Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar a possibilidade de aplicação do princípio do devido processo legal – postulado estruturante de um Estado Democrático de Direito – às relações privadas. Para atingir este desiderato, proceder-se-á a uma definição do conteúdo normativo do referido princípio, destacando, brevemente, seu desenvolvimento histórico e as dimensões normativas a ele inerentes (formal e material). Posteriormente, se analisará as três teorias doutrinárias que versam sobre a matéria, para, em seguida, enfrentar o tratamento jurisprudencial dado pelos tribunais pátrios ao tema, nomeadamente o Supremo Tribunal Federal, a partir da análise de um célebre leading-case julgado no ano de 2006. Por fim, pretende-se chegar a uma conclusão sobre o tratamento dado no Brasil quanto à aplicação horizontal da cláusula do devido processo legal.
Palavras-chave: Princípio do Devido Processo Legal. Relações Privadas. Supremo Tribunal Federal.
Abstract: This study aims to examine the possibility of applying the principle of due process - structuring principle of a democratic state - to private relations. To achieve this purpose, it will proceed to a setting of the normative content of the principle, noting, briefly , its historical development and normative dimensions inherent to it (formal and material). Later, it will examine the three doctrinal theories that deal with the matter, to then face the jurisprudential treatment by Brazilian courts to the subject, especially the Supreme Court, from the analysis of a leading- case tried in 2006. Finally, we intend to reach a conclusion about the treatment in Brazil and the horizontal application of the due process clause.
Keywords: Principle of due process of law . Private relations. Supreme Court.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. 3 TEORIAS SOBRE A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. 3.1 “STATE ACTION”. 3.2 EFICÁCIA INDIRETA E MEDIATA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. 3.3 EFICÁCIA DIRETA E IMEDIATA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. 4 APLICAÇÃO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL ÀS RELAÇÕES PRIVADAS NO BRASIL. 4.1 ESTUDO DE CASO: RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº. 201819-RJ. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS. 6 REFERÊNCIAS.
1 INTRODUÇÃO
Após a revitalização democrática experimentada pelo Brasil, a partir da Carta Constitucional de 1988 – e por ser esta uma Constituição analítica – a jurisprudência dos Tribunais Superiores passou por uma profunda modificação, haja vista a enormidade e diversidade de matérias enfrentadas pelos pretórios desde a promulgação da referida norma.
A população brasileira, após sair do período negro da história do país, estava ávida por ver concretizada e garantida a implementação e execução dos direitos e garantias fundamentais, principalmente aqueles que limitam a ingerência do Estado na vida privada, pois estes, em especial, não mereceram respeito algum por parte do comando revolucionário que se instalou no Brasil a partir de 1964. Por isto, a novel Constituição fora tão exauriente ao arrolar os direitos e garantias fundamentais, inclusive erigindo-os ao patamar de cláusulas pétreas, tornando-os imodificáveis.[1]
Dentre os direitos insculpidos no rol do artigo 5° da Constituição, é imperioso destacar o princípio (direito fundamental) do Devido Processo Legal, que é corolário do Estado Democrático de Direito e se manifesta das mais diversas formas em nosso cotidiano. Esta norma basilar, garantidora das liberdades individuais, é festejada pelos operadores do direito e também pelo cidadão comum, que vê nela a garantia de justeza no trato do Poder Judiciário, nivelando quem eventualmente a ele recorrer (ou for demandado) para pleitear o bem da vida desejado.
A questão que se levanta – e que perfaz o objeto deste trabalho – é saber se essa norma, tão essencial à democracia, também tem sua aplicação estendida ao campo das relações privadas, onde impera, como sabido, o princípio da autonomia da vontade, traduzindo-se na ampla liberdade concedida às partes no âmbito particular de avençarem o que bem entender.
Esta conclusão não é pacífica, haja vista que no direito comparado os Estados adotam posturas discrepantes em relação ao tema. Os teóricos do direito, ao seu turno, também enfrentam a matéria, formulando construções doutrinárias que oferecem soluções diferentes para aplicação do Devido Processo Legal às relações de cunho eminentemente particular.
Saber até onde vai o poder estatal de gerenciar negócios privados, além de saber, outrossim, se esse poder não fere outras garantias fundamentais – constituindo-se um verdadeiro abuso de poder por parte do Estado –, são as principais questões (além de outras de não somenos importância) que serão enfrentadas neste ensaio para se chegar a um termo acerca da aplicação na esfera privado do Devido Processo Legal.
2 PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL
Antes de adentrar ao conteúdo específico do trabalho, faz-se necessário discorrer brevemente sobre no que consiste o princípio do Devido Processo Legal. O referido vetor normativo, segundo o festejado processualista Fredie Didier Jr, é o postulado fundamental do processo.[2] Todos os demais princípios encontram sua gênese no Devido Processo Legal. Ele está positivado no inciso LIV do artigo 5º da Constituição Federal, verbis: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
O referido princípio teve sua origem na Magna Carta do rei João Sem Terra, de 1215, conhecido como a cláusula do due process of law, que dispunha que nenhum homem livre seria privado de sua vida, liberdade ou propriedade, senão pelo julgamento legal. Segundo o professor Nelson Nery Jr, o conceito de devido processo legal, no momento de sua origem, ficou adstrito apenas à proteção no âmbito do processo penal e tinha caráter eminentemente processualista.[3] Também, constou das declarações dos Estados americanos em 1776 e da Constituição dos Estados Unidos da América. Em nosso país, o princípio do Devido Processo Legal só foi positivado na Constituição Federal de 1946.[4]
O Devido Processo Legal possui duas dimensões: a material e a formal. Em sentido material, ele corresponde ao principio da proporcionalidade/razoabilidade. O órgão investido de jurisdição deve estar jungido a esse principio sempre que prolatar uma decisão, pois ele serve de baliza para aferir se uma decisão é substancialmente justa.
O magistrado deve sempre ser razoável e proporcional. A atividade jurisdicional constitui-se, sob esta ótica, num verdadeiro exercício de dosimetria, ponderação (princípio da proporcionalidade em sentido estrito). No dizer percuciente de Fábio Komparato, consiste o principio da proporcionalidade na adaptação das decisões jurídicas às circunstâncias de cada caso.[5]
No direito constitucional, a aplicabilidade deste princípio é verificada, por exemplo, nos efeitos da modulação das decisões em sede de controle difuso de constitucionalidade. No processo civil, tem-se a aplicação de multas, a possibilidade de utilização de provas admitidas por meio ilícito, a identificação do meio menos gravoso para o executado, dentre outros exemplos.
Em sentido formal, o Devido Processo Legal é o direito de processar e ser processado de acordo com as regras estabelecidas previamente na legislação. Observam-se como corolários deste princípio, vários outros, como: acesso à justiça, contraditório, juiz natural, razoável duração do processo, paridade de armas, etc.
Então, violado um dos princípios corolários do Devido Processo Legal, este, por óbvio, também será violado. Assim, se o contraditório não for respeitado, haverá mácula à cláusula maior do Devido Processo Legal, por conseqüência, haverá vício no procedimento. Da mesma forma, se o processo for dirigido por um juiz sem investidura ou tiver sua duração prolongada de modo desarrazoado, estar-se-á ferindo o Devido Processo Legal.
Mais uma vez socorrendo-nos ao magistério de Didier[6], observa-se que o Devido Processo Legal é um direito fundamental de conteúdo complexo, pois se trata de uma cláusula geral e, por conseqüência, aberta, que a experiência histórica cuida de preencher. O seu conteúdo jurídico é construído a cada dia e está em constante evolução, assim como a própria ciência jurídica.
3 TEORIAS SOBRE A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS
Para se entender a aplicabilidade ou não do Devido Processo Legal na esfera particular, é necessário tecer alguns comentários sobre as teorias que cuidam do estudo da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, haja vista o princípio em foco ser ele próprio um direito fundamental. Basicamente são três teorias: a) a teoria do state action; b) a teoria da eficácia indireta e mediata dos direitos fundamentais e; c) a teoria da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais na esfera privada.
3.1 “STATE ACTION”
A primeira teoria, conhecida como teoria da ação estatal (state action) tem origem no direito norte-americano e preconiza que os direitos fundamentais só podem ser aplicados quando houver uma ação estatal (há exceções)[7]. Ela nega a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, por entender que o único sujeito passivo daqueles direitos seria o Estado[8]. Tem sua gênese ideológica na concepção de que os direitos fundamentais (de primeira dimensão), por tratarem de limitação imposta ao poder estatal – consistente em uma verdadeira obrigação de não fazer –, desautorizaria a observância dos referidos direitos nas relações privadas, respeitando a autonomia da vontade do particular.
3.2 EFICÁCIA INDIRETA E MEDIATA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
A segunda teoria prega que os legisladores, quando da elaboração das leis (infraconstitucionais), devem observar os direitos e garantias fundamentais, aplicando, por via reflexa ou indireta, os referidos direitos às relações privadas, já que o particular deve observância à lei. Ela é predominante na Alemanha e na Áustria. O objetivo central dos direitos fundamentais, segundo esta teoria, não seria dirimir os conflitos privados. Aplicar os referidos direitos de maneira direta, sem uma lei autorizativa implicaria em violação à autonomia da vontade. Segundo o ensinamento de Wilson Steinmetz:
“Inversa é a posição da teoria da eficácia mediata, segundo a qual os direitos fundamentais não são imediata e diretamente aplicáveis às relações interprivadas. A eficácia é mediata e indireta, porque é tarefa (dever-competência), em primeira linha, do Poder Legislativo ao criar normas de direito privado, e, na omissão ou insuficiência legislativa, do Poder Judiciário, ao aplicar e desenvolver o direito privado, sobretudo ao recurso ‘preenchimento’ das cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados com conteúdos axiológicos que subjazem (aos) ou informam os direitos fundamentais.”[9]
Também é válido ressaltar o magistério do Ministro Gilmar Ferreira Mendes que, citando o doutrinador alemão Konrad Hesse, trata de forma elucidativa o assunto:
“(...) entende Hesse que cabe ao legislador e, se este se revelar omisso ou indiferente, ao próprio juiz, interpretar o direito privado à luz dos direitos fundamentais (ïm Licht der Grundrechte), exercendo o dever de proteção (Schutzplicht) que se impõe ao Estado.”[10]
3.3 EFICÁCIA DIRETA E IMEDIATA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Por derradeiro, a terceira teoria é a da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas. Reza esta teoria que os direitos fundamentais devem ser aplicados diretamente às relações privadas, independentemente de lei que regulamente ou intermedeie essa aplicação. Todavia, faz-se mister observar dois valores constantes desta equação.
De um lado há o direito fundamental, do outro a autonomia da vontade. Deve-se proceder a um estudo do caso concreto para poder determinar em que grau deve haver composição do direito na relação particular. Essa teoria privilegia a atuação do magistrado, pois ele é quem vai ponderar os valores conflitantes no caso concreto. Vale reproduzir a observação de Gonçalves Filho a respeito do tema:
A doutrina mais recente tem mostrado uma predileção por esta teoria, principalmente aqueles autores adeptos do chamado neoconstitucionalismo, ou constitucionalismo contemporâneo. Esta vertente prima pela valorização dos princípios sobre todo ordenamento jurídico, pois estes como normas abstratas são os vetores de toda concepção do próprio ordenamento e garantem uma maior elasticidade interpretativa.
4 APLICAÇÃO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL ÀS RELAÇÕES PRIVADAS NO BRASIL
A doutrina, de forma praticamente unânime, entende que os direitos fundamentais são aplicados de forma direta e imediata dentro do ordenamento jurídico-constitucional brasileiro. Por conseqüência, o Devido Processo Legal, como direito fundamental, também deve ser observado nas relações entre particulares.
Ensina o multicitado professor Didier que a palavra “processo”, neste contexto, não deve ser interpretada de forma restrita para limitar-se apenas ao processo judicial. Antes, este vocábulo caracteriza-se como gênero, englobando além dos processos judiciais, os administrativos e negociais.[12]
4.1 ESTUDO DE CASO: RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº. 201819-RJ
A instância máxima do Poder Judiciário brasileiro, o Supremo Tribunal Federal, teve a oportunidade de enfrentar o tema do presente trabalho, por ocasião do julgamento do Recurso Especial n° 201819-RJ, que tratava da expulsão de um membro da União Brasileira de Compositores sem a observância do direito à ampla defesa e ao contraditório (Devido Processo Legal em sentido formal), cuja ementa é bastante elucidativa:
EMENTA: SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais. III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃO-ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL.APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO. As associações privadas que exercem função predominante em determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, integram o que se pode denominar de espaço público, ainda que não-estatal. A União Brasileira de Compositores - UBC, sociedade civil sem fins lucrativos, integra a estrutura do ECAD e, portanto, assume posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus associados. A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de suas obras. A vedação das garantias constitucionais do devido processo legal acaba por restringir a própria liberdade de exercício profissional do sócio. O caráter público da atividade exercida pela sociedade e a dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88). IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO.[13](grifou-se)
No brilhante voto-vista proferido pelo eminente Ministro Gilmar Mendes neste processo – verdadeira aula sobre o tema –, além de uma fundamentação histórica e minuciosa acerca das teorias de aplicabilidade dos direitos fundamentais nas relações privadas, inclusive fazendo um extenso apanhado no direito comparado, o Ministro, sem esposar uma posição definitiva sobre o tema, se detém nas questões de Direito Administrativo imanentes ao órgão recorrente, baseando seu voto nessas particularidades.
Todavia, observa o Ministro Gilmar que na relação entre cidadãos não se pode tentar resolver o conflito com a afirmação – já duvidosa na relação entre particular e Poder Público – expressa no brocardo “in dubio pro libertate”, porque não se cuida do estabelecimento de uma restrição ou limitação em sentido estrito.
O Ministro Joaquim Barbosa – integrante do egrégio STF à época – entendeu que os direitos fundamentais são aplicáveis às relações privadas Entretanto, ressalvou que não defendia o entendimento de que esta aplicabilidade ocorra em todas as situações. Segundo o referido julgador, no campo das relações privadas, a incidência das normas de direitos fundamentais há de ser aferida caso a caso, com parcimônia, a fim de que não se comprima em demasia a esfera de autonomia privada do indivíduo.
O eminente Ministro afirmou que esta aplicabilidade é decorrente de diversos fatores, dentre eles se destacam o paulatino rompimento das barreiras que separavam (até o final do século XIX) o direito público do direito privado. Outro fator seria a chamada constitucionalização do direito privado (nos sistemas jurídicos de jurisdição constitucional como o Brasil), notadamente do direito civil, pois as relações que até bem pouco tempo se regiam exclusivamente pelo direito civil, atualmente sofrem a incidência dos princípios de direito público emanados pelo órgão detentor da jurisdição constitucional.
Continuou o Ministro, frisando que uma das conseqüências da aceitação da supremacia da Constituição reside no fato de que os direitos fundamentais (imperativo de todas as democracias) não mais se concebem como limitação única e exclusivamente imposta ao Estado. Cita em seu voto trecho da tese de doutorado de Jane Reis Gonçalves Pereira, aqui reproduzido, verbis:
A tese de que os direitos fundamentais são aplicáveis em relações jurídicas dessa natureza (relação entre particulares) tem em conta, principalmente, a dimensão funcional dos direitos fundamentais. É intuitivo que, quando se vislumbra os direitos fundamentais a partir de sua finalidade – a qual é, em suma, assegurar níveis máximos de autonomia e dignidade dos indivíduos – torna-se pertinente sua aplicação em todas as situações nas quais possa ser comprometida essa esfera de autonomia, sendo irrelevante se isso ocorre em decorrência da atuação de um poder privado ou público.
Ainda, ressaltou a lição de Daniel Sarmento:
Deveras, a posição hierárquica superior da Constituição, a abertura de suas normas, e o fato de que estas, por uma deliberada escolha do constituinte, versam também sobre relações privadas, possibilitam que se conceba a Lei Maior como novo centro do Direito Privado apto a cimentar as suas partes e a informar o seu conteúdo.[14]
O Ministro Barbosa afirmou que o ordenamento jurídico de nosso país é encabeçado por uma Constituição rígida e dirigente, pródiga em normas incidentes sobre as relações privadas. Destacou ainda que, em algumas áreas, a incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas decorre de imposição explícita da própria Carta da República, como ocorre no campo dos direitos sociais, em que a Constituição impõe às pessoas que mantêm relações de natureza privada (como a trabalhista) a observância de um rol de direitos concebidos que visam à proteção do trabalhador.
Prosseguindo, o Ministro Celso de Mello – decano da colenda Corte Constitucional – votou no mesmo sentido dos supracitados pares. Cumpre destacar o ensinamento do professor gaúcho Ingo Sarlet, citado pelo Ministro em seu voto:
Uma opção por uma eficácia direta traduz uma decisão política em prol de um constitucionalismo de igualdade, objetivando a efetividade do sistema de direitos e garantias fundamentais no âmbito do Estado social de Direito, ao passo que a concepção defensora de uma eficácia apenas indireta encontra-se atrelada a um constitucionalismo de inspiração liberal-burguesa.[15]
Também fundamentou o seu voto nas lições de Wilson Steinmetz, cujo magistério, segundo o eminente Ministro, põe em destaque a importância de estender-se, ao plano das relações de direito privado estabelecidas entre particulares, a cláusula de proteção das liberdades e garantias constitucionais, cuja incidência não se resume apenas ao âmbito das relações verticais (entre particulares e o Estado):
No marco normativo da CF, direitos fundamentais – exceto aqueles cujos sujeitos destinatários (sujeitos passivos ou obrigados) são exclusivamente poderes públicos – vinculam os particulares. Essa vinculação se impõe com fundamento no principio da supremacia da Constituição, no postulado da unidade material do ordenamento jurídico, na dimensão objetiva dos direitos fundamentais, no principio constitucional da dignidade da pessoa ( CF, art. 1º, III), no principio constitucional da solidariedade (CF, art. 3º, I) e no princípio d aplicabilidade imediata dos direitos e das garantias fundamentais (CF, art. 5º, §1º).[16]
O Ministro Celso de Mello, por fim, concluiu que, não obstante tratar-se o caso dos autos de uma relação de cunho eminentemente jurídico-privada, a cláusula insculpida no artigo 5º, LV da Carta Magna deve ser observada, garantindo-se, assim, a aplicação dos direitos fundamentais ao contraditório e a ampla defesa.
Como é possível observar, a tese vencedora, lastreada em ampla doutrina tanto pátria como alienígena, foi a da aplicação direta e imediata dos direitos fundamentais (do Devido Processo Legal por conseqüência) às relações privadas, ressalvado que, no caso concreto, deve haver um juízo de valor entre a autonomia privada e o direito fundamental atingido, pois esta garantia não há de ser ampla e irrestrita, mas balizada de acordo com a técnica da razoabilidade/proporcionalidade, sempre visando a resguardar o bem jurídico “mais importante” em jogo.
5 CONCLUSÃO
Por se tratar de disposição de caráter político-ideológico, cada país possui um regramento diferente sobre a possibilidade de aplicação do Devido Processo Legal nas relações privadas. Os países que adotam o sistema de jurisdição constitucional têm se mostrado mais tendentes à corrente da aplicação direta e imediata do referido princípio no âmbito dos particulares.
O Brasil se encontra nesse rol de países, tanto a doutrina quanto a jurisprudência vêm fincando entendimento neste sentido. Segundo lição do professor Didier:
Desse modo, a atual Constituição brasileira, pela “moldura axiológica” em que se encontra estampada (de índole eminentemente intervencionista e social), admite a ampla vinculação dos particulares aos direitos fundamentais nela erigidos, de modo que não só o Estado como toda a sociedade podem ser sujeitos passivos desses direitos. Essa extensão da eficácia direta dos direitos fundamentais às relações privadas, naturalmente, vem carregada de especificidades inerentes ao direito privado. Assim, por exemplo, a sua aplicação no caso concreto há de ser, sempre, ponderada com o princípio da autonomia da vontade.[17]
Acredita-se, assim, que esta exposição do mestre baiano consiste numa síntese robusta sobre o tema em comento. Há a aplicação do Devido Processo Legal (como dos demais direitos fundamentais em que o Estado não seja exclusivamente sujeito passivo pela natureza do próprio direito) às relações privadas, todavia impende ressaltar que no caso concreto deve sempre haver um juízo de ponderação (princípio da proporcionalidade em sentido estrito) entre a aplicação do direito e o principio da autonomia da vontade.
6 REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988.
______________. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 201819-RJ. Recorrente: União Brasileira de Compositores – UBC. Recorrido: Arthur Rodrigues Villarinho. Relatora: Min. Ellen Gracie. Relator p/ Acórdão: Min. Gilmar Mendes. Diário da Justiça de 27/10/2006, p.64. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28201819.NUME.+OU+201819.ACMS.%29&base=baseAcordaos>. Acesso em: 15/08/2011.
CABRAL, Bruno Fontenele. "State action doctrine". Os limites da eficácia horizontal dos direitos fundamentais nos Estados Unidos. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2773, 3 fev. 2011. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/18416>. Acesso em: 15 ago. 2011.
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[1] BRASIL, Constituição (1988) art. 60, § 4° Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (...) IV - os direitos e garantias individuais.
[2] DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento. 7.ed. Salvador: Jus Podium, 2007. p.27.
[3] NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
[4] BRASIL, Constituição (1946): art 141, § 4º - A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual.
[5] KOMPARATO (apud DIDIER JR., 2007, p.36).
[6] DIDIER, op. cit, p.37.
[7] CABRAL, Bruno Fontenele. "State action doctrine". Os limites da eficácia horizontal dos direitos fundamentais nos Estados Unidos. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2773, 3 fev. 2011. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/18416>. Acesso em: 15 ago. 2011.
[8] DIDIER, op. cit, p.28.
[9] STEINMETZ, Wilson. Direitos fundamentais e relações entre particulares. Revista Ajuris (Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul), Porto Alegre: Ano XXXIII – Nº 103, set/2006, p. 334.
[10] MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. São Paulo: Saraiva, 3ª ed., p. 128.
[12] DIDIER, op. cit, p.27.
[13] BRASIL, Supremo Tribunal Federal – STF, T2 - Segunda Turma, RE 201819-RJ, Relatora Ministra Ellen Gracie. Relator p/ Acórdão Ministro Gilmar Mendes, Diário da Justiça do dia 27/10/2006, p. 64.
[14] SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional e Relações Privadas. Lumem Juris, 2003. p.71.
[15] SARLET, Ingo Wolfgang. A Constituição Concretizada: Construindo Pontes entre o Público e o Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2000, p.147.
[16] STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. Malheiros. 2004, p.295.
[17] DIDIER, op. cit, pp.28/29.
Advogado. Especialista em Direito Processual Civil pelo Centro Universitário de João Pessoa - UNIPÊ (2012). Mestre em Ciências Jurídico-Políticas com menção em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - PT (2014).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MUNGUBA, Filipe Ferreira. Aplicação do princípio do devido processo legal às relações privadas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 abr 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46363/aplicacao-do-principio-do-devido-processo-legal-as-relacoes-privadas. Acesso em: 23 dez 2024.
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