RESUMO: O artigo visa, sobretudo, explicar as linhas gerais acerca da aquisição originária no que tange à propriedade móvel, explicitando suas principais classificações, modalidades, e regras legais aplicáveis. Em especial, o artigo aborda um comparativo com o direito francês, pois as muitas diferenças entre os ordenamentos jurídicos internacionais denotam importância de compará-los, na medida em que se mostram as falhas e os acertos de cada jurisdição, de acordo com a aplicação dentro do seu país de origem.
Palavras-chave: Direito Civil; Legislação Comparada; Aquisição da propriedade; Bens Móveis.
A propriedade pode ser adquirida por vários modos. Segundo Coelho da Rocha, “O ‘modo de adquirir’ é o fato ou circunstância que produz o efeito de criar este direito, ou de o transferir, se a coisa era de outrem”.[1]
O regime dos bens não é apenas uma pluralidade de técnicas que os organizam e repartem entre as pessoas. Ele tem por objeto, da mesma forma, as transferências de valores, e os fenômenos necessários à passagem dos mesmos.
O estado das coisas muda com frequência, pois suas vantagens e desvantagens se transmitem de um titular a outro. Por isso, os modos de aquisição que realizam tais operações são altamente diversificados, variando de acordo com o direito ao qual são aplicados, posto que os direitos reais não se constituem como os direitos pessoais. Esses modos de aquisição podem mudar de acordo com o objeto dos seus direitos, por exemplo, a venda de um imóvel não se processa da mesma forma que um imóvel. Dessa forma, surgiu a teoria geral dos modos de aquisição, que se repartiu entre aquisição de bens móveis e imóveis.
A despeito da grande importância dos bens imóveis, ante o seu valor, e ante a sua imutabilidade, os móveis vêm, ultimamente, ganhando repercussão, ante o crescimento populacional, e maior procura aos bens de consumo, de origem naturalmente descartável. Vem daí a grande importância do seu estudo, pois é preciso a sua regulação de acordo com os interesses da sociedade.
O presente labor foi realizado com vistas a enriquecer o conteúdo intelecto-jurídico no que diz respeito à aquisição dos bens móveis tanto no direito brasileiro como no francês, procurando sempre exaltar os pontos comuns e as divergências entre os dois institutos.
O Direito faz parte da vida dos povos, e o Direito Civil executa papel fundamental na delimitação dos direitos dos cidadãos, buscando, sempre, a resolução dos conflitos.
CAPÍTULO I - AQUISIÇÃO DE BENS NO DIREITO BRASILEIRO – BREVE INTRODUÇÃO GERAL
A aquisição da propriedade, no direito brasileiro, está sob a égide do direito civil. O Código de 2002, apesar de não ter elencado um rol dos modos de aquisição em um artigo específico, cuidou da matéria, a partir do artigo 1.238.
É mister salientar, porém, que a legislação tratou de dividir a aquisição da propriedade em duas espécies, a dos bens móveis e imóveis, que são expressões derivadas da era pós-clássica romana.
No Brasil, o contrato não é instrumento suficiente para a transferência da propriedade, pois vige ainda a máxima romana “traditionibus, non nudis pactis, dominia rerum transferuntur”, sendo necessária a tradição para os bens móveis e transcrição do título aquisitivo para os bens imóveis (de valor acima de determinado montante). Esse modelo se assemelha com o direito alemão, que instituiu a transferência fundada no registro imobiliário, mas nada tem em comum com o direito Francês, já que, como será visto, nesse ordenamento se exige apenas o contrato de per si para aperfeiçoamento da aquisição, bastando o simples pacto para a transferência da propriedade. Vale transcrever os ensinamentos de Venosa, concernentes ao direito francês:
“Para o sistema francês, a transcrição no registro imobiliário não é constitutiva de direito real. O efeito translativo decorre do próprio contrato de compra e venda, doação, permuta, etc. O contrato é, ao mesmo tempo, obrigação e fato gerador do direito real. Transfere-se a propriedade pelo simples consentimento. Quanto aos imóveis, existem nesse direito duas fases distintas: quando do contrato, a propriedade transfere-se, acarretando efeito entre as partes; com o registro imobiliário, o direito alcança o efeito erga omnes. O registro tem apenas o efeito de tornar o negócio público e oponível perante terceiros.” (VENOSA, Silvio de Salvo. 2005. p. 193)
Nosso ordenamento, apesar de fortemente baseado no registro, não o vislumbra com caráter absoluto, pois a presunção é relativa, iuris tantum, podendo o registro ser alterado por decisão judicial, ou mesmo por outro registro, como bem demonstra o art. 1245 do Código Civil, e seus parágrafos:
Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis.
§ 1º Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel.
§ 2º Enquanto não se promover, por meio de ação própria, a decretação de invalidade do registro, e o respectivo cancelamento, o adquirente continua a ser havido como dono do imóvel.
Vislubram-se, portanto, muitas diferenças entre os ordenamentos jurídicos internacionais, residindo aí a importância de compará-los, na medida em que se mostram as falhas e os acertos de cada jurisdição, de acordo com a aplicação dentro do seu país de origem.
1.1 Classificação
Ainda dentro de um estudo geral da aquisição da propriedade, faz-se mister ressaltar a sua classificação. Esta varia entre os autores, e por isso, pode-se apenas relacionar as principais, quais sejam, as que consideram as aquisições como originária, derivada, a título singular, ou universal.
A primeira é aquela em que não se vislumbra qualquer relação com o anterior titular, ou seja, não há uma transmissão propriamente dita. Diz-se que a Ocupação, a usucapião e a acessão natural são modalidades desse tipo de aquisição. Encontra-se, aqui, uma certa controvérsia. Alguns autores acreditam que, neste caso, considera-se que nunca houve um proprietário, e dessa forma, a coisa nunca pertenceu a alguém, por isso, só a ocupação se encaixaria neste classificação. Contudo, a corrente majoritária prega que o fato de ser originária diz respeito ao fato de não haver nenhuma relação com supostos titulares anteriores, mesmo existentes, daí cabendo o Usucapião e a Acessão natural.
A aquisição derivada comporta a transferência da propriedade, pois leva em conta uma relação jurídica com o antecessor. Vige, então, a máxima de que ‘ninguém pode transferir mais direitos do que possui’[2], o que acarreta na análise da validade e eficácia da transferência, que pode ser dada por ato intervivos ou causa mortis. Exemplos dessa modalidade são a aquisição por direito hereditário, o contrato ou a tradição. Em oposição à modalidade originária, que não leva em conta os vícios da coisa, na derivada, a coisa conserva as características que possuía junto ao adquirente anterior, como Hipoteca ou servidão.
Outra classificação diz respeito à aquisição a título singular ou universal. Aquela tem por bens coisas certas e individualizadas, como um carro, por exemplo. Esta, por outro lado, dá-se quando uma universalidade é transferida, o que ocorre, geralmente, na transmissão hereditária. O sucessor toma para si os direitos reais e as obrigações do transmitente, com relação a este e a terceiros.
CAPÍTULO II- AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE MÓVEL NO BRASIL
Apesar de aparentemente ser menos importante que a classificação dos bens imóveis, ante a diversidade e maior proteção jurídica dos mesmos, legado do sistema de codificação romano-germânico[3], os bens móveis vêm, cada vez mais, ganhando respeito, ante a sua multiplicidade, conseqüência direta da industrialização e consumismo dos tempos atuais.
Mesmo diante da relevância econômica e da normal imobilidade do campo jurídico, que eleva os bens imóveis, os móveis, de fato, ganham força ante o fenômeno da multiplicação dos bens de consumo, transitórios e descartáveis, cada vez mais presente na sociedade hodierna.[4]
O Código Civil considera como bens móveis:
Art. 82. São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social.
Hodiernamente, percebe-se a ascenção da Tradição como instituto de aquisição dos bens móveis por excelência, ante a perda da relevância das outras modalidades de aquisição da propriedade móvel. Não obstante, o Novo Código Civil elenca as seguintes modalidades de aquisição dos bens móveis: usucapião, ocupação, achado do tesouro, tradição, especificação, confusão, comistão e adjunção.
Os modos aquisitivos podem ser originários, se não houver um ato volitivo de transmissibilidade, como o que ocorre na ocupação e usucapião, ou derivados, que se aperfeiçoam diante de um ato de vontade, como confusão, especificação, comistão, tradição e sucessão hereditária.
De certa forma, é possível afirmar que as formas de aquisição e perda da propriedade móvel se assemelham, posto que, ao se adquirir um direito de propriedade, regra geral, infere-se que outro sujeito perderá tal direito.
Serpa Lopes, citado por Venosa, afirma que:
“Do ponto de vista formal, o sistema do Registro de Imóveis do Direito francês é calcado sobre o critério do nome das pessoas, não se levando em conta o imóvel. O númeor de atos subordinados ao registro são em número deficiente. Os efeitos da transcrição limitam-se, como já vimos, aos de simples oponibilidade do ato em relação a terceiros. Têm caráter puramente negativo. Nenhuma presunção de exatidão.”[5] P. 193.
2.1 Da Ocupação
A ocupação é a “aquisição de coisa móvel ou semovente, sem dono, por não ter sido apropriada, ou por ter sido abandonada, não sendo essa apropriação defesa por lei”[6].
A ocupação se subdivide em três espécies: a descoberta, que tem por objeto as coisas perdidas; o tesouro, dos bens achados; e a ocupação propriamente dita, dos seres vivos, que pode ser via caça ou pesca.
No código civil, tal instituto está exposto no art. 1263, que afirma que “Quem se assenhorear de coisa sem dono para logo lhe adquire a propriedade, não sendo essa ocupação defesa por lei”.
Para existir a ocupação, é necessário três fatores, o animus domini daquele que apreendeu a coisa; que o objeto seja res nullius ou res derelicta; e que o ato de apreensão não seja proibido por lei. Res Nullius é a coisa de ninguém, por nunca ter sido apropriada; já a Res derelictae é a “coisa sem dono porque foi abandonada pelo seu proprietário, que, intencionalmente, quis despojar-se dela: logo, poderá ser licitamente adquirida mediante ocupação pelo premier venant”.[7]
O abandono da coisa atrai divergências relacionadas ao momento em que ocorre. Washington Monteiro de Barros afirma que:
“A divergência vem de longa data e já dividia proculeanos e sabinianos. Para os primeiros, verificava-se a perda da propriedade não no momento da derrelição, mas no instante em que ocorresse o subsequente apossamento da coisa abandonada. Para os sabinianos, perdia-se a propriedade no momento da derrelição e o ocupante só a adquiria no instante da ocupação; nesse meio-termo a coisa era res nullius. A controvérsia apresenta atualmente simples valor histórico.”[8] P. 187.
Esse instituto vem perdendo força, devido ao fato de que restam poucas coisas sem dono, ante ao crescimento da população e valorização dos bens móveis. É certo que, nas sociedades primitivas, a maioria dos bens não tinham donos. Foi o Direito Romano que trouxe a idéia de que as coisas pertenciam naturalmente ao primeiro tomador. Hoje, as espécies mais comuns da ocupação são a caça, a pesca e a invenção, sendo aquelas minuciosamente disciplinadas por leis especiais, tais como o Código de Caça (Lei 5.197/67) e o Código de Pesca (Decreto-lei 221/67).
É importante ressaltar, ainda, a diferença entre Ocupação e Descoberta (ou invenção). Esta modalidade se refere a bens perdidos, mas não abandonados, o que significa que não há, propriamente, uma perda da coisa por parte do proprietário. A invenção, então, não se configura em modalidade de aquisição da propriedade:
“Rigorosamente falando, descoberta não é modo de adquirir a propriedade, uma vez que o descobridor não pode conservar para si o objeto extraviado, tendo obrigação de restituí-lo. Ela só é prevista nesta parte do código, reservada à aquisição e perda da propriedade móvel, porque gera um direito de recompensa em favor do descobridor”.[9]
O art. 1234 afirma que tal recompensa não pode ser inferior a cinco por cento do seu valor, mais indenização pelas despesas com conservação e transporte da coisa, se o dono não preferir abandoná-la.
Logo, quem encontra bens perdidos, deve restituí-los aos donos, pois o nosso ordenamento não permite que o inventor adquira a coisa achada. Nesse sentido estão os arts. 1233 ao 1237 do Código Civil.
No Brasil, decorridos sessenta dias da divulgação da notícia pela imprensa, ou do edital, não se apresentando quem comprove a propriedade, será o bem vendido em hasta pública, ficando o valor com o Município em cuja circunscrição estava o objeto perdido, deduzindo, por óbvio, o valor da recompensa e indenização do inventor.
Na França, as chamadas épaves pertenciam ao rei, ou aos juízes superiores, conhecidos como seigneurs justiciers, mas nas legislações contemporâneas, não aparecendo o dono, o bem fica com o inventor.[10]
2.1.1 Tesouro
O tesouro é um “depósito antigo de moedas ou coisas preciosas, enterrado ou oculto, de cujo dono não haja memória. Se sua propriedade pode ser justificada, tesouro não há.”[11] Está disciplinado nos arts. 1264 a 1266 do Código Civil.
Para caracterizar essa modalidade, é mister que a coisa seja antiga e preciosa, que esteja oculta e que o dono não tenha conhecimento dela. Orlando Gomes[12] observa que existem quatro tipos de pessoas que podem encontrar o tesouro: o proprietário do terreno ou casa em que o tesouro se encontra, ou alguém incumbido de procurá-lo pelo mesmo, por alguém que não seja proprietário e o procure intencionalmente ou por alguém que o encontre casualmente.
A natureza jurídica deste instituto atrai controvérsias. Alguns autores acreditam que é jure inventionis, e para outros é acessão, mas a generalidade segue no fato de que é ocupação, assim como a caça e a pesca.
Caso se prove a titularidade de um sujeito sobre o depósito, este não será considerado mais tesouro, o que ocorre, por exemplo, se alguém provar que o achado encontrado pelo pedreiro lhe pertence, posto que o havia escondido no fundo falso do móvel.
O tesouro deve ser necessariamente bem móvel de que não se tinha conhecimento, memória, deve ser algo realmente antigo, e é preciso que se ache, e não apenas que se descubra, pois não é suficiente que alguém saiba que há moedas escondidas. É preciso que se ache e haja a posse efetiva.
O ato de achar o tesouro deverá ser casual. Se o achado for encontrado em terreno alheio, ele será repartido entre o dono do prédio e o achado, e caso um deles se aposse completamente da coisa, estará caracterizado furto da parte que não lhe é devida, e por isso, o prejudicado deve exigir judicialmente o seu quinhão devido. Contudo, se o encontro das coisas não for casual, aplica-se o art. 1265 do Código Civil, posto que haveria a intenção de buscar e achar o tesouro. Neste caso, a relação seria meramente negocial. [13]
Art. 1.265. O tesouro pertencerá por inteiro ao proprietário do prédio, se for achado por ele, ou em pesquisa que ordenou, ou por terceiro não autorizado.
Por fim, o art, 1266 trata da hipótese do tesouro encontrado em terreno aforado. Segundo Paulo Nader:
“Caso o tesouro seja encontrado em terreno submetido à enfiteuse, há duas soluções previstas pelo art. 1266: a) o bem encontrado pertencerá, em partes iguais, ao inventor e ao enfiteuta; b) o tesouro pertencerá por inteiro ao enfiteuta, sendo este o seu inventor. A solução dada pelo art. 1266, ao conferir o domínio unicamenter ao enfiteuta, harmoniza-se com a índole da enfiteuse, que abrange o direito à posse, ao uso e ao gozo pleno do imóvel.”[14]
Tal modalidade de aquisição não possui mais tanta importância, pois foi inserida no Código por influência da época em que as pessoas enterravam e escondiam seus pertences para fugir de guerras ou revoluções.
2.1.2 Especificação
Podemos conceituar especificação[15] como “modo particular de adquirir a propriedade de bem móvel que não pode voltar ao statu quo ante, subsistindo apenas a espécie nova”. [16] É, portanto, o modo de adquirir a propriedade por meio da transformação de um bem móvel em uma espécie nova, por meio de trabalho ou indústria do especificador, contanto que não seja mais possível reduzi-la à sua forma anterior. É o que se sucede com o joalheiro, o armador, o tapeceiro, escultor, etc.
É uma espécie de ato jurídico lícito, um modo de adquirir, que difere da acessão porque não se atribui ao proprietário da coisa aquilo que seja acessório. O que ocorre, na verdade, é a manipulação da matéria prima que, trabalhada, não retorna ao estado primitivo, o que faz com que a coisa anterior desapareça, fazendo surgir um bem novo.
Para que se opere a aquisição da propriedade, é preciso que a transformação seja fruto do trabalho humano, não sendo enquadradas as transformações acidentais ou as que respeitem a forma antiga.
A propriedade da coisa nova será do especificador, caso a matéria prima seja sua, ou se for apenas em parte, não podendo voltar à sua forma anterior. Se puder, todavia, o dono da matéria prima não perderá sua propriedade. Da mesma forma, caso o especificador aja de má-fé, pois, aí, incorreria em apropriação indébita da coisa, ou mesmo furto, hipóteses que, obviamente, não geram direitos para o especificador. De qualquer maneira, se o preço da mão-de-obra exceder, consideravelmente, o valor da matéria-prima, o objeto novo será do especificador, que apenas terá de indenizar o valor do material que empregou. Nesse sentido, os ensinamentos de Maria Helena Diniz:
“Se da especificação resultar obra de arte, como a pintura em relação à tela, a escultura, relativamente à matéria-prima, e a escritura e outro trabalho gráfico em relação à matéria-prima que os recebe, a propriedade da coisa nova será exclusiva do especificador, se seu valor exceder consideravelmente o da matéria-prima alheia. O órgão judicante deverá, então, averiguar se o valor da mão-de-obra é superior ao da matéria-prima.”[17]
2.2 Confusão, Comistão e Adjunção
A comistão[18], confusão e adjunção são modos de aquisição da propriedade das coisas móveis. Ocorrem, nas três formas de aquisição, uma mistura, em regra involuntária ou fortuita, de matérias pertencentes a diferentes proprietários, em que não seja mais possível separar, desmembrar ou distinguir os bens. Essa mescla de materiais pode ser decorrente de líquidos (confusão) de sujeitos diversos, ou de coisas secas ou sólidas (comistão), ou ainda da justaposição de uma coisa a outra, de forma que seja impossível destacá-las (adjunção).[19] Como exemplo, respectivamente, a junção de vinhos de duas espécies, café de duas qualidades, e solda de uma peça a um motor.
Essas três modalidades são entendidas pela doutrina como formas de acessão de móvel a móvel. Contudo, só existe real acessão da confusão, pois nas outras duas modalidades, há união sem acessão, apesar de que, na prática, todas recebem o mesmo tratamento jurídico.
Se tal amálgama tiver sido convencionada pelas partes, estas devem disciplinar o regime jurídico, livremente, regulando-se pelos princípios contratuais. A regra geral é o condomínio entre todos os titulares, caso seja impossível a separação dos materiais, ou se esta for muito dispendiosa[20], em que cabe a cada proprietário, no produto da mistura, direito proporcional ao valor de suas próprias quotas; contudo, sendo possível a separação, de modo que cada proprietário identifique a coisa a que lhe pertence, o antigo condomínio extingue-se, e cada pessoa continua sendo dona daquilo que lhe pertencia, como no caso de líquidos de densidades diferentes. Se, todavia, um dos componentes puder considerar-se principal, o proprietário deste se tornará dono, com exclusividade e ope legis, do todo, indenizando os outros.
Sendo a mistura efetuada de má-fé, reza o Art. 1273 do Código Civil:
Art. 1.273. Se a confusão, comissão ou adjunção se operou de má-fé, à outra parte caberá escolher entre adquirir a propriedade do todo, pagando o que não for seu, abatida a indenização que lhe for devida, ou renunciar ao que lhe pertencer, caso em que será indenizado.
Caso a mistura resulte em espécie nova, serão aplicados as normas da especificação, e a atribuição da propriedade será conferida segundo os arts. 1272 e 1273 do Código Civil (a doutrina aponta que a remissão legislativa correta seria aos artigos 1270 e 1271).
2.3 Usucapião
Usucapião, no Brasil, é um modo de aquisição do domínio. Apesar de grande importância no domínio dos bens imóveis, existe, também, para os bens móveis, estando regulado a partir do art. 1260 do Código Civil de 2002: “O princípio que inspira a usucapião dos móveis é o mesmo que inspira dos imóveis, isto é, o intuito de emprestar juridicidade a situações de fato que se alongaram no tempo.”[21]
Nesta última modalidade, a legislação civilista prevê dois tipos, o usucapião ordinário, consubstanciado no art. 1260: “Aquele que possuir coisa móvel como sua, contínua e incontestadamente durante três anos, com justo título e boa-fé, adquirir-lhe-á a propriedade.” e o Extraordiário, previsto no artigo subsequente, “Se a posse da coisa móvel se prolongar por cinco anos, produzirá usucapião, independentemente de título ou boa-fé”[22].
O usucapião de bens móveis justifica-se porque, muitas vezes, é preciso comprovar e regularizar a propriedade móvel, como no registro de veículos[23] e regularização de semoventes, como animais de valor (cães, touros, bois, cavalos, etc).
Observa-se o lapso temporal de 3 anos para o ordinário e 5 anos para o extraordinário, o que já diferencia o tratamento jurídico brasileiro do antigo tratamento gaulês (conjunto de populações celtas que habitavam a Gália, atual França, Bélgica e Itália Setentrional), em que prevalecia o lema En fait de meubles la possession vaut titre, ou seja, com a simples posse, já ocorria prescrição instantânea e se estabelecia o domínio. Tal princípio se justificaria para a segurança do comércio e pela impossibilidade de se verificar a identidade das coisas móveis, naturalmente com maior circulação que os bens imóveis. Hodiernamente, a França permite reivindicação, dentro de um triênio, das coisas extraviadas ou subtraídas, apesar da regra ainda permanecer.
O usucapião ordinário requer, além do lapso temporal, alguns requisitos, previstos em lei. São eles: posse mansa e pacífica[24], sem interrupções, ou oposição, por três anos contínuos; justo título (todo e qualquer ato jurídico hábil, em tese, a transferir a propriedade, independentemente de registro), e boa-fé. Já o extraordinário dispensa os dois últimos requisitos, sendo necessário apenas o lapso temporal de cinco anos. Aplicam-se ao usucapião de móveis as causas que impedem, suspendem ou interrompem a prescrição. O Código permite, ainda, que o possuidor acrescente à sua posse, para reconhecimento do usucapião, a posse do seu antecessor, com a condição de que sejam contínuas e pacíficas. Contudo, a doutrina vê com ressalvas tal dispositivo, pois diante do diminuto período necessário para o usucapião, esta norma só deveria ser observada em relação a prescrições mais longas, sob pena de se ver consubstanciado o princípio francês do en fait de meubles la possession vaut titre.
O problema que se observa no usucapião de coisas móveis é saber contra qual sujeito se deve promover a ação, posto que a pretensão é contra todos. In casu, a sentença apenas declarará o domínio, homologando o pedido, devendo o juiz exigir a prova necessária.[25]
2.4 Tradição
Tradere significa entregar, transmitir, dar, e Traditio é a ação de fazer passar a alguém. Antigamente, à época do Direito Romano, havia a traditio longa manu, que era a entrega efetiva do bem ao accipiens , e a traditio brevi manu, que era a entrega a pessoa expressamente designada pelo adquirente, ou na hipótese de constituto possessório.
Hodiernamente, Tradição é a entrega da coisa ao adquirente, o ato pelo qual se transfere a outrem o domínio de uma coisa, em virtude de título translativo da propriedade.[26] É, para os bens móveis, o equivalente ao que a transcrição é para os bens imóveis, pois antes da tradição, o domínio ainda não se considera transferido do alienante para o adquirente[27], ou seja, não se considera dono da coisa móvel aquele que pagou o preço, mas não obteve a entrega da coisa, que foi posteriormente vendida a outrem, não havendo assim direito de reivindicação, como assevera o art. 1267 do Código Civil: “A propriedade das coisas não se transfere pelos negócios jurídicos antes da tradição.”
Para que haja a tradição, é mister que se visualizem dois requisitos: o acordo das partes, no sentido de transferir a propriedade, e a execução desse acordo, via entrega do bem. É importante, ainda, que exista um negócio jurídico anterior que consubstancie a transferência. Após esse momento, a transferência torna-se pública, transformando o direito pessoal para o real (traditionibus et usucapionibus dominia rerum, non nudis pactis, transferuntur):
Art. 1.226. Os direitos reais sobre coisas móveis, quando constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com a tradição.
A tradição pode ser real, quando efetivada pela entrega do bem, do alienante ao adquirente, que o recebe e assinala, ou a um terceiro, por ordem do adquirente, ou ainda pelo envio da coisa à casa deste, ou a outro lugar por ele apontado; simbólica, quando se reveste apenas de um ato que representa a real entrega, substituindo por ato equivalente, como no clássico exemplo da entrega das chaves do veículo ou casa; ou ainda ficta, quando decorrente do constituto possessório, quando o sujeito continua na posse do bem, apesar de este não estar mais em seu nome, mas em nome e conta do adquirente. Este último tipo opera-se mediante dois atos: a transferência da posse de um antigo para um novo possuidor e outro de conservação da posse pelo antio possuidor em nome do novo adquirente.
O art. 1268 afirma que:
Art. 1.268. Feita por quem não seja proprietário, a tradição não aliena a propriedade, exceto se a coisa, oferecida ao público, em leilão ou estabelecimento comercial, for transferida em circunstâncias tais que, ao adquirente de boa-fé, como a qualquer pessoa, o alienante se afigurar dono.
A alienação feita por alguém que não seja dono é crime de estelionato, previsto no art. 171, § 2o do Código Penal. A aquisição a non domino é negócio inexistente, ante o verdadeiro proprietário, a não ser que haja posterior ratificação deste. Isto porque a alienação só é consumada com a traditio, último ato que deve ser praticado pelo alienante, e só o dominus é qualificado para tal ato:
“O dispositivo, repetindo inicialmente o art. 622 do CC/1916, consagra a regra universal de ineficácia da venda feita por quem não era o dono da coisa (alienação a non domino). A inovação a ser destacada encontra-se na parte final do ´caput´e versa sobre a propriedade aparente, ou seja, sempre que a venda tiver ocorrido em leilão oficial ou em estabelecimento comercial, e a tradição tiver ocorrido em circunstâncias tais que, tanto para o adquirente de boa-fé, como para qualquer pessoa, o alienante parecia ser o dono, a alienação estará perfeita.”[28]
O parágrafo 1º do art. 1268, porém, ressalva que se o adquirente estiver de boa-fé e o alienante adquirir depois a propriedade, considera-se realizada a transferência desde o momento em que ocorreu a tradição (Princípio da Revalidação da Traditio pelo domínio superveniente do tradens). O § 2o , por sua vez, afirma que não transfere a propriedade a tradição, quando tiver por título um negócio jurídico nulo.
CAPÍTULO III - AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE NO DIREITO FRANCÊS
Após o estudo do direito brasileiro, faz-se necessário agora se debruçar sobre a jurisdição francesa, para que seja possível a comparação entre os dois institutos.
No Direito Francês, a Aquisição da Propriedade está aposta nos arts. 711 e 712 do Código Civil, que dita, em linhas gerais, que a propriedade se adquire e se transmite pela sucessão, donação entre vivos ou testamentários, por efeitos das obrigações, assim como por acessão ou incorporação e por prescrição.
Tais fórmulas legais evocam os principais procedimentos de aquisição, classificando-se a aquisição em originária (ocupação e acessão), convencional, ou por efeito da possessão útil:
“les premiers seuls combinent un mécanisme translatif ou constitutive avec des relations personnelles établies entre le precedent titulaire – l´auteur – et son successeur – l´ayant cause. Toutefois, cette classification suscite la controverse; de plus, elle intéresse surtout l´acquisition de la propriété; enfin, elle ne met pas suffisamment l´accent sur l´état d´esprit des usagers et sur les procédés les plus usités. C´est pourquoi les modes conventionnels peuvent être isolés des modes légaux[29]: la deuxième rubrique reçoit ainsi, en vrac, les techniques les plus particulières; ce sont toutes celles où l´acquisition s´effetye sans l´accord du precedent propriétaire.” [30]
3.1 Aquisição Voluntária
3.1.1 Ocupação
É um dos tipos de ocupação originária, que, aqui, tem o mesmo significado do Brasil: “L´on deviant le premier proprietaire d´une chose en l´occupant, ou parce qu´elle deviant l´accessoire de ce que l´on avait déjà.”[31], e pode ocorrer tanto nas hipóteses de Ocupação como de Sucessão.
A ocupação é o modo de aquisição, por apreensão, das coisas corporais móveis sem proprietários. Seu domínio provém das coisas comuns, como água corrente, ar e mar, peixes objetos abandonados e tesouros. O regime varia de um para outro, por isso para melhor compreensão do tema, faz-se necessária a distinção entre a ocupação de coisas sem proprietário conhecido, as coisas sem proprietário e as coisas abandonadas. A ocupação de coisas sem proprietário só pode ocorrer com os bens móveis, pois, no direito francês, todo bem imóvel possui um proprietário e, na falta deste, o Estado se diz dono (art. 713 Código Civil).
Os produtos da caça e da pesca são objetos de ocupação, salvo se provenientes da propriedade privada, pois são res nullius que podem ser apreendidas pelo primeiro ocupante:
“Ces biens sont susceptibles d´appropriation par occupation: les animaux sauvages et libres appartiennent à celui qui les a captures[32]”
Le gibier é um princípio pelo qual aquele que mata é o proprietário, mesmo que a caça seja capturada no terreno de outrem e mesmo que se constitua uma infração penal. Se o caçador mata ou fere mortalmente a caça ou se o animal não possui nenhum meio de se locomover, aquele se torna proprietário; contudo, se o caçador apenas fere o animal, podendo este ainda fugir, qualquer pessoa que lhe capture será proprietário por ocupação.
As coisas abandonadas, derelictae, com a real volição direcionada à perda da propriedade, sem mera distração, podem ser objeto de ocupação. Contudo, deve-se tomar cuidado para não confundi-las com as épaves, que são as coisas perdidas por acidente, involuntariamente, pelo proprietário. Neste caso, há uma mitigação do princípio en fait de meubles la possession vaut titre, pois o proprietário possui um lapso de 3 anos para reivindicar o seu bem, como informa o art. 2279 do Código Civil. Tal ação pode ser intentada contra qualquer detentor atual, sem que seja preciso provar que ele é detentor de má-fé, bastando ao proprietário provar seu direito, assim como a involuntariedade de sua perda. Importante afirmar que a doutrina francesa considera que esse ínterim trienal só vale a favor dos possuidores de boa-fé, e não contra os de má-fé, que possuem prescrição diferenciada.
3.1.1.1 Invenção
Distingue-se diversos tipos de épaves, ou coisas achadas. As terrestres são aquelas encontradas em via pública; devem ser declaradas na prefeitura ou polícia. Se o inventor efetua uma declaração, ele se torna um detentor passado um ano e um dia, mas não se considera que ele possui boa-fé, porque ele sempre soube que o objeto era perdido (questão controversa entre a doutrina francesa). Se o inventor não declara seu achado, é considerado possessor de má-fé.
As épaves fluviais são os bens encontrados nos cursos de águas dominiais. Elas devem ser vendidas no mês da descoberta, devendo o produto da venda ser restituído ao Estado, se, no mês da venda, nenhum proprietário se manifeste.
As épaves marítimas são os objetos ou restos de barcos jogados ao mar no fim de um naufrágio. Sua atribuição é dada por leo especial, previstas pelo art. 717 do Código Civil, que tende a favorecer o Estado. Ao descobrir um épave, faz-se uma notificação para descobrir quem é o verdadeiro proprietário. Se, após três meses, ninguém reclama os bens, eles são vendidos pela Administração dos domínios e o preço é recolhido pelo Tesouro ao termo de um período de cinco anos (ou imediatamente em caso de abandono).
3.1.1.2 Tesouro
O Art. 716 do Código Civil definia assim o tesouro: “toute chose cachée ou enfouie sur laquelle personne ne peut justifier sa proprieté, et qui est découverte par le pur effet du hasard”, “toda coisa escondida ou enterrada da qual ninguém consegue justificar sua propriedade, e que é descoberta por puro efeito do acaso”.
Ocorre apenas com bens móveis, escondidos ou enterrados em imóveis ou em outro imóvel, estejam nessa condição por uma dissimulação do proprietário antigo, ou por ruína, bombardeamento, e que o dono seja desconhecido ou esquecido[33]. É preciso ainda, que o bem seja algo desagregado, por exemplo, uma pedra preciosa econtrado no subsolo de um terreno pode ser parte integrante deste imóvel, posto que riqueza natural, e portanto não deve ser caracterizado como um tesouro.
O dono deve ser desconhecido ou esquecido. Caso ele reapareça ou seja encontrado, o tesouro deve ser a ele restituído, caso consiga provar a propriedade do bem (do tesouro em si, pois não basta que se prove a titularidade do lugar em que este foi encontrado). Tal direito prescreve em trinta anos após a descoberta.
Como último requisito, o direito francês exige que o tesouro seja encontrado por acaso. A regra geral para o achado do tesouro se assemelha com o direito brasileiro:
Art. 716: La proprieté du trésor appartient à celui qui le trouve dans son propre fonds; si le trésor est découvert sur le fonds d´autrui, il appartient pour moitié à celui qui le trouver sur le fonds d´autrui et pour moitié au propriétare du fonds.(A propriedade do tesouro pertence àquele que lhe encontra em seu própro terreno; se o tesouro é descoberto no terreno de outrem, ele pertence metade àquele que o encontrou em terreno alheio, e metade ao proprietário do terreno).
Inclusive, no direito francês, da mesma forma que a jurisdição pátria, se é o proprietário que ordena a procura pelo tesouro, é ele o inventor, e não a pessoa contratada, que possui apenas o direito prescrito no pacto, sob pena de enriquecimento sem causa por parte do obreiro.
3.1.1.3 Le Glanage
A Glanage é outro tipo de ocupação listado pelo direito francês. É a soma dos restos abandonados pela ceifeira, que ainda são cereais cultiváveis. A Grappilage, por sua vez, é o resto das uvas abandonadas após as vendagens; já a râtelage é o fato de recolher com um ancinho as ervas deixadas no campo após a ceifa. Eram direitos costumeiros dos pobres de uma paróquia após uma colheita.
Todos os fatos listados acima são considerados infrações pelo direito francês, porque dizem respeito ao fato de se apanhar, seja à noite, seja durante o dia, as colheitas que ainda não foram inteiramente executadas.
É mister distinguir porém, a maraudagem, que é o fato de colher ou comer no lugar da colheita, as frutas pertencentes a outrem. Esta é considerada contravenção, diante da suposição da consciência de se portar atento diante dos bens de outrem.
3.1.2 A Posse e os bens móveis no direito francês.
A posse, para o direito francês, é “est la détention ou la jouissance d´une chose ou d´un droit que nous tenons ou que nous exerçons nous-mêmes, ou par un autre qui la tient ou qui l´exerce en notre nom” (Art. 2225).
Segundo o art. 2229, a posse, para obter a prescrição necessária, deve ser contínua e não interrompida, pacífica[34], pública (não clandestina), sem equívocos e com animus domini. Na ausência de qualquer um desses requisitos, a posse é viciada e inútil ao seu titular.
A partir do preenchimento de tais normas, a posse produz dois efeitos: a aquisição da propriedade pela prescrição, e a criação do direito de proteção possessória (direito de sequela).
3.2 Aquisição Instantânea
Na possessão de bens móveis, como já dito anteriormente, vigora a lei do En fait de meubles, la possession vaut titre. Há, então, uma presunção legal de existência de um título regular de propriedade. Tal proteção supõe a boa fé, e foi criada para beneficiar aquele que possui o domínio de um bem móvel, mas está em conflito com alguém, e não possui uma forma de provar a sua titularidade.
“L´acquisition, par la possession, peut être instantanée, Il en est ainsi quand le possesseur d´un meuble se trouve face à un propriétaire dessaisi autrement que par vol ou perte: ce propriétaire a probablement confié son bien à un tiers que l´a vendu. Le conflit à trancher oppose le propriétaire dépouillé et un possesseur non fautif.”[35]
Se o possuidor adquirir o móvel a non domino, ele não deve declarar propriedade, porque o vendedor, ou o doador, não é proprietário. Contudo, se o verdadeiro proprietário venha reivindicar contra ele esse bem, o possuidor invocará essa possessão útil, e se tornará, então, proprietário, desde que preencha certos requisitos, quais sejam: o verdadeiro proprietário deve ter se desapossado da coisa voluntariamente, e o possuidor deve ter boa fé, ou seja, ele deve crer plenamente, no momento que adquiriu a coisa, de que o autor era proprietário:
“Si toutes ces conditions sont réunis, le possesseur de bonne foi prime le propriétaire inicial dépossédé; il a en main à la fois la chose et un titre de propriété né du fait de la possession utile, de telle sorte que le propriétaire ne peut pas exercer contre lui une action en revendication, sauf perte ou vol.”[36]
Se o verdadeiro proprietário tiver perdido a coisa involuntariamente, o possuidor deve restituir o bem, mas, estando de boa fé, ele tem direito de conservar os frutos que a coisa produziu no tempo em que estava sob sua posse. Estando de má fé, o verdadeiro proprietário da coisa pode entrar com uma ação de reivindicação, que prescreve em trinta anos.
3.3 Dos Modos Legais de Aquisição
Tais hipóteses são numerosas, em que a qualidade de proprietário é dada pela lei. Caracteriza-se pela cedência do anterior titular do direito, sem acordo ou mesmo contra sua vontade e pelo benefício do adquirente, automaticamente através do sistema legal, ou pela sua própria vontade.
3.3.1 Sucessão
A aquisição pode ser mera consequência de um fato jurídico. Na sucessão, alguém transmite seus bens a seus legatários ou herdeiros, que se tornam titulares dos direitos do de cujus de forma imediata e de pleno direito. A aceitação ulterior é apenas o ato através do qual o herdeiro confirma e consolida os efeitos da transmissão legal.
3.3.2 Acessão
Segundo o art. 546 do Código Civil francês, é a propriedade de uma coisa, seja móvel ou imóvel, que dá direito sobre tudo o que ela produz e é a ela unido por acessoriedade, seja naturalmente, seja artificialmente:
“L´acession est un mode d´acquisition qui, procédant par la reúnion de l´accessoire au principal, rend le propriétaire d´une chose principale maître de la chose accessoire qui s´y unit.”
O Código distingue a acessão sobre aquilo que é produzido pela coisa (Art. 547 ao 550), daquela sobre o que se une ou se incorpora (Art. 551 e seguintes).
Com relação às coisas móveis, segundo o art. 565:
Le droit d'accession, quand il a pour objet deux choses mobilières appartenant à deux maîtres différents, est entièrement subordonné aux principes de l'équité naturelle.
Distingue-se, ainda, a acessão por adjunção, especificação e por mistura: A adjunção são duas coisas, pertencentes a dois proprietários, unidas para formar um todo, mas continuando separada; a especificação ocorre quando uma pessoa cria uma coisa móvel nova com um material pertencente a outrem, da mesma forma que no direito brasileiro; e a mistura, por fim, é a reunião de inúmeras coisas pertencentes a proprietários diferentes, para formar uma outra, mas sem que a separação seja possível, o que a difere da adjunção.
O dono do bem principal torna-se dono da coisa nova, salvo indenização. Se a coisa puder ser separada, ou repartida, ela será comum entre os dois proprietários. O art. 2279 do Código Civilista afasta os litígios, no caso de o proprietário da coisa principal estar de boa fé, e possuir utilmente a parte móvel incorporada. Ele se torna proprietário, salvo haja enriquecimento sem causa.
3.3.3 Le délaissement
É uma faculdade de transferência forçada da propriedade, a requerimento do proprietário, quando seu desapossamento futuro é praticamente certo, e uma sujeição pesa sobre seus bens. Por exemplo, é o que ocorre com proprietários de terrenos os quais já haviam sido reservados pelo plano de urbanismo (áreas verdes, vias públicas). O próprio proprietário toma a iniciativa da expropriação:
“L´autorité publique a manifesté don intention d´acquerir un jour: c´est ce délai qu´elle ne peut imposer au propriétaire. La demande de celui-ci déclenche, automatiquement pour l´acquéreur, le processus d´acquisition. L´autorité publique, qui avait ‘gelé’ un terrain en annonçant son projet, est immédiatement contrainte de décharger le propriétaire du bien stérilisé.”[37]
3.3.4 Retrocessão
Algumas vezes, o proprietário, desapossado de seu bem por iniciativa da autoridade pública, pode obter a restituição, que dá ao antigo proprietário o patrimônio que lhe foi retirado, ou, em caso de impossibilidade, uma reparação do equivalente. Isso ocorre para evitar que a expropriação por utilidade pública se desvie do seu fim legal. Tanto a retrocessão quando o délaissement (ou desapossamento), no Brasil, são alvo de estudo do Direito Administrativo, e não do Direito Civil.
3.4 Aquisição Convencional
3.4.1 Propriedade alienável
São inalienáveis alguns tipos de bens que não estão no comércio e aqueles que são bens objetos de liberalidades concedidas por uma pessoa à um beneficiário sob condição de que seja transmitido pelo beneficiário a um segundo gratificado. Tais bens, segundo o direito francês, são inalienáveis na medida em que o direito de propriedade está indiretamente limitado pela obrigação de conservar e restituir o bem gravado da substituição, sobretudo os gravados com cláusula de inalienabilidade.
3.4.2 Alienação da Propriedade e Tradição
Na prática, as técnicas de repartição dos bens são feitas por meio de contratos, acordo entre as partes, na qualidade de locatários e locadores, compradores e vendedores, donatários e doadores, usufrutuários. Todos esses tem por consequência a criação de uma obrigação
Com a aplicação ao princípio do Consensualismo, a transferência convencional da propriedade se opera pela troca de consentimentos. Em princípio, a troca de propriedade é realizada solo consensu, sem esperar a entrega efetiva que constitui a mera execução do contrato, e não a sua formação. É a instantaneidade da transferência do direito francês. É o que traz o art.1138:
L'obligation de livrer la chose est parfaite par le seul consentement des parties contractantes.
Elle rend le créancier propriétaire et met la chose à ses risques dès l'instant où elle a dû être livrée, encore que la tradition n'en ait point été faite, à moins que le débiteur ne soit en demeure de la livrer ; auquel cas la chose reste aux risques de ce dernier.
A venda, a troca, a doação, todos obedecem tal regra, por exemplo, o art. 1583 do Código Civil dispõe que:
Art. 1583 Elle est parfaite entre les parties, et la propriété est acquise de droit à l'acheteur à l'égard du vendeur, dès qu'on est convenu de la chose et du prix, quoique la chose n'ait pas encore été livrée ni le prix payé.
Portanto, em resumo, a não ser que haja uma convenção entre as partes (manifestação de vontade) em outro sentido, a transferência do direito é imediata, mesmo se a tradição não tenha sido ainda efetivada:
“au moment où les parties s´accordent, l´acquéreur deviant propriétaire, sans aucun retard. Telle est, du moins, la solution qui résulte normalement du mécanisme legal: puisque l´effet translatif peut être attaint sans autre condition que l´entente des parties, il se realise dès la formation du contrat. Les deux phénomenes sont simultanés. Le notable est que l´effet obligatoire comporte une exécution ultérieure, tandis que l´effet translatif est provoqué, et le transfert execute, d´emblée.”[38]
Por consequência, o vendedor é desapossado, ou seja, ele é proibido de se assorear do bem que é do adquirente, por exemplo, revendendo a coisa a um segundo adquirente. No direito francês, todos os direitos e objetos da coisa são transmissíveis, salvo convenção em contrário (Ex: hipoteca, da mesma forma do direito pátrio), como dita o art. 2575:“Le vendeur ne transmet à l´acquéreur que la propriété et les droits qu´il avait lui-même sur la chose vendue”:
“C´est le príncipe dit de conservation dês droits transmis: nemo plus júris ad alium transferre potest, quam ipse habe. (…) Si la propriété ou le droit aliénés étaient greves de charges, celles-ci survivront sur la tête du nouveau titulaire. Les droits réels démembrés ou de garantie dont dês tiers bénéficiataient leut profiteront après le transfert comme auparavant.[39]”
Há algumas exceções com relação à regra da transferência imediata do bem, por exemplo, nas coisas fungíveis, só se é efetuada a translação no momento em que a coisa seja identificada e especificada:
Art. 1585 Lorsque des marchandises ne sont pas vendues en bloc, mais au poids, au compte ou à la mesure, la vente n'est point parfaite, en ce sens que les choses vendues sont aux risques du vendeur jusqu'à ce qu'elles soient pesées, comptées ou mesurées ; mais l'acheteur peut en demander ou la délivrance ou des dommages-intérêts, s'il y a lieu, en cas d'inexécution de l'engagement.
Situação curiosa está na hipótese de bens que devem ser degustados para provar sua qualidade, como por exemplo, os vinhos. Aqui, a permutação só se concretiza após o momento da degustação, como informa o art. 1587:
Art. 1587 A l'égard du vin, de l'huile, et des autres choses que l'on est dans l'usage de goûter avant d'en faire l'achat, il n'y a point de vente tant que l'acheteur ne les a pas goûtées et agréées.
Com relação aos bens móveis, o art. 1141 indica que, caso haja dois adquirentes sucessivos do mesmo bem, o primeiro tem preferência e se torna proprietário, caso possua uma possessão de boa-fé (que por sinal, é presumida).
CONCLUSÃO
Este trabalho teve por objetivo trazer à tona as semelhanças e diferenças do instituto da Aquisição da propriedade móvel no direito brasileiro e francês, tendo por base a legislação civil de cada país e a doutrina respectiva.
A importância desse labor está na possibilidade de incrementar conhecimentos da matéria, já que pode se visualizar como o direito se amolda a cada sociedade, de acordo com as suas necessidades.
Para os que se dedicam ao estudo do direito civil, ficará a segurança do conhecimento do direito internacional comparado, da abordagem minuciosa, assim como da íntima relação existente entre a realidade jurídica brasileira e a francesa. Já para os que seguem outras áreas do Direito, ficará marcada a satisfação pela apreciação de um instituto de imensurável praticidade.
ALVES, Jones Figueirêdo. DELGADO, Mário Luiz. Código Civil Anotado. São Paulo: Método, 2005
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VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Direitos Reais. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2005.
[1] ROCHA, Coelho da. Instituições. P. 333
[2] Nemo plus iuris ad alium transferre potest, quam ipse haberet.
[3] “Toda a estrutura das codificações civis do sistema romano-germaânico dá preeminência e proteção jurídica mais extensa aos bens imóveis, entendendo que no imóvel está o substrato da riqueza. Na Idade Média, a propriedade da terra era sinônimo de soberania e poder. Essa noção insere-se nas codificações.” VENOSA, Silvio de Salvo. 2005. P. 247.
[4] “No entanto, ainda reside no imóvel a vitalidade da economia privada e a soberania dos povos. Disso dificilmente se afastará. Aos bens móveis, contudo, está reservado o importante papel de circulação das riquezas; a dinâmica da sociedade.” VENOSA, Sílvio de Salvo. 2005. P. 249.
[5] VENOSA, Sílvio de Salvo. 2005. P. 193.
[6] DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado. 2008. P. 866.
[7] RT, 481/351, BAASP, 1.976:1.
[8] BARROS, Washigton Monteiro de. 2008. P. 187
[9] BARROS, Washington de. P. 190.
[10] BARROS, Washigton de. 2003. P. 191.
[11] JUNIOR, Humberto Theodoro. 2002. p. 178.
[13] “Para que ocorra o tesouro, o achado há de ser casual. Se o agente pesquisa justamente para encontrar coisas preciosas, não há tesouro. Se o fazia com licença do dono do imóvel, há contrato entre eles. Se contra sua vontade, a coisa pertence inteiramente ao dono do imóvel.” VENOSA, Sílvio de Salvo. P. 259.
[14] NADER, Paulo. 2006. P. 194.
[15] “Especificação. A especificação é o modo de adquirir em decorrência da indústria no trabalho criador de espécie nova, que exsurge da matéria-prima trabalhada pelo homem. Espécie. Não pode considerar nova a transformação acidental da matéria, estranha ao trabalhado do especificador.” (TJRS, Apelação Cível 39.540, 1ª Câm. Cív. Rel. Des. Cristiano Graeff Júnior, j. em 15-12-1981).
[16] MALUF, Carlos Alberto Dabus. 2008. p 1321.
[17] DINIZ, Maria Helena. P. 870.
[18] “Lamentavelmente, o texto aprovado, certamente por equívoso, grafou a palavra ‘comistão’ com dois ‘s’ em vez de ‘t’, escrevendo assim a palavra ‘comissão’, que não tem nada que ver com a ‘comistão’, tratada no texto legal. Tal erro material deve ser logo corrigido por projeto de lei.” FIUZA, Ricardo. P, 1325.
[19] “Adjunção é a simples união de uma coisa alheia a coisa nossa, de modo a não se poder separá-las sem detreimento do todo assim formado, por exemplo, quando uma pessoa faz reparações numa barraca sua com madeira pertencente a outrem. Confusão, segundo os romanos, era a união de líquidos, quer homogêneos, como vinhos de dois proprietários, quer heterogêneos, como vinho e mel. A união de gêneros secos, como cereais ou legumes, era designada por comistão ou mistura”.GONÇALVES, Luiz da Cunha. p. 438.
[20] “Quid iuris se a parte insiste na separação das coisa ainda que muito dispendiosa? Deve o juiz decidir no caso concreto, impondo à parte insistente as despesas pela separação, pois a lei não autoriza, na hipótese, a proporcionalidade dos custos.” VENOSA, Sílvio de Salvo. p. 262.
[21] RODRIGUES, Silvio. 2002. P. 193.
[22] “Recurso Especial. Usucapião ordinário de bem móvel. Aquisição originária. Automóvel furtado. Não se adquire por usucapião ordinário veículo furtado.” (STJ, Resp 247.354, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, j. em 4-12-2001).
[23] “Usucapião. Bem móvel. Ação interposta pretendendo a regularização de veículo junto à repartição de trânsito, uma vez existentes dúvidas quanto à licitude da aquisiçãi do automóvel. Admissibilidade”
[24] “Segundo Clóvis Bevilácqua, as condições que o Código Civil exige são continuidade e a tranquilidade (objetivas) e o animus domino (subjetiva): ‘A posse para conduzir usucapião deve ser: 1º) com ânimo de ter a coisa como própria, animus domini (possuir o imóvel como seu). (…) Enfim, não têm posse as usucapionem, por faltar o animus domini, aquelas pessoas jungidas por um contrato e ainda quando tenham ciência do exercício da posse por terceiro. (…)” (Ap. Cív. C. 475.840-3, rel. Des. Afrânio Vilela, j. 2.2.2005).
[25] “Desconhecido o atual proprietário, emerge dúvida sobre quem colocar no pólo passivo. A solução será, sem dúvida, a citação edilícia de réus desconhecidos, incertos e ausentes, hipótese em que determinará a presença do Ministério Público. Doutro lado, dirigida a ação exclusivamente contra anterior proprietário, pois outro interessado na coisa não exite, não há necessidade de intervenção do Ministério Público.” (JTACSP 120/125)
[26] MONTEIRO, Washington de Barros. P. 200.
[27] Há casos especiais, em que a transferência por simples manifestação de vontade já basta, como, por exemplo, no caso em que alguém está em posse de uma coisa emprestada, passando depois a adquiri-la.
[28] ALVES, Jones Figueirêdo. DELGADO, Mário Luiz. Código Civil Anotado. São Paulo: Método, 2005. P. 631.
[29] V. Carbonnier. Droit Civil. PUF. T.3. Les biens. 13 a. ed. 1990. P. 177 et 178. N. 106 e s.
[30] ATIAS, Christian. 2009. P. 201.
[31] MEMÉTEAU, Gérard. P. 99.
[32] DRUFFIN-BRICCA, Sophia; HENRY, Laurence-Caroline. P.110.
[33] “Le trésor est une chose sur laquelle nul ne peut justifier une proprieté, ni le maître d´origine, ni les héritiers. On ne peut pas dire que la proprieté s´en soit perdue par le non-usage, mais plutôt que le propriétaire s´en est perdu par oubli ou par disparition!” p. 101.
[34] Art 2263 – Les actes de violence ne peuvent fonder une possession capable d´operer la prescription. La possession utile ne commence que lorsque la violence a cessé.
[35] P. 231.
[36] Memeteau. P. 121.
[37] Atias, Christian. P. 224.
[38] C. Atias. Les biens. n. 280.
[39] Atias, christian. P. 219.
Analista Judiciária do Tribunal de Justiça de Pernambuco, Bacharela em Ciências Jurídicas e Sociais na Universidade Federal da Paraíba, residente em João Pessoa - PB.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AGUIAR, Suellen Santos Rodrigues de. Noções Gerais acerca da Aquisição da Propriedade Móvel no Direito Brasileiro e na Legislação Francesa Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 abr 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46428/nocoes-gerais-acerca-da-aquisicao-da-propriedade-movel-no-direito-brasileiro-e-na-legislacao-francesa. Acesso em: 23 dez 2024.
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