Resumo: O presente artigo trata, de forma sintética, sobre a importância da assistência social para a sociedade, mais especificamente do Benefício de Prestação Continuada concedido aos idosos e às pessoas com deficiência, bem como os requisitos legais para sua concessão, segundo a Lei nº 8.742/1993 (Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS) e sobre como o Supremo Tribunal Federal vem interpretando esses requisitos ao longo do tempo, mormente o requisito de miserabilidade.
Palavras-chave: Assistência social. Benefício de prestação continuada. Miserabilidade. Aspectos controvertidos. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
1 Introdução
A Constituição de 1988, em seu Título VII, trata "Da Ordem Social", e traz em seu Capítulo II, disposições relativas à seguridade social. Ela tem a finalidade de assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social, através de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade como um todo.
Conforme previsão constitucional, a seguridade social é o gênero, do qual são espécies a previdência social, a assistência social e a saúde. A assistência social, tema do artigo, é uma política social que tem como princípios informativos a gratuidade da prestação, como também a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência, à velhice, aos deficientes e a reintegração ao mercado de trabalho daqueles que necessitarem.
Dentro da assistência social, ganha importância o seu benefício de prestação continuada, previsto nos artigos 20 e 21 da Lei nº 8.742/93, conhecida como Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS). A Lei nº 8.742/93 prevê, no seu art. 20, o pagamento de um benefício assistencial no valor de 1 salário-mínimo para idosos maiores de 65 anos ou deficientes que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.
Já o § 3º do art. 20 da LOAS, que define quem poderá ser considerado miserável para fins de recebimento do benefício, vem sendo alvo de debates perante o Supremo Tribunal Federal, com os hipossuficientes buscando uma relativização do critério legal de hipossuficiência.
2 Desenvolvimento
2.1 Da definição legal de hipossuficiência
O dicionário Aurélio define hipossuficiente como aquela pessoa que não sendo auto-suficiente, dispõe de poucos recursos econômicos, por ser a parte economicamente fraca. Esta pessoa se encontra em situação de escassez, devido a sua incapacidade para o trabalho ou qualquer outro fator que venha a lhe colocar em situação de inferioridade perante as outras pessoas.
A Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso LXXIV, estabelece como direito do cidadão a assistência jurídica, onde menciona que o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos. Essa insuficiência de recursos diz respeito a impossibilidade de suportar as despesas com a contratação de advogado, custas do processo e quaisquer gastos relacionados com a atuação de sua defesa em juízo ou na busca por seus direitos.
Nesta lógica, afirma Rogério de Oliveira Souza (on-line, 2004), acerca da diferenciação da condição de necessitado e da condição de hipossuficiente:
Enquanto que a assistência jurídica integral e o benefício da justiça gratuita são direitos constitucionalmente garantidos a qualquer cidadão que comprove insuficiência de recursos, a condição de hipossuficiente depende do preenchimento de requisitos materiais, legais e processuais, não constituindo garantia processual e nem direito subjetivo da parte assistida juridicamente por órgão da Defensoria Pública. Não basta ter reconhecida a condição de “necessitado” (Lei 1.060/50, 2º parágrafo único), para também ser reconhecida a condição qualificada de “hipossuficiente”.
Conforme a Lei nº 1.060/50, necessitado é todo aquele que não pode suportar as despesas e custas processuais, bem como não pode arcar com os honorários de advogado, sem prejuízo do próprio sustento ou de seus familiares. No entanto, o conceito de hipossuficiente trazido pela nova redação da LOAS diverge dos conceitos trazidos pela Constituição Federal de 1988 e pelos tratados internacionais.
A hipossuficiência financeira tem como parâmetro o valor da renda mensal per capita de ¼ do salário mínimo dentro da unidade familiar. Portanto, família hipossuficiente é aquela cuja renda per capita familiar seja inferior a ¼ do salário mínimo vigente. Conforme artigo 20, § 3º da Lei nº 8.742/93:
§ 3o Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo.
A miserabilidade é pré-requisito para a concessão do benefício assistencial, por ser uma política não contributiva que prevê os mínimos sociais. Ressalta-se que os mínimos sociais dizem respeito ao conjunto de fatores que movem e determinam o padrão de qualidade de vida dos cidadãos, e não na entrega de recursos destinados à complementação de renda.
2.2 Da relativização do Critério Legal de Hipossuficiência
O Benefício de Prestação Continuada funciona como um auxílio dado pelo Estado a fim de amparar aquelas pessoas que estejam em situação de miserabilidade. Essas pessoas também chamadas de hipossuficientes são reconhecidas por não terem meios de prover sua própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.
Para que o benefício seja concedido aos hipossuficientes, o § 3º do artigo 20 da Lei nº 8.742/93 estabelece que a renda per capita familiar do necessitado, seja inferior a ¼ do salário mínimo
Este requisito econômico estabelecido na norma tem gerado grandes polêmicas e divergências doutrinárias, tendo em vista que muitas leis posteriores estabeleceram critérios mais elásticos, tais como: a Lei 10.836/2004, que criou o Bolsa Família; a Lei 10.689/2003, que instituiu o Programa Nacional de Acesso à Alimentação; a Lei 10.219/2001, que criou o Bolsa Escola; a Lei 9.533/1997, que autoriza o Poder Executivo a conceder apoio financeiro a Municípios que instituírem programas de garantia de renda mínima associados a ações socioeducativas.
A constitucionalidade do critério econômico é averiguada e discutida sob a ótica do princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que a renda fixada é tão baixa que afasta muitos necessitados da assistência social. Desta forma, o Poder Judiciário vem entendendo que em alguns casos a aplicação literal da lei não promove a justiça social.
Segundo Rubens José Kirk de Sanctis Junior (online, 2011):
Dessa forma, ao interpretar os requisitos que regem a concessão de benefícios assistenciais, o Poder Judiciário levaria em conta, além dos pressupostos de ordem objetiva, outras circunstâncias de ordem subjetiva trazidas ao processo, e que autorizem a conclusão de que aquela pessoa se encontra em um estado de miserabilidade, e que não pode ter o seu sustento amparado por si ou pessoa de sua família.
Na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 1.232, julgada em 1998 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), proposta para aferir se o critério legal fere ou não os ditames constitucionais, o STF afirmou que o § 3º do art. 20 da Lei nº 8.742/93 era constitucional, já que o art. 203, V, da CF/88 afirma que o benefício será concedido “conforme dispuser a lei”. (STF. Plenário. ADI 1232, Rel. p/ Acórdão Min. Nelson Jobim, julgado em 27/08/1998).
Apesar dessa decisão extremamente legalista do STF, os Juizados Especiais Federais e o STJ tinham posição consolidada no sentido de que, ainda que o requerente não se encaixasse nos critérios definidos na Lei n° 8.742/93, ele poderia receber o benefício assistencial se conseguisse comprovar, por outros meios, sua situação de miserabilidade (STJ. 1ª Turma. AgRg no AREsp 202.517-RO, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, julgado em 2/10/2012).
Para o STJ, portanto, “a limitação do valor da renda per capita familiar não deve ser considerada a única forma de se comprovar que a pessoa não possui outros meios para prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, pois é apenas um elemento objetivo para se aferir a necessidade, ou seja, presume-se absolutamente a miserabilidade quando comprovada a renda per capita inferior a 1/4 do salário mínimo" (REsp Repetitivo 1.112.557/MG).
O INSS, contudo, não concordava com essa interpretação do STJ e das Turmas Recursais Federais e interpunha recursos e até mesmo reclamações constitucionais contra tais decisões. O Plenário do STF, ao julgar conjuntamente dois recursos extraordinários que tratavam sobre a matéria, declarou, incidentalmente, a inconstitucionalidade do § 3º do art. 20 da Lei 8.742/93 por considerar que o referido critério está defasado para caracterizar a situação de miserabilidade.
O Ministro Relator, Gilmar Mendes, afirmou, que “a economia brasileira mudou completamente nos últimos 20 anos. Desde a promulgação da Constituição, foram realizadas significativas reformas constitucionais e administrativas com repercussão no âmbito econômico e financeiro. A inflação galopante foi controlada, o que tem permitido uma significativa melhoria na distribuição de renda”. Tais modificações proporcionaram que fossem modificados também os critérios para a concessão de benefícios previdenciários e assistenciais que podem ser mais “mais generosos” que o parâmetro de 1/4 do salário mínimo mencionado no § 3º do art. 20 acima referido. (STF. Plenário. RE 567985/MT, red. p/ o acórdão Min. Gilmar Mendes, 17 e 18/4/2013. RE 580963/PR, rel. Min. Gilmar Mendes, 17 e 18/4/2013.
Para o Supremo Tribunal Federal, houve uma inconstitucionalidade superveniente do critério definido pelo § 3º do art. 20 da LOAS. Assim, o juiz estaria livre para, na situação concreta, se valer de outros parâmetros para decidir se o idoso ou deficiente não tem realmente meios de manter sua subsistência, não estando vinculado ao critério da renda per capita inferior a 1/4 do salário-mínimo previsto no § 3º do art. 20.
Em recente decisão, inclusive, veículada no Informativo 813 do STF, foi decidido que essa decisão proferida no processo individual ganhou eficácia erga omnes e efeito vinculante porque reinterpretou e modificou uma decisão proferida em ADI, que possui tais atributos. Logo, tendo substituído um entendimento do STF que tinha eficácia erga omnes e efeito vinculante, essa nova decisão proferida em sede de controle concreto ganhou contornos de controle abstrato e poderá dessa firna ser alvo de reclamação constitucional.
A mudança do posicionamento que o Supremo Tribunal Federal adotou vai ao encontro da possibilidade de se promover a justiça social, bem como de firmar o direito a assistência social para que a dignidade da pessoa humana seja preservada. Nesse sentido expõe Bonavides (2001, p.595):
A observância, a prática e a defesa dos direitos sociais, a sua inviolável contextura formal, premissa indeclinável de uma construção materialmente sólida desses direitos, formam hoje o pressuposto mais importante com que fazer eficaz a dignidade da pessoa humana nos quadros de uma organização democrática da Sociedade e do Poder.
Por fim, conclui-se que a Lei Orgânica da Assistência Social, promulgada a fim de trazer um critério econômico e objetivo para concessão do benefício assistencial, foi ao longo do tempo sendo corretamente interpretada pelo STF, sempre com o objetivo de harmonizar os requisitos de concessão com o princípio da dignidade da pessoa humana
3 Conclusão
A Lei de Organização da Assistência Social (LOAS), ao regulamentar o art. 203, V, da Constituição Federal, estabeleceu os critérios para que o benefício mensal de um salário mínimo seja concedido aos portadores de deficiência e aos idosos que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família.
Se, em um primeiro momento, o STF declarou a constitucionalidade do art. 20, § 3º, da LOAS, por atender comando constitucional que deixava ao alvedrio da lei ordinária a sua concessão, houve uma posterior mudança de entendimento por parte do Supremo.
Observou-se a ocorrência de um processo de inconstitucionalização decorrente de acentuadas mudanças fáticas (políticas, econômicas e sociais) e jurídicas (sucessivas modificações legislativas dos patamares econômicos utilizados como critérios de concessão de outros benefícios assistenciais por parte do Estado brasileiro). Esse benefício tão importante, portanto, passou a ser analisado por um filtro axiológico que coloca a dignidade da pessoa humana em primeiro lugar.
4 Referências
Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 95, dez 2011. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=10897&revista_caderno=20>. Acesso em 22 mar 2016.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11 ed. São Paulo: Malheiros, 2001.
SOUZA, Rogério de Oliveira. Revista da EMERJ. [on-line]. Volume 27, número 28, 2008. Disponível em: <http:// http://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista28/revista28_88.pdf>. Acesso em 22 mar. 2016.
Advogado. Graduado em Direito pela Universidade de Fortaleza.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GOMES, Diego André Varjão Costa. O benefício de prestação continuada e o conceito de miserabilidade perante o Supremo Tribunal Federal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 abr 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46339/o-beneficio-de-prestacao-continuada-e-o-conceito-de-miserabilidade-perante-o-supremo-tribunal-federal. Acesso em: 23 dez 2024.
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