RESUMO: A adoção de um sistema de precedentes, tema que ganha novo destaque a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015, tem o desiderato de trazer segurança jurídica, certeza do direito e previsibilidade nas relações jurídicas e sociais, princípios estes não mais satisfeitos apenas pela produção legislativa. Para a consecução desses objetivos, é indispensável que os julgadores compreendam qual o conteúdo obrigatório que é extraído dos procedentes, identifiquem as circunstâncias que os afastam, bem como observem as alterações que autorizam a superação dos mesmos. O presente trabalho visa apenas a demonstrar os elementos básicos que compõem esta interessante e atual matéria.
Palavras-chaves: Sistema de precedentes; segurança jurídica; distinção do precedente; superação do precedente.
1. INTRODUÇÃO
A aproximação do ordenamento jurídico pátrio com o common law deve-se, especialmente, a necessidade de dar segurança às relações jurídicas através da aplicação uniforme e isonômica do direito, de modo a fortalecer o Estado Democrático de Direito, que constitui fundamento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88).
O pensamento clássico, surgido no berço do civil law com a Revolução Francesa, apontava para a Lei como fonte suficiente de certeza e de segurança jurídica aos jurisdicionados. Essa concepção tem como premissa a imprescindibilidade de uma rígida separação dos poderes, com foco na impossibilidade de o juiz culminar como verdadeiro legislador positivo, na medida em que a formalização de precedentes obrigatórios consubstanciaria, em última análise, substituição à tarefa de legislar.
Ocorre que a Lei permite interpretações diversas e que, na prática forense, percebe-se a existência de demandas semelhantes se repetindo aos montes. Ora, essas situações evidenciam a insuficiência da Lei para dar segurança jurídica e certeza ao direito. Isso porque, ausente um sistema de precedentes, vislumbra-se claramente a possibilidade de o direito ser aplicado, com a mesma base legal, de forma diferente a situações análogas, denotando violação grave da isonomia e instabilidade jurídica.
Nesse contexto, observa-se que o Brasil passou, progressivamente, a valorizar os precedentes das Cortes Superiores. Grande expoente dessa modificação é a introdução pela Emenda Constitucional nº 45/2004 das Súmulas Vinculantes. Este mecanismo criado pelo constituinte derivado deu o poder ao Supremo Tribunal Federal de, mediante a elaboração de um enunciado sumular sobre determinada controvérsia repetitiva, determinar as decisões posteriores do Poder Judiciário (exceto do próprio STF, que não fica engessado pela sua decisão) a respeito da controvérsia, bem como a atuação de toda a Administração Pública.
Nota-se, pois, que a referida reforma significou um avanço do ordenamento jurídico pátrio no rumo da técnica de observância dos precedentes, mas que ainda era insuficiente. Na prática, verificou-se que a pouca efetividade do instrumento, tendo em vista que poucas súmulas vinculantes foram editadas desde então.
Ainda na linha evolutiva de modificação da forma de se pensar os precedentes judiciais, podemos citar como pontos marcantes: a) a permissão já no Código de Processo Civil de 1973 para que o Relator concedesse ou negasse provimento com respaldo na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ou de Tribunal Superior; b) a criação da sistemática de julgamento de recurso repetitivos, prevista nos artigos 543-b e 543-c, ambos do Código de Processo Civil de 1973; c) as mudanças estabelecidas pelo novo Código de Processo Civil de 2015, que atribuiu, além de outros, efeito obrigatório aos precedentes.
2. APLICAÇÃO DOS PRECEDENTES
São inegáveis as inúmeras benesses adquiridas em decorrência de um sistema de precedentes, não apenas para o campo do direito processual, mas também para a sociedade de uma forma ampla. Isso porque, além de dar eficiência e economia processual – o que, por si só, já atingiria a sociedade por completo -, o sistema de precedentes serve para orientar a conduta dos jurisdicionados, determinando a correta interpretação do direito, de modo a prestigiar a confiança legítima dos indivíduos que agem com a base na boa-fé. Ocorre que para o funcionamento deste sistema é indispensável o bom uso do mesmo.
Nesse passo, a existência de um sistema de precedentes efetivo depende tanto da compreensão do que é um precedente como da correta aplicação das questões decididas pelos Tribunais pelos operadores do direito. É indispensável que estes, os operadores do direito, mormente os julgadores, saibam identificar o conteúdo que deve ser extraído na formação do precedente.
Delineando os contornos de precedente, Luiz Guilherme Marinoni leciona que[i]:
“Seria possível pensar que toda decisão judicial é um precedente. Contudo, ambos não se confundem, só havendo sentido de falar de precedente quando se tem uma decisão dotada de determinadas características, basicamente a potencialidade de se firmar como paradigma para a orientação dos magistrados.”
Avançando para o ponto nodal do presente trabalho, qual seja, a forma de utilização dos precedentes, é imperioso ressaltar o dever de autorreferência que é imposto aos magistrados em um sistema de precedentes judiciais. Isso quer dizer que os julgadores devem ter como norte de suas decisões sempre o precedente incidente no caso, seja para subsumi-lo, superá-lo ou para afastá-lo da circunstância concreta.
Deveras, impõe-se a necessidade de diálogo entre os pronunciamentos judicais e o precedente, a fim de que exista coerência nas decisões judiciais, não se admitindo, sobretudo dos Tribunais, julgamentos inconsistentes e vacilante quanto às teses jurídicas discutidas.
Nesse contexto, é interessante notar que os Tribunais, em especial os Tribunais Superiores, têm uma função cunhada pelo Excelentíssimo Ministro do Supremo Tribunal Federal Teori Zavaski de nomofilácica, para designar a obrigação dos Tribunais de zelar pela interpretação e pela aplicação do direito de modo uniforme na medida do razoável. É de se esclarecer que os Tribunais não possam ficam impossibilitados de alterar o seu posicionamento sobre determinada matéria, mas, ao assentar ou modificar certo entendimento, deve fixar as bases jurídicas de forma consistente para que este tenha uma existência longeva.
Noutra senda, para a correta aplicação dos precedentes, faz-se necessária a extração da razão de decidir do julgamento, ou seja, da tese jurídica legitimamente fixada com capacidade de vincular as decisões futuras. A esse respeito, é pertinente a transcrição da lição de Luiz Guilherme Marinoni[ii]:
A razão de decidir, numa primeira perspectiva, é a tese jurídica ou a interpretação da norma consagrada na decisão. De modo que a razão de decidir certamente não se confunde com a fundamentação, mas nela se encontra. Ademais, a fundamentação não só pode conter várias teses jurídicas, como também considerá-las de modo diferenciado, sem dar igual atenção a todas. Além disso, a decisão, como é óbvio, não possui em seu conteúdo apenas teses jurídicas, mas igualmente abordagens periféricas, irrelevantes enquanto vistas como necessárias à decisão do caso.
A atividade interpretativa do aplicador do direito se fará presente, portanto, na identificação da ratio decidend do precedente. Aqui, importa assinalar a distinção entre a razão de decidir e o obiter dictum. Este consiste em argumento lateral, dito de passagem no bojo do julgamento, não tendo potencialidade para vincular às futuras decisões. É, na tradução da expressão, um dizer morto. Por outro lado, a ratio decidend é a tese jurídica debatida, enfrentada e consagrada pelo órgão julgador da controvérsia.
3. DISTINÇÃO DO PRECEDENTE
O molde delineado pelo órgão julgador quando da formação do precedente, ainda que leve, como deve levar, em consideração todos os argumentos e teses que informam o caso, por certo, não terá abrangência suficiente para enquadrar todas situações possíveis de ser enfrentadas pelos indivíduos, tendo em vista a pluralidade social em que vivemos, que faz como que inúmeras relações sociais e jurídicas sejam enlaçadas diariamente.
Dessa forma, o aplicador do direito se defrontar com circunstâncias peculiares, que não se amoldaram à razão de decidir dos precedentes, ensejando uma análise da possibilidade de extensão da razão de decidir ou da verificação da sua distinção do caso concreto.
A doutrina, incorporando expressão alienígena, costuma referir-se ao fenômeno da distinção como distinguinsh, que nada mais é do que a verificação, no “balançar de olhos” entre a razão de decidir do precedente e a situação de fato e de direito do caso concreto, da existência de peculiaridade capaz de afastar a aplicação do precedente.
A técnica de distinção, portanto, não abala as estruturas sobre as quais se assentam o precedente. A verificação de situação peculiar não ataca a tese jurídica do precedente, de modo que este não é fragilizado pelo reconhecimento de um distinguinsh.
4. SUPERAÇÃO DO PRECEDENTE
A superação do precedente é a mudança da forma de interpretar determinada situação de crise jurídica. Em outras palavras, é uma nova orientação que exsurge no Tribunal que entra em confronto direto com o posicionamento outrora adotado em precedente da Corte respectiva, de forma que não restam alternativas que não a de revogação do precedente.
Para compreender a utilização desta técnica, não se pode perder de vista que a efetivação de um sistema de precedentes não pode levar ao engessamento do Poder Judiciário. Com efeito, sem embargo da função nomofilácica anteriormente mencionada, permite-se ao órgão formador do precedente que o supere, por razões diversas, como mutação interpretativa, alteração na realidade social ou modificação da fonte normativa.
Nesse ponto, Luiz Guilherme Marinoni[iii] (p. 390) alerta que:
Não é pela razão de ter poder para revogar os seus próprios precedentes que a Corte pode revogá-los à distância de circunstâncias especiais, como se a todo instante pudesse rever a mesma questão jurídica. Como já dito, não há qualquer sentido em ter poder para elaborar precedente e não ter dever de respeitá-lo. Lembre-se que Suprema Corte americana, embora exercendo o seu poder de overrruling de modo bem mais intenso, é sempre cobrada quando revoga precedentes sem critérios razoáveis.
A técnica de revogação do precedente, também conhecida por overrruling, é mecanismo que dar oxigenação ao sistema de precedentes, possibilitando que este se mantenha em evolução à medida que há progresso ou modificação no seio da sociedade, seja esta alteração econômica, cultural, social ou jurídica.
É de se perceber que a manutenção do precedente sem a subsistência das condições de fato e de direito que alicerçaram suas teses jurídicas implicaria, no mais das vezes, no cometimento de injustiças nos casos submetidos ao exame do Judiciário.
Essa flexibilização para alteração da jurisprudência, desde que assentada em critérios firmes, é imprescindível para efetivação dos direitos construídos à luz de uma nova realidade.
REFERÊNCIAS:
BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. R. de. R. Teoria do precedente: a justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012.
MACÊDO, Lucas Buril. Precedentes judiciais e o direito processual civil. Bahia: Juspodivm, 2015.
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 2. ed rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas: do controle à interpretação da jurisprudência ao precedente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
NOTAS
[i] MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 2. ed rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, página 215.
[ii] MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 2. ed rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, página 221.
[iii] MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 2. ed rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, página 390.
Técnico Judiciário do Tribunal de Justiça de Pernambuco.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: WALDIR DE FREITAS MATIAS JúNIOR, . Técnicas de aplicação, distinção e superação dos precedentes Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 abr 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46364/tecnicas-de-aplicacao-distincao-e-superacao-dos-precedentes. Acesso em: 23 dez 2024.
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