”, em detrimento da eficiência, funcionalidade e mesmo racionalidade do direito. […] É na capacidade de “releitura” própria das determinantes ambientais que o sistema se afirma como autopoiético. Na medida em que, ao contrário, os agentes dos sistema jurídico estatal põem de lado o código-diferença “lícito/ilícito” e os respectivos programas e critérios, conduzindo-se ou orientando-se primária e frequentemente com base em injunções diretas da economia, do poder, das relações familiares etc., cabe, sem dúvida, sustentar a existência da alopoiese do direito.
Desse modo, um sistema alopoiético é o oposto do autopoiético, tendo em vista que não tem capacidade de determinar a si mesmo conforme o seu próprio código. O código binário de um sistema alopoiético é, na verdade, bloqueado pelo código de outro sistema que a ele se sobrepõe. Nesse sentido, é possível distinguir a constitucionalização simbólica como um quadro em que a autonomia operacional do direito é violada pelo sistema político. O código binário do direito (lícito/ilícito), que se manifesta na função instrumental da norma jurídica, é bloqueado pelo código binário do sistema político (poder/não-poder), o qual se manifesta na função simbólica da norma.
De fato, Neves (2007, p. 149) compreende a constitucionalização simbólica a alopoiese do sistema jurídico causado pela sobreposição do sistema político a este:
No caso de constitucionalização simbólica, a politização desdiferenciante do sistema jurídico não resulta do conteúdo dos próprios dispositivos constitucionais. Ao contrário, o texto constitucional proclama um modelo político-jurídico no qual estaria assegurada a autonomia operacional do direito. Mas do sentido em que se orientam a atividade constituinte e a concretização do texto constitucional resulta o bloqueio político da reprodução operacionalmente autônoma do sistema jurídico.
O trecho acima corrobora a noção de que a constitucionalização simbólica é, do ponto de vista sistêmico, a sobreposição do sistema político ao jurídico por meio do bloqueio do código binário daquele por este, com a consequente quebra da autonomia operacional do direito. É de se notar, no entanto, que, embora a insuficiente concretização do texto constitucional em razão de injunções políticas (quebra da autonomia operacional do direito pela política) seja encarada como característica negativa – no sentido de omissão – da constitucionalização simbólica, ela decorre da ação dos agentes responsáveis pela concretização constitucional, que não é orientada no sentido de promover uma maior realização da função instrumental do texto da constituição. Ela está também está ligada, portanto, a uma característica positiva (comitiva), qual seja, o atuar desses agentes.
Interessa-nos salientar, ademais, que, embora o sistema político sobreponha-se ao jurídico nas hipóteses de constitucionalização simbólica, não se deve crer que o sistema político seja por isso autônomo. O sistema político é igualmente alopoiético, sendo o seu código-binário subordinado a outros. Neves (2007, p. 153) entende que a constitucionalização simbólica é uma forma de “encobrimento da falta de autonomia e da ineficiência do sistema político estatal, sobretudo com relação a interesses econômicos particularistas”. Dessa forma, podemos concluir que o sistema político é, na realidade, o veículo por meio do qual outros sistemas – notadamente o econômico, como podemos aduzir do trecho imediatamente anterior – bloqueiam o código binário do sistema jurídico e subsequentemente quebram a sua autonomia.
Podemos nos aprofundar nas consequências sistêmicas da constitucionalização simbólica em dois pontos: a auto e a heterorreferência do direito enquanto sistema. A auto-referência do sistema jurídico, como visto no item 1.1, é constituída de três momentos: a auto-referência elementar, a reflexividade e a reflexão. Vimos também que estes três momentos são relacionados por Neves, respectivamente, com legalidade, constitucionalidade e teoria do direito. Pergunta-se, quais seriam as consequências da constitucionalização simbólica sobre a auto-referência do sistema jurídico?
Esses três momentos da auto-referência do sistema jurídico são, na verdade, interdependentes (NEVES, 2007, p. 156). Não é possível falar em legalidade quando não há uma cultura de constitucionalidade na qual se determine o que é legal ou não, assim como também não há que se falar em constitucionalidade em um cenário no qual a legalidade não é respeitada, afinal de contas, a legalidade faz parte do núcleo do sistema jurídico-constitucional na medida em que constitui um dos mais relevantes caracteres dos direitos fundamentais. Por fim, tanto a legalidade quanto a constitucionalidade não prescindem de uma teoria do direito bem estabelecida e vice-versa, tendo em vista que elas atuam reciprocamente na construção e institucionalização umas das outras. Sendo assim, na hipótese de constitucionalização simbólica, onde ocorre alopoiese do sistema jurídico e insuficiente concretização do texto constitucional, é forçoso concluir que não haverá uma adequada auto-referência do direito, estando esta prejudicada em seus três momentos.
Além da auto-referência (fechamento operacional do direito), a constitucionalização simbólica, logicamente, afetará a heterorreferência, isto é, a maneira como este subsistema social relaciona-se com a sociedade e com outros subsistemas. Falamos aqui, naturalmente, da função e das prestações políticas da constituição.
A função da constituição perante a sociedade é a institucionalização dos direitos fundamentais, e as suas prestações políticas consistem na previsão de eleições democráticas e da divisão de poderes. Tais relações serviriam como meio de viabilizar a diferenciação funcional e a inclusão social, conforme visto em item anterior. Elas são também (as eleições democráticas, a divisão de poderes e os direitos fundamentais) o núcleo do sistema constitucional, que, caso seja mal concretizado numa situação de hipertrofia função simbólica das normas constitucionais, resultará num quadro de constitucionalização simbólica. É fácil deduzir, portanto, que, havendo constitucionalização simbólica, necessariamente ocorrerão problemas de heterorreferência no sistema jurídico-constitucional em pelo menos uma de suas relações, seja ela função ou prestação.
Do ponto de vista semiótico, outras consequências da constitucionalização simbólica podem ser verificadas. Primeiramente, a insuficiente concretização do texto constitucional indica desde já uma deficiência semântica das constituições enquadráveis como simbólicas. Do ponto de vista sintático, sendo a constituição uma instância normativa que regulamenta outras normas, temos que a constituição simbólica não possui normatividade o suficiente para ter a devida influência sobre as outras normas. Por fim, pragmaticamente falando, vimos que há uma deficiência, no sentido de que os responsáveis pela interpretação e aplicação da carta constitucional muitas vezes são aqueles que deturpam o seu sentido e aplicabilidade.
Outra constatação interessante que pode ser feita relativamente às relações entre semiótica e constitucionalização simbólica insere-se no contexto dos códigos fortes e fracos. Trata-se, na verdade, de uma distinção entre os códigos da linguagem em razão da postura dos seus usuários, conforme explica Ferraz Júnior 2003, p. 284):
O código forte confere à prescrição um sentido estrito. […] O rigor, porém, estreita o espaço de manobra do destinatário, pois dele se exige um comportamento estrito. Assim, a tendência do receptor é ganhar espaço, ampliar sua possibilidade de comportamento. Por isso ele decodifica a prescrição conforme um “código fraco”, isto é, pouco rigoroso e flexível .
Neves (2007, p. 165), valendo-se dessa distinção, chega às seguintes conclusões:
[…] é possível afirmar-se que a constitucionalização simbólica implica um código jurídico fraco em face dos códigos binários “poder/não-poder” (político) e “ter/não-ter” (econômico). Esses, códigos fortes, bloqueiam a comunicação consistente e generalizada nos termos da diferença “lícito/ilícito” como código fraco.
Ou seja, trata-se de outra forma de dizer que o sistema político e o econômico sobrepõem-se ao jurídico, o qual perde sua autonomia operacional, mudando o seu status de sistema autopoiético para alopoiético. Isso ocorre quando a função simbólica das normas constitucionais é hipertrófica em relação à sua função instrumental de modo que afete algum dos alicerces do sistema constitucional (direitos fundamentais, eleições democráticas e separação dos poderes).
Do ponto de vista político, por sua vez, é possível estabelecer algumas correlações interessantes decorrentes da constitucionalização simbólica. Para chegar a tais correlações, Neves (2007, p. 105-107) utiliza-se do modelo classificatório de Loewenstein, segundo o qual as constituições podem ser dividas em normativas, nominalistas e semânticas.
As constituições normativas seriam aquelas em que “direcionam realmente o processo de poder”. São aquelas constituições cujas prescrições normativas são dotadas de eficácia, que se concretizam e determinam de fato a conduta de todos os agentes para os quais os seus mandamentos estão voltados. Ela difere radicalmente das constituições nominalistas, as quais, segundo Neves (2007, p. 105), “apesar de conterem disposições de limitação e controle da dominação política, não teriam ressonância no processo real de poder, inexistindo suficiente concretização”. As constituições nominalistas, na verdade, situam-se entre os extremos da constituição normativa e semântica.
Os apontamentos de Neves (2007, p. 109) relativos às constituições semânticas começam com uma nomenclatura que ele considera mais adequada à espécie em questão:
Em relação às “Constituições semânticas”, cabe inicialmente uma mudança de denominação [...] Considerando-se que elas foram designadas “instrumentos” dos detentores do poder, parece mais adequada a expressão “Constituições instrumentalistas”.
Prossegue o autor com a descrição desse tipo de constituição comparando-a com as outras duas (2007, p. 109):
As “Constituições instrumentalistas”, ao contrário das “nominalistas”, correspondem à realidade do processo de poder, mas, por outro lado, em oposição às “normativas”, não têm nenhuma reação contrafática (normativa) relevante sobre a atividade dos ocasionais detentores do poder. É o caso das experiências autocráticas contemporâneas, sejam autoritárias ou totalitárias.
Nota-se, portanto, que as constituições instrumentalistas são o veículo por excelência de regimes não democráticos, sendo apenas reflexo das relações reais de poder. Nas próprias disposições normativas desse tipo de constituição é possível encontrar elementos que refletem a subordinação da esfera jurídica à política. Percebemos, por outro lado, que a constituição nominalista é aquela que mais se aproxima da ideia de constitucionalização simbólica, tendo em vista que ela busca preservar uma aparência de democracia e respeito aos direitos políticos e fundamentais, que se desfaz em face da não concretização de seus dispositivos
Mas quais são as consequências políticas da constitucionalização simbólica? O que poderá resultar nas relações de poder em uma sociedade cuja constituição caracterize-se como simbólica? Neves (2007, p. 126) elenca as seguintes possibilidades:
Como problema estruturalmente condicionado, o desgaste da constitucionalização simbólica poderá conduzir a movimentos sociais e políticos por transformações consequentes em direção a um sistema constitucional democrático efetivo. É possível também que conduza à apatia das massas e ao cinismo das elites. A reação mais grave, contudo, é o recurso à “realidade constitucional” mediante a imposição do padrão autoritário e o estabelecimento de constituição instrumental, na qual se exclui ou limita radicalmente o espaço da crítica à própria “realidade” de poder.
Percebe-se que três situações diferentes podem emergir duma condição de constitucionalização simbólica. Uma delas decorre do inconformismo das massas com o estado de coisas resultante da constitucionalização simbólica, redundando na luta pela implementação de uma constituição concreta, capaz de condicionar as relações de poder no seio da sociedade. A segunda ocorreria em face da indiferença, a população toleraria a situação, enquanto os donos do poder se aproveitam de sua posição privilegiada. Por fim, temos a possibilidade da imposição do regime autoritário, por meio do recurso à constituição instrumental; esta solução muitas vezes é apresentada à população como forma de tirar as elites do poder e devolvê-lo ao povo, mas esconde, na verdade, mecanismos que institucionalizam a dominação.
Vimos, neste trabalho, que duas das principais referências teóricas adotadas por Marcelo Neves para chegar à sua teoria da constitucionalização simbólica encontram-se na teoria sistêmica de Luhmann e nos debates em torno da legislação simbólica. Sendo assim, o conhecimento de alguns elementos destes marcos teóricos é fundamental para a compreensão do trabalho de Marcelo Neves.
Nesse diapasão, alguns dos principais conceitos do arcabouço teórico luhmanniano foram abordados, por exemplo, a diferença sistema/ambiente, os códigos-binários, a noção de direito enquanto subsistema da sociedade bem como o seu fechamento operacional. Antes de se falar propriamente em legislação simbólica, couberam alguns comentários à cerca da linguagem jurídica em geral, bem como da semiótica como forma de investigação do direito nas suas três dimensões: sintática, semântica e pragmática.
Do lado da legislação simbólica, foi vista a sua definição como norma jurídica cuja função político-ideológica funciona hipertrofiadamente em relação à sua função instrumental, bem como a diferença entre eficácia e efetividade normativas. Esta diz respeito à realização da finalidade da lei, aquela diz respeito à concretização da hipótese normativa da lei. Viu-se também a tipologia adotada por Neves de legislação simbólica, a qual compreende três espécies: a legislação enquanto fórmula-dilatória, a legislação-álibi e a legislação enquanto confirmação de valores sociais.
Dando continuidade, no segundo capítulo foi estudada efetivamente a teoria da constitucionalização simbólica, a começar pelo esclarecimento das noções de constituição, constitucionalização e concretização constitucional. A constitucionalização foi abordada como processo de implementação da constituição moderna, ou seja, da limitação jurídica do governo. Trata-se, do ponto de vista sistêmico, de uma visão da constituição enquanto acoplamento estrutural dos subsistemas político e jurídico, no qual ambos, embora permaneçam operacionalmente autônomos, estão em constante fricção.
Viu-se também que o núcleo do sistema constitucional é formado por três pilares: os direitos fundamentais, a separação de poderes e as eleições democráticas. Sempre que algum desses pilares não estiver presente, não se pode falar em constituição em sentido moderno. A concretização constitucional, por seu turno, foi vista sob a ótica das teorias de Häberle e Müller, que se relacionam respectivamente com as dimensões pragmática e semântica da semiótica.
Depois disso, foi possível chegar a uma definição da constitucionalização simbólica, entendida como situação na qual o funcionamento hipertroficamente simbólica de norma constitucional afeta algum dos pilares do sistema constitucional. Várias conseqüências puderam ser daí extraídas, notadamente do ponto de vista sistêmico, onde se verifica, nos casos de constitucionalização simbólica, o direito não mais como sistema autopoiético, mas alopopiético, sem autonomia operacional, com o seu código binário subordinado ao código-binário do subsistema político.
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[1] Trata-se de obra na qual Marcelo Neves realiza uma releitura conceitual do estado democrático de direito valendo-se das premissas teóricas de Luhmann e de Habermas.
[2] Trata-se de artigo no qual Marcelo Neves trata especificamente do direito enquanto sistema autopoiético, visão que ele considera passível de restrições, notadamente no que tange aos países subdesenvolvidos.
[3] Trata-se de artigo no qual Neves aborda as relações entre o simbólico na política e a instrumentalidade dos direitos humanos.
Advogado, graduado na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), pós-graduado em direito tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PORDEUS, Lucas Silveira. A teoria da constitucionalização simbólica de Marcelo Neves Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 abr 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46325/a-teoria-da-constitucionalizacao-simbolica-de-marcelo-neves. Acesso em: 23 dez 2024.
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