RESUMO: O presente trabalho tem por escopo examinar a atividade de argumentação como forma de controle da interpretação constitucional, diante das peculiaridades decorrentes da tessitura aberta do texto constitucional, bem como da alta carga valorativa de suas normas.
PALAVRAS-CHAVE: Argumentação jurídica. Controle. Interpretação constitucional.
ABSTRACT: This intelectual task intends to examine the argumentative activity as constitutional interpretation control, considering the peculiarities arising from the opened composition of the Constitution text as well as the high load of its juridic normativity.
KEYWORDS: Legal argument. Control. constitutional interpretation.
1. INTRODUÇÃO
Diante do destaque assumido pela Constituição da República em nossa ordem jurídica, como decorrência do neoconstitucionalismo e do fenômeno da constitucionalização do Direito, tem-se discutido sobre a adequada interpretação e aplicação das normas constitucionais, que, por terem estrutura diversa e carga valorativa superior às regras infraconstitucionais, não se contentam com os métodos hermenêuticos tradicionais, inaptos para extrair toda a potencialidade normativa da constituição.
Com efeito, os clássicos métodos de interpretação propostos por Savigny (métodos gramatical, lógico, sistemático, histórico e teleológico) não se revelam suficientes quando se trata de interpretar normas constitucionais, que albergam, no mais das vezes, princípios fundamentais do sistema, expressos de forma proposital em conceitos indeterminados e textos abertos, a fim de permitir a contínua evolução da jurisprudência, em harmonia com as alterações sociais.
A partir dos ensinamentos de Konrad Hesse, a doutrina identifica oito princípios instrumentais específicos para tratar sobre a hermenêutica constitucional. Tratam-se de metanormas, ou normas de 2º grau, que orientam como as normas de 1º grau (que compõem a dogmática jurídica) devem ser aplicadas. São eles: princípios da unidade, do efeito integrador, da concordância prática ou harmonização, da relatividade, da força normativa, da máxima efetividade, da conformidade ou da justeza e da proporcionalidade.
Assim, na interpretação das normas constitucionais e, sobretudo, no caso de colisão entre princípios fundamentais, o intérprete deve se valer desses postulados a fim de encontrar a melhor solução para o caso concreto, reduzindo proporcionalmente o âmbito de aplicação dos princípios em conflito com objetivo de evitar o sacrifício completo de algum deles, concretizando-os na maior medida possível.
Pelas considerações preliminares e comezinhas postas acima, é possível desde logo constatar que o atual ordenamento jurídico defere grande margem de atuação ao intérprete constitucional, conferindo-lhe expressiva liberdade que, se mal utilizada, poderá redundar em desvios e soluções inadequadas. O risco foi devidamente percebido por Paulo Bonavides (2005, p.477), que resumiu a questão da seguinte maneira:
“Descortina-se assim um campo de imprevisível extensão para o florescimento de distintas posições interpretativas no domínio da hermenêutica constitucional. Perde porém essa hermenêutica a firmeza do modelo clássico, que se assentava numa lógica confiante, sólida, imbatível. Sua plasticidade é fraqueza. A manipulação dos fins e do sentido faz deveras fácil o tráfego a soluções de conveniência, a conclusões pré-concebidas, a subjetivismos, em que o aspecto jurídico sacrificado cede complacente a solicitações do aspecto político, avassalador da norma e produtor exuberante de perplexidades e incertezas inibidoras”.
Sucede que todo o caminho percorrido pelo juiz até chegar à solução do caso deverá ser devidamente fundamentado, como impõe o art.93, inciso IX da Constituição Federal, dever que se apresenta mais contundente em se tratando de normas constitucionais, uma vez que elas guardam os valores mais relevantes para a sociedade.
Aqui desponta o estudo sobre a argumentação jurídica, objeto do presente trabalho, como forma de controle da legitimidade da interpretação constitucional.
2. ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA: CONCEITO E ELEMENTOS
A argumentação faz parte do mundo jurídico, da própria essência do Direito, pois todas as partes que atuam no processo apresentam seus argumentos, seja para convencer ou para motivar determinado entendimento.
Assim, podemos conceituar argumentação como a atividade de fornecer razões para a defesa de um ponto de vista, o exercício da justificação de determinada tese ou conclusão, tendo como elementos fundamentais: (1) a linguagem, (2) as premissas, que atuam como ponto de partida e (3) as regras que orientam a passagem das premissas à conclusão.
Considerando que a interpretação dos princípios constitucionais admite diversos resultados, vez que, ao contrário das regras, não são mandamentos de definição nem se aplicam por subsunção, a análise da argumentação ganha relevo para propiciar o controle da racionalidade das decisões judiciais.
A argumentação jurídica desenvolveu-se, notadamente, no final do século passado, citando-se como expoentes Aarnio (1987), Alexy (1978), MacCormick (1978), Peczenik (1984) e Wróblewsky (1974). A principal questão posta pela teoria da argumentação pode ser assim resumida: se há diversas possibilidades interpretativas acerca de um mesmo caso, qual delas é a correta? Ou, na hipótese de diversas soluções plausíveis, quais delas apresentam uma fundamentação racional consistente? Como se demonstrar que uma determinada argumentação é melhor que a outra?
Nas palavras de Uadi Lammêgo Bulos (2010, p.438):
“A teoria da argumentação, aplicada à exegese constitucional, procurou fornecer subsídios para sabermos qual a opção exegética que deve prevalecer diante das diversas possibilidades interpretativas da mesma norma”.
Existem diversas teorias acerca dos parâmetros que a argumentação deve observar para ser considerada válida, variando os critérios de acordo com o autor, ante a ausência de consenso doutrinário. Aqui, examinaremos os três parâmetros elementares de controle de argumentação sistematizados pelo Ministro Luís Roberto Barroso, em razão da sua simplicidade e utilidade quando da utilização da técnica de ponderação.
1º) A argumentação jurídica deve apresentar fundamentos normativos. O intérprete deve indicar elementos da ordem jurídica, mesmo que implícitos, aptos a respaldar sua decisão. Logo, não basta o bom senso e o sentido de justiça pessoal, pois é necessário um referendo jurídico à sua posição.
Este primeiro parâmetro decorre da própria ideia de Estado de Direito, pois apenas por meio de lei o Poder Judiciário pode impor coativamente determinada conduta a alguém. Logo, a argumentação jurídica deve manter e reforçar seu caráter jurídico – não se trata apenas de uma argumentação lógica ou moral. Por conseguinte, a priori, um conflito normativo deve ser resolvido em prol da solução que apresente o maior número de normas jurídicas em seu arcabouço, ou seja, que apresente maior suporte jurídico.
Aqui, necessário fazer uma rápida digressão: é que apenas será possível controlar a argumentação do intérprete se houver uma argumentação explicitamente declinada.
É sabido que, por força do já mencionado art.93, inciso IX da Constituição Federal, toda decisão judicial deve ser motivada; contudo, se a decisão envolver a técnica da ponderação, a imposição de motivar torna-se ainda mais contundente, uma vez que haverá restrição no âmbito de aplicação de um princípio constitucional. Nesses casos, o julgador percorre um caminho muito mais longo e acidentado para chegar à conclusão. É seu dever constitucional demonstrar claramente às partes qual foi o percurso trilhado por seu pensamento até chegar aquele resultado.
Atento à necessidade de motivar melhor as decisões judiciais, e visando a coibir certas técnicas de decisão que, a despeito de aceitas pela jurisprudência, não realizam satisfatoriamente o dever de fundamentação (motivação concisa), o recente Código de Processo Civil inovou e trouxe, em seu art.489, §1º, um rol em que não se considera fundamentada qualquer decisão judicial: I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. Nesses casos, a decisão será nula, devendo ser proferida outra em substituição, dessa vez com o vício sanado.
Vê-se que o legislador ordinário em boa hora preocupou-se com a efetividade do dever de fundamentação das decisões judiciais, que, repise-se, ganha especial relevo quando se adotar a técnica da ponderação, caso em que será absolutamente indispensável que o julgador exponha analítica e expressamente o raciocínio e a argumentação que o conduziram a uma determinada conclusão, permitindo assim que as partes possam controlá-la.
2º) A argumentação jurídica deve preservar a integridade do sistema. O intérprete deve ter compromisso com a unidade, com a continuidade e com a coerência da ordem jurídica, o que decorre dos princípios instrumentais da unidade e do efeito integrador, mencionados de pórtico. As decisões judiciais não devem ser casuísticas, mas passíveis de generalização e universalização a todos os casos semelhantes em que estejam presentes as mesmas circunstâncias – afinal, onde há a mesma razão, deve haver o mesmo Direito.
Ademais, o intérprete deve atentar para os precedentes e evitar mudanças bruscas e não fundamentadas de entendimento. O respeito à jurisprudência é uma forma de promover segurança jurídica e de resguardar a isonomia, embora autorizadas vozes se insurjam contra a possível fossilização da atividade criativa da jurisdição. Nessa linha, o novo Código de Processo Civil atribui expressiva força aos precedentes dos tribunais, que não podem ser livremente ignorados pelo juiz em nome da sua convicção e independência.
Este ponto, portanto, traduz a possibilidade de universalização dos critérios adotados pela decisão, o que já sinaliza a sua coerência e permite a prévia visualização de desvios e inconsistências. Em atenção ao princípio da isonomia, espera-se que os critérios empregados para a solução de um determinado caso concreto possam ser transformados em regra geral para situações semelhantes.
3º) A argumentação deve ser principialista. Exige-se rigor técnico na atividade de argumentação, a qual deve observar os princípios específicos de interpretação constitucional, bem como os princípios materiais propriamente ditos, que trazem em si a carga ideológica, axiológica e finalística da ordem constitucional.
Dessa forma, entre várias soluções igualmente plausíveis, o intérprete deverá percorrer o caminho ditado pelos princípios instrumentais e realizar, tanto quanto seja possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas existentes, o estado ideal pretendido pelos princípios materiais.
O intérprete constitucional não pode isolar-se no mundo jurídico, desconectando-se da realidade e das consequências práticas de sua atuação. No exercício de sua atividade, deverá encontrar um equilíbrio entre a prescrição normativa, os valores a serem concretizados e os efeitos da decisão sobre a realidade. É preciso evitar situações extremas: juízes e tribunais não podem se valer de uma argumentação visando apenas às consequências práticas de suas decisões – ao contrário, devem guardar obediência aos valores e princípios constitucionais que lhes cabe concretizar. Por outro lado, o juiz constitucional não pode ser um jurista frio e indiferente à repercussão de sua atuação sobre o mundo real, sobre as instituições, o Estado e as pessoas.
Além da questão posta acima, outros dois problemas que têm ocupado os estudiosos da argumentação jurídica envolvem exatamente a seleção das normas e dos fatos que serão considerados em uma determinada situação. Sabe-se que, na prática, durante o julgamento de determinado caso complexo, alguns fatos são considerados relevantes, enquanto outros são ignorados. Que critérios levam o intérprete a dar relevância jurídica a alguns eventos e ignorar outros? Como evitar que esta seleção decorra de ideologias pessoais, considerando que é ultrapassado o ideal utópico de juiz neutro?
Também a seleção das normas aplicáveis nem sempre é tarefa simples. A pergunta aqui pode ser formulada nos seguintes termos: que normas são pertinentes ao caso? Quais princípios estão aparentemente em conflito?
3. CONCLUSÃO
Como se viu, o controle da racionalidade do discurso jurídico suscita questões diversas, complexas e sutis, que se agravam na proporção da liberdade concedida a quem interpreta. Em sede de interpretação constitucional, a argumentação assume, muitas vezes, um papel decisivo no controle das decisões judicias, pois o caráter aberto dos princípios e os conceitos indeterminados conferem ao intérprete elevado grau de subjetividade.
Contudo, observa Uadi Lammêgo Bulos (2010, p.438):
“Embora merecedora de aplausos, a teoria não conseguiu decifrar o indecifrável: o que se passa na mente do intérprete.
Por mais que se busquem decisões judiciais “seguras” ou “corretas”, jamais será possível desvendar por que existem vereditos contraditórios sobre um mesmo assunto, proferidos por um mesmo juiz, com base em fatos e elementos normativos idênticos.
O motivo é simples: a interpretação jurídica é o reencontro gradual do espírito humano consigo próprio.”
Não obstante as profundas ponderações do grande constitucionalista, é pacífico que a demonstração lógica e adequada do raciocínio desenvolvido revela-se imprescindível para a legitimidade da decisão proferida, permitindo seu controle e revisão pelos jurisdicionados.
4. REFERÊNCIAS
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2004.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 16 ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
Analista Ministerial e Assessora Jurídica Especial do Ministério Público do Estado do Ceará. Pós-Graduada em Direito Penal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAVALCANTE, Anna Paula Pinto. Breve análise sobre a teoria da argumentação jurídica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 abr 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46460/breve-analise-sobre-a-teoria-da-argumentacao-juridica. Acesso em: 23 dez 2024.
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