Resumo: O artigo em tela aborda a relação existente entre o instituto da Ação Civil Pública e o Ativismo Judicial. Lições acerca da referida ação, disciplinada pela Lei 7.347/85, foram desenvolvidas, objetivando demonstrar a legitimidade de promoção do ativismo judicial através de tal instrumento. Partiu-se da constatação de que ao promover a tutela de certos direitos constitucionais, de natureza coletiva em sentido lato, a ação civil pública transfigura-se em extraordinário instrumento de ativismo judicial e, portanto, de efetividade de direitos.
Palavras-chave: Ação Civil Pública. Ativismo Judicial. Atuação do Ministério Público. Judicialização de políticas públicas.
Introdução
O ativismo judicial consiste num tem palpitante que já instigou considerável produção acadêmica pela doutrina constitucional pátria. Tal tema torna-se ainda mais intrigante quando tal fenômeno pode ser evidenciado no bojo de uma ação coletiva, em especial, a ação coletiva que segundo a ordem jurídica pátria figura como uma das mais eficientes ações para promoção da tutela de direitos metaindividuais.
Trata-se da ação civil pública, regulamentada pela lei 7.347, de 24 de julho de 1985. Será a referida ação um meio legítimo para a promoção do ativismo judicial? Nesse caso, qual a acepção do ativismo judicial que pode ser evidenciada? Tal fenômeno não pode culminar numa crise institucional por afrontar a teoria da separação dos poderes? Como os tribunais superiores tem se comportado diante da matéria? Eis os questionamentos que ensejaram a feitura deste artigo.
Buscou-se tratar do ativismo judicial através da ação civil pública. Assim, questões acerca da legitimidade do uso da ação civil pública para discussão de políticas públicas e do papel do Ministério Público em promovê-las encontrou ressonância, além de como os tribunais superiores vêm se posicionando acerca da matéria.
1. Ação civil pública e ativismo judicial
Partindo-se do pressuposto de que o ativismo judicial é o gênero do qual uma de suas espécies consiste na judicialização de políticas públicas, é necessário se apontar, de imediato, que esta se evidencia quando por meio de sindicabilidade jurisdicional, políticas públicas passam a ser oportunamente analisadas e, às vezes, implementadas.
Sendo a ação civil pública reconhecida, indubitavelmente, como uma das ações coletivas de maior eficácia e prestígio na tutela dos direitos coletivos lato sensu, resta, pois, um questionamento: será a ação civil pública um meio legítimo de promoção de políticas públicas?
A judicialização de políticas públicas, enquanto faceta do ativismo, certamente ocorre, muitas vezes em sede de uma ação civil pública. Tal assertiva é inquestionável, e para corroborá-la, basta detida pesquisa jurisprudencial. Mas o questionamento feito, a suscitar a legitimidade da referida ação para o trato da matéria elencada, desperta discussões.
O maior entrave à resposta afirmativa à pergunta acima formulada diz respeito ao princípio da separação dos poderes. Ao se considerar que o Judiciário deve portar uma postura concretizante, é dizer, conferir efetividade a direitos, além de destacar a serventia da ação civil pública, será necessário reforçar a justificativa do ativismo judicial, principalmente quando materializado por meio desta.
A postura do Judiciário em avaliar todas as relações sociais que a ele forem entregues, e de nelas influir, mormente quando presente relevante interesse social a exigir tal apreciação, faz dele próprio um poder político.
Isso faz com que se advogue, aqui, a adoção da Intervenção Legitimadora Necessária do Poder Judiciário; ou seja, justifica-se plenamente a intervenção do Poder Judiciário em temática própria de outro Poder, sempre que este, para não conceder direitos assegurados constitucionalmente, especialmente os pertencentes à órbita dos direitos sociais, e constantes do núcleo restrito ao mínimo existencial, deixam de ser concedidos pela Administração pública sob alegação, especialmente, de não-implementação de políticas, por falta de previsão orçamentária para isso, ou por insuficiência de recursos. [...] Pensar de forma diferente, com a devida vênia, seria transformar o Poder Judiciário em Poder estritamente técnico, indiferente aos reclamos sociais, quer em razão da impossibilidade de efetivação de direitos fundamentais, quer pela indiferença comodista de não exercer atividade jurisdicional ante a inércia de outros Poderes, especialmente o Executivo, a quem cabe executar políticas públicas voltadas, como condição, para a implementação desses direitos.[1]
Os direitos sociais, expressos na própria Constituição, exigem do Poder Público uma prestação, de forma a torná-los reais. Consoante a doutrina de Konrad Hesse, ‘‘a Constituição não configura, portanto apenas expressão de um ser, mas também de um dever ser’’[2]. Essa ideia exprime a imperatividade das normas constitucionais, isto é, de que são normas jurídicas dotadas de eficácia normativa, por serem os veículos de transformação do mundo fenomênico.
Torna-se indiscutível, dessarte, que a decisão tomada com fundamento na Constituição reforçará a referida imperatividade.
Nesse sentido,
[...] as normas constitucionais como espécie de gênero normas jurídicas conservam os atributos essenciais destas, dentre os quais a imperatividade. De regra, como qualquer outra norma, elas contêm um mandamento, uma prescrição, uma ordem, com força jurídica e não apenas moral’.[3]
Quando o Judiciário, nesse contexto, analisa uma ação civil pública que, dentre seus pedidos, almeja precipuamente o cumprimento de uma obrigação de fazer, a exemplo do fornecimento de medicamentos essenciais a postos de saúde por parte da Secretaria de Saúde de um determinado estado-membro, está buscando dar vida à Lex Mather, obedecendo-a.
Assim agindo, compreende os comandos constitucionais como ordens, principalmente os veiculadores de direitos fundamentais, em especial os direitos sociais, responsáveis por garantir o mínimo existencial, isto é, as condições básicas, mínimas, responsáveis por possibilitar uma vida condigna, em respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1, III, da CF), da máxima efetividade (artigo 5, § 1, da CF) e do Estado democrático social de direito (artigo 1, da CF).[4]
De acordo com Ana Paula de Barcellos, esse parâmetro mínimo de existência compreende quatro elementos, sendo três de característica material e um natureza instrumental, compreendidos a educação fundamental, a saúde básica, assistência aos desamparados e o acesso à Justiça[5].
Não obstante a programaticidade inerente a tais normas, se se conformar o Judiciário em não as implementar, por entender não ser razoável perpetrar nas atribuições institucionais dos poderes competentes, estar-se-á fraudando as justas expectativas depositadas no texto constitucional, revelando-se tais normas em promessas constitucionais inconsequentes, já que não seriam possuidoras de nenhuma eficácia, sujeitas ao alvedrio indiferente de quem ‘‘pode, mas não faz’’.
Fere-se a própria razão de ser do Estado, pois o interesse público primário, a legitimar sua atuação e existência, é ignorado. O Judiciário que com isso é conivente, em verdade, fere o princípio da separação dos poderes. O não cumprimento, por parte de um Poder, de sua função, representa a desobediência a uma regular prática constitucional e institucional, logo, constata-se insatisfatório desempenho que, por consequência, gera uma desequilibro e, portanto, enseja um controle, sob pena de se prejudicar a própria saúde estatal.
Sabe-se que o sistema de freios e contrapesos, ínsito à dinâmica de poder, é responsável por frear desequilíbrios e o fortalecimento exacerbado de um poder em detrimento dos demais. No momento em que os comandos constitucionais não são respeitados, a exemplo do Executivo que não efetiva os direitos contidos e ordenados pela Constituição, deverá o Poder Judiciário, objetivando velá-los e garantir a própria incolumidade representativa da Constituição, para não gerar seu descrédito, frear os abusos exteriorizados pela omissão. Impede-se, assim, que o ato de comissão por omissão do poder, claramente nocivo, reste incólume e venha a se tornar um nefasto hábito de prática institucional.
Assim, a questão a ser feita é: até que ponto o dogma constitucional da separação dos poderes pode servir de fundamento para brecar a efetivação de direitos, em especial os metaindividuais, assegurados pelo próprio texto constitucional?
A solução, a nosso ver simples, mas não simplificada, reside num exercício de raciocínio nada sofisticado. Se a própria constituição impõe os objetivos e finalidades jurídicas a todos os Poderes, e prevê a harmonia entre os mesmos, interpretando-se a Constituição numa acepção uniforme percebe-se que a ação institucional do Judiciário em efetivar os direitos nela contidos preserva tal harmonia, pois, no final das contas, o fim a que se destina a própria existência do Estado é realizado, qual seja, a satisfação dos direitos do homem, a não ser que se defenda uma visão organicista do Estado, inadmissível na contemporaneidade dos Estados democráticos de direito.
Do exposto, outra não pode ser a conclusão que não a de se reconhecer a ação civil pública como um dos mais efetivos instrumentos de tutela de direitos metaindividuais, e estando os direitos sociais inclusos nessa classificação, seu manejo enseja meio adequado para a sua tutela, e especialmente direitos que tenham concretude negada pelo poder público.
Nesse sentido, reforçam as ponderações de Adriana Ramos, quando diz que,
[...] no âmbito das ações coletivas, da mesma forma que a conduta proativa do judiciário proporciona o acesso à justiça de forma ampla e efetiva em favor da coletividade lesada, a via inversa da autocontenção - em detrimento do ativismo judicial, importaria em negativa abrangente da adequada prestação jurisdicional: milhares de vítimas ficariam à margem dessa prestação. Como pensar em tutela adequada dissociada da máxima interpretação constitucional ou associada apenas ao princípio da discricionariedade absoluta do administrador, que, mesmo se omitindo em realizar políticas públicas, não possa ser admoestado em respeito à separação dos poderes? A postura ativista no âmbito das ações coletivas, portanto, permite muito mais que o amplo acesso à Justiça. Possibilita uma prestação jurisdicional efetiva, na medida em que, buscando a máxima interpretação das normas constitucionais, atende adequadamente aos anseios da sociedade contemporânea: globalizada, complexa e dinâmica.[6]
Ainda, não se pode olvidar que há princípios constitucionais que norteiam a atuação estatal e conformam, dessarte, o atuar entre os Poderes da república. Destacam-se o princípio da supremacia do interesse público, do acesso à justiça formal e substancial, da proporcionalidade, da eficiência administrativa, da isonomia, da promoção da justiça social, entre outros, facilmente extraídos dos primeiros artigos da Constituição. É plenamente possível, portanto, o manejo da ação civil pública enquanto instrumento de materialização do ativismo judicial, na espécie judicialização de políticas públicas.
Estando o poder público no pólo passivo, o uso da ação civil pública, além de racionalizar a prestação jurisdicional, confere acesso à justiça e aniquila as vantagens dos litigantes habituais e mais fortes[7].
2. O papel do Ministério Público na judicialização de políticas públicas
Nos termos da lei processual civil, não se pode pleitear direito alheio em nome próprio, salvo quando autorizado por lei, por disposição expressa do artigo 18, do Novo Código de Processo Civil. Tal dispositivo é perfeitamente adequado a uma sistemática processual individualista, não o sendo, entretanto, para a tutela de direitos transindividuais, o que demandou alternativas no campo da legitimação para que a legislação se adequasse à nova realidade da universalização e multiplicação de direitos, típico das sociedades de massa, a fim de garantir-lhes efetividade.
A solução para esse entrave se deu com o instituto da legitimação extraordinária, também chamado de substituição processual, útil e necessário para a defesa dos direitos coletivos lato sensu. Tal espécie de legitimação foi a solução dada pela lei da ação civil pública, ao conferir legitimidade ao Ministério Público e às pessoas jurídicas de direito público, bem como às associações civis para ajuizarem ações civis públicas na defesa de direitos e interesses difusos e coletivos relativos a matérias determinadas, vale dizer, meio ambiente, consumidor, patrimônio histórico, turístico, artístico, estético e paisagístico, entre outras.
Por outro lado, o Código de Defesa do Consumidor ampliou a legitimação dessas entidades para a tutela jurisdicional de quaisquer outros interesses difusos e coletivos. Com o advento da lei 11.448, de 2007, ao rol de legitimados para propositura da ação civil pública foi acrescentado a Defensoria Pública.
Entretanto, apesar do considerável número de legitimados, o grande número de ações civis públicas se dá através da atuação institucional do Ministério Público, inquestionavelmente.
Há alguns fatores, dentre os quais merecem destaque dois, enumerados por Frederico Dantas, responsáveis pelo considerável espaço ocupado pelo Ministério Público na atuação em defesa dos direitos e interesses transindividuais, com o particular uso da estudada ação.
O primeiro decorre da circunstância de que o Ministério Público dispõe de exclusividade para a instauração do inquérito civil, podendo notificar pessoas e proceder à oitiva de depoimentos, requisitar documentos e determinar a realização de perícias, o que facilita sobremaneira o penoso trabalho de instruir o processo. O segundo fator está ligado à formação cultural da sociedade civil brasileira que, ao contrário do que ocorre nos EUA, país cuja experiência com as chamadas "class actions" inspirou o modelo brasileiro das ações coletivas", não tem a mesma tradição na defesa coletiva de direitos.[8]
É de se destacar que a partir do surgimento da nova ordem constitucional, atribuindo-lhe a condição de função essencial à justiça e selando seus membros com as mesmas garantias dadas aos membros do Judiciário, o órgão ministerial tem assumido um papel essencial à eficácia de direitos e interesses metaindividuais.
Nesse diapasão, Rogério Arantes afirma que o Ministério Público
[...] tem sido o agente mais importante da defesa de direitos coletivos pela via judicial e, dado que os conflitos relativos a tais direitos têm geralmente conotação política, pode-se dizer que também tem impulsionado um processo mais amplo de judicialização de conflitos políticos e, no sentido inverso, de politização do sistema judicial.[9]
O órgão ministerial sempre foi notado por uma atuação limitada a duas principais funções. A de fiscal da lei, na jurisdição cível, e a de titular da ação penal, na jurisdição penal, no tocante aos crimes de ação pública.
No primeiro caso, deve acompanhar a devida aplicação da lei aos casos que envolvam direitos individuais indisponíveis, como se vê nas áreas afetas ao direito de família, por exemplo. Aqui age como órgão interveniente, zelando pelos interesses dos hipossuficientes. No segundo, o Ministério Público age como legítimo órgão acusatório, portando-se como tal ao longo do curso processual penal, desde o oferecimento da denúncia até o recurso que objetiva a condenação, fazendo valer a pretensão punitiva estatal frente aos agentes criminosos.
A partir de 1988, entretanto, ‘‘mais do que uma renovação de atribuições do MP, pode-se dizer que nestas duas últimas décadas constituiu-se no Brasil uma nova arena judicial de solução de conflitos que até então não tinham acesso ao sistema de justiça’’[10].
É certo que tal arena judicial se formou através da ampla ação institucional do órgão ministerial, que, com especial apoio das alterações e inovações legislativas ocorridas dos últimos 20 anos, teve o acúmulo de novas e essenciais atribuições.
Destaque-se o próprio encargo, advindo da Constituição, no artigo 127, caput, combinado ao 129, III, quando, ao referir-se ao Ministério Público, incumbiu-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, por meio da promoção do inquérito civil e da ação civil pública, cujo uso se prestará à tutela do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.
Tendo o órgão ministerial a possibilidade de acionar o Poder Judiciário para promover a defesa de direitos transindividuais, por disposição constitucional, o reconhecimento legal de certos direitos difusos e coletivos tem outra implicação: a possibilidade de judicialização de conflitos políticos[11], como já ressaltado. No momento em que há tutela coletiva de direitos sociais, vê-se a judicialização de questões políticas, impróprias ao próprio agir típico Judiciário.
Conclui-se, então, que o Ministério Público, a partir da Constituição de 1988, deixa de ser defensor do Estado para sê-lo da sociedade e seus interesses. Essa nova perspectiva, portanto, influiu diretamente na sua postura institucional, vinculando-o à tutela de direitos e interesses metaindividuais.
Dada a própria natureza de tais direitos, muitos a exigirem uma prestação estatal para lograrem efetividade, a judicialização de políticas públicas se revelou natural conseqüência de sua atuação em juízo, através da ação civil pública, combatendo a inércia dos órgãos de execução públicos e promovendo, em termos constitucionais, o acesso à justiça substancial, que se traduz na efetividade de direitos.
3. Análise da jurisprudência dos tribunais superiores brasileiros
Expostas algumas noções conceituais sobre o ativismo judicial e reconhecendo-se a ação civil pública como instrumento apto a promovê-lo, o próximo passo consiste na feitura de uma breve exposição de como o estudado tema vem sendo tratado pelos tribunais superiores brasileiros.
Envolvem-se discussões controvertidas sobre temas diretamente afetos, a exemplo de controle orçamentário, reserva do possível, efetividade constitucional e afronta ao princípio da separação dos poderes.
O Superior Tribunal de Justiça, no início do enfrentamento do tema acerca da possibilidade de interferência judicial no estabelecimento de prioridades orçamentárias, realizadas pelo Executivo, em dois julgados, proferiu decisões conflitantes.
Na primeira decisão[12], o STJ entendeu pela possibilidade de exame da oportunidade e conveniência na escolha das prioridades orçamentárias, com determinação para que sejam incluídas verbas com destinação específica no próximo orçamento. Na segunda[13], tal hipótese foi rechaçada, sob o argumento da atividade discricionária da administração pública na escolha de prioridades orçamentárias e de obras a serem construídas.
A teoria da reserva do possível, assinala Ana Paula de Barcellos, por muito funcionou como uma carta na manga para impedir a investigação judicial no incremento de políticas pública que viessem a conferir efetividade aos direitos sociais. Afirma que “na ausência de um estudo mais aprofundado, a reserva do possível funcionou muitas vezes como o mote mágico, porque assustador e desconhecido, que impedia qualquer avanço na sindicabilidade dos direitos sociais”.[14]
No âmbito jurisprudencial, em paradigmático julgamento[15], entretanto, tal escusa não é mais aceitável, exigindo-se comprovação da ausência de recursos por parte do poder público, situação conhecida por exaustão orçamentária.
O Superior Tribunal de Justiça, ao analisar caso que envolve a teoria da reserva do possível, em sede de ação civil pública, intentada pelo Ministério Público do estado do Paraná, já decidiu no sentido de acatá-la, a depender de análise do caso concreto[16].
Destaque-se, em matéria de efetivação de direitos sociais fundamentais, o entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça no sentido de permitir o bloqueio de recursos públicos em face do descumprimento de ordem judicial, determinando o fornecimento de medicamentos[17].
A efetividade de direitos sociais, em sede de ações coletivas de caráter subjetivo e de grande relevância social e política também chegam diariamente ao Superior Tribunal de Justiça, o qual, a partir das normas constitucionais, tem adotado posicionamentos altamente favoráveis aos reclamos sociais[18]. No mesmo sentido já decidiu o Supremo Tribunal Federal[19].
Importa dizer, pautado nas lições e pesquisas de Luiz Werneck Vianna e outros, que a prática do ativismo judicial, em especial na promoção da judicialização de direitos sociais, no Brasil, é um fenômeno positivo, não havendo de se falar em fenômeno que se desenvolve à margem da soberania popular. Ao contrário, o nítido crescimento do papel institucional do Judiciário representa uma forma de fortalecimento e aperfeiçoamento da democracia brasileira[20].
Tendo como parâmetro a Constituição Federal de 1988, incorporadora de direitos e princípios fundamentais que, assim, configuram um Estado Democrático de Direito, o Poder Judiciário pôde ampliar seu controle normativo na efetivação de direitos sociais, exercendo claro exercício interpretativo da Constituição, a conferir a legitimação das aspirações sociais[21].
Pautado nessas considerações, é essencial dar especial destaque ao voto abaixo registrado do Ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux, quando outrora membro do Superior Tribunal de Justiça, por condensar ensinamentos doutrinários e legais que exprimem legítimo compromisso com os princípios constitucionais e, portanto, com a efetivação de direitos.
DIREITO CONSTITUCIONAL À ABSOLUTA PRIORIDADE NA EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. NORMA CONSTITUCIONAL REPRODUZIDA NOS ARTS. 7º E 11 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. NORMAS DEFINIDORAS DE DIREITOS NÃO PROGRAMÁTICAS. EXIGIBILIDADE EM JUÍZO. INTERESSE TRANSINDIVIDUAL ATINENTE ÀS CRIANÇAS SITUADAS NESSA FAIXA ETÁRIA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CABIMENTO E PROCEDÊNCIA.
1. Ação civil pública de preceito cominatório de obrigação de fazer, ajuizada pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina tendo vista a violação do direito à saúde de mais de 6.000 (seis mil) crianças e adolescentes, sujeitas a tratamento médico-cirúrgico de forma irregular e deficiente em hospital infantil daquele Estado.
2. O direito constitucional à absoluta prioridade na efetivação do direito à saúde da criança e do adolescente é consagrado em norma constitucional reproduzida nos arts. 7º e 11 do Estatuto da Criança e do Adolescente: "Art. 7º A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência."
"Art. 11. É assegurado atendimento médico à criança e ao adolescente, através do Sistema Único de Saúde, garantido o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde."
4. Releva notar que uma Constituição Federal é fruto da vontade política nacional, erigida mediante consulta das expectativas e das possibilidades do que se vai consagrar, por isso que cogentes e eficazes suas promessas, sob pena de restarem vãs e frias enquanto letras mortas no papel. Ressoa inconcebível que direitos consagrados em normas menores como Circulares, Portarias, Medidas Provisórias, Leis Ordinárias tenham eficácia imediata e os direitos consagrados constitucionalmente, inspirados nos mais altos valores éticos e morais da nação sejam relegados a segundo plano. Prometendo o Estado o direito à saúde, cumpre adimpli-lo, porquanto a vontade política e constitucional, para utilizarmos a expressão de Konrad Hesse, foi no sentido da erradicação da miséria que assola o país. O direito à saúde da criança e do adolescente é consagrado em regra com normatividade mais do que suficiente, porquanto se define pelo dever, indicando o sujeito passivo, in casu, o Estado.
5. Consagrado por um lado o dever do Estado, revela-se, pelo outro ângulo, o direito subjetivo da criança. Consectariamente, em função do princípio da inafastabilidade da jurisdição consagrado constitucionalmente, a todo direito corresponde uma ação que o assegura, sendo certo que todas as crianças nas condições estipuladas pela lei encartam-se na esfera desse direito e podem exigi-lo em juízo. A homogeneidade e transindividualidade do direito em foco enseja a propositura da ação civil pública.
6. A determinação judicial desse dever pelo Estado, não encerra suposta ingerência do judiciário na esfera da administração. Deveras, não há discricionariedade do administrador frente aos direitos consagrados, quiçá constitucionalmente. Nesse campo a atividade é vinculada sem admissão de qualquer exegese que vise afastar a garantia pétrea.
7. Um país cujo preâmbulo constitucional promete a disseminação das desigualdades e a proteção à dignidade humana, alçadas ao mesmo patamar da defesa da Federação e da República, não pode relegar o direito à saúde das crianças a um plano diverso daquele que o coloca, como uma das mais belas e justas garantias constitucionais.
8. Afastada a tese descabida da discricionariedade, a única dúvida que se poderia suscitar resvalaria na natureza da norma ora sob enfoque, se programática ou definidora de direitos. Muito embora a matéria seja, somente nesse particular, constitucional, porém sem importância revela-se essa categorização, tendo em vista a explicitude do ECA, inequívoca se revela a normatividade suficiente à promessa constitucional, a ensejar a acionabilidade do direito consagrado no preceito educacional.
9. As meras diretrizes traçadas pelas políticas públicas não são ainda direitos senão promessas de lege ferenda, encartando-se na esfera insindicável pelo Poder Judiciário, qual a da oportunidade de sua implementação.
10. Diversa é a hipótese segundo a qual a Constituição Federal consagra um direito e a norma infraconstitucional o explicita, impondo-se ao judiciário torná-lo realidade, ainda que para isso,
resulte obrigação de fazer, com repercussão na esfera orçamentária.
11. Ressoa evidente que toda imposição jurisdicional à Fazenda Pública implica em dispêndio e atuar, sem que isso infrinja a harmonia dos poderes, porquanto no regime democrático e no estado de direito o Estado soberano submete-se à própria justiça que instituiu. Afastada, assim, a ingerência entre os poderes, o judiciário, alegado o malferimento da lei, nada mais fez do que cumpri-la ao determinar a realização prática da promessa constitucional.
12. O direito do menor à absoluta prioridade na garantia de sua saúde, insta o Estado a desincumbir-se do mesmo através da sua rede própria. Deveras, colocar um menor na fila de espera e atender a outros, é o mesmo que tentar legalizar a mais violenta afronta ao princípio da isonomia, pilar não só da sociedade democrática anunciada pela Carta Magna, mercê de ferir de morte a cláusula de defesa da dignidade humana.
13. Recurso especial provido para, reconhecida a legitimidade do Ministério Público, prosseguir-se no processo até o julgamento do mérito. (REsp n. 577.836/SC, rel. Min. Luiz Fux, PRIMEIRA TURMA, j. 3m 21.10.2004, publicado no DJ de 28.02.2005). (grifos nossos)
Conclusão
O fenômeno do ativismo judicial abre margens para uma prestação jurisdicional pautada numa interpretação e aplicação das disposições da ordem jurídica que, em última análise, possibilitam a transformação da sociedade. De forma mais intensa isso se observa em sede de uma ação civil pública, a possibilitar a tutela de direitos coletivos lato sensu, ou seja, direitos de uma gama de indivíduos, potencializando a judicialização de políticas públicas.
Sendo evidenciada a transindividualidade de direitos, a ensejar a propositura de uma ação civil pública, tem-se uma forma legítima e adequada para a promoção do ativismo judicial e conferir o acesso à justiça, conceito este que propicia o tratamento do homem como verdadeiro sujeito de direitos, o que reclama, portanto, um compromisso institucional para a defesa dos mesmos.
Destaque-se, nesse diapasão, a importância do papel protagonizado pelo Ministério Público após o advento da Constituição Federal de 1988, conferindo-o o dever de defender os valores mais sensíveis ao Estado brasileiro. Natural desdobramento, pois, será, através de sua atuação institucional, a promoção do ativismo judicial através de ações civis públicas por ele intentadas, já que ao ter a obrigação de oferecer guarida a direitos e interesses transindividuais, poderá provocar a atividade jurisdicional para que implemente direitos sociais e vivifique a Constituição.
Referências
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[1] MORAES, Voltaire de Lima. Ação civil pública - alcance e limites da atividade jurisdicional. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007. p. 19.
[2] HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991. p. 15.
[3] BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 8 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 76.
[4] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 445.
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[6] RAMOS, Adriana Monteiro. Reflexões sobre a judicialização e o ativismo judicial nas ações coletivas. Disponível em: <http://www.faimi.edu.br/revistajuridica/downloads/numero10/judicializacaoacoescoletivas.pdf>. Acesso em: 30 mar. 2016. p.10.
[7] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
[8] DANTAS, Frederico Wildson da Silva. O princípio constitucional da inafastabilidade: estudo com enfoque no ativismo judicial. Disponível em <http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/26878>. p. 104. Acesso em 29 mar. 2016.
[9] ARANTES, Rogério Bastos. Direito e política: o ministério público e a defesa dos direitos coletivos. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v14n39/1723.pdf> Acesso em 30 mar. 2016. p.83.
[10] Idem; ibidem. p. 84.
[11] Idem; ibidem. p. 87.
[12] [...] 1. Na atualidade, o império da lei e o seu controle, a cargo do Judiciário, autoriza que se examinem, inclusive, as razões de conveniência e oportunidade do administrador.
2. Legitimidade do Ministério Público para exigir do Município a execução de política específica, a qual se tornou obrigatória por meio de resolução do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente.
3. Tutela específica para que seja incluída verba no próximo orçamento, a fim de atender a propostas políticas certas e determinadas. [...]. (STJ, REsp 493811 / SP, Segunda Turma, Rel. Min. ELIANA CALMON, DJ 15.03.04, g. n.)
[13] [...] Dessa forma, com fulcro no princípio da discricionariedade, a Municipalidade tem liberdade para, com a finalidade de assegurar o interesse público, escolher onde devem ser aplicadas as verbas orçamentárias e em quais obras deve investir. Não cabe, assim, ao Poder Judiciário interferir nas prioridades orçamentárias do Município e determinar a construção de obra especificada. [...]. (STJ, REsp 208893 / PR ; Segunda Turma, Rel. Min. Franciulli Netto, DJ 22.03.2004, g. n.)
[14] BARCELLOS, Ana Paula. Op. cit. p. 237, NOTA 5.
[15] [...] É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política. Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese – mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência. Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. [...]. (STF, ADPF n. 45, Rel. Min. Celso de Mello, julg. 29.04.04, g. n.) (grifos nossos)
[16] [...] Requer o Ministério Público do Estado do Paraná, autor da ação civil pública, seja determinado ao Município de Cambará/PR que destine um imóvel para a instalação de um abrigo para menores carentes, com recursos materiais e humanos essenciais, e elabore programas de proteção às crianças e aos adolescentes em regime de abrigo. (...) Ainda que assim não fosse, entendeu a Corte de origem que o Município recorrido "demonstrou não ter, no momento, condições para efetivar a obra pretendida, sem prejudicar as demais atividades do Município". No mesmo sentido, o r. Juízo de primeiro grau asseverou que a Prefeitura já destina parte considerável de sua verba orçamentária aos menores carentes, não tendo condições de ampliar essa ajuda, que, diga-se de passagem, é sua atribuição e está sendo cumprida [...]. (STJ, REsp 208893 / PR ; T 2 - Segunda Turma, Rel. Min. Franciulli Netto, DJ 22.03.2004, g. n.)
[17] [...] 1. A hipótese dos autos cuida da possibilidade de bloqueio de verbas públicas do Estado do Rio Grande do Sul, pelo não-cumprimento da obrigação de fornecer medicamentos a pessoa portadora de doença grave, como meio coercitivo para impor o cumprimento de medida antecipatória ou de sentença definitiva da obrigação de fazer ou de entregar coisa. (arts. 461 e 461-A do CPC).
2. A negativa de fornecimento de um medicamento de uso imprescindível, cuja ausência gera risco à vida ou grave risco à saúde, é ato que, per si, viola a Constituição Federal, pois a vida e a saúde são bens jurídicos constitucionalmente tutelados em primeiro plano.
3. A decisão que determina o fornecimento de medicamento não está sujeita ao mérito administrativo, ou seja, conveniência e oportunidade de execução de gastos públicos, mas de verdadeira observância da legalidade.
4. O bloqueio da conta bancária da Fazenda Pública possui características semelhantes ao seqüestro e encontra respaldo no art. 461, § 5º, do CPC, posto tratar-se não de norma taxativa, mas exemplificativa, autorizando o juiz de ofício ou a requerimento da parte a determinar as medidas assecuratórias para o cumprimento da tutela específica. [...]. (STJ, Resp nº 874.630/RS, Segunda Turma, Rel. Min. Humberto Martins, julg. 21.09.06, g. n.)
[18] ACP. CONTROLE JUDICIAL. POLÍTICAS PÚBLICAS. Trata-se, na origem, de ação civil pública (ACP) em que o MP pleiteia do Estado o fornecimento de equipamento e materiais faltantes para hospital universitário. A Turma entendeu que os direitos sociais não podem ficar condicionados à mera vontade do administrador, sendo imprescindível que o Judiciário atue como órgão controlador da atividade administrativa. Haveria uma distorção se se pensasse que o princípio da separação dos poderes, originalmente concebido para garantir os direitos fundamentais, pudesse ser utilizado como empecilho à realização dos direitos sociais, igualmente fundamentais. Uma correta interpretação daquele princípio, em matéria de políticas públicas, deve ser apenas no sentido de utilizá-lo quando a Administração atua dentro dos limites concedidos pela lei. Quando a Administração extrapola os limites de sua competência e age sem sentido ou foge da finalidade à qual estava vinculada, não se deve aplicar o referido princípio. Nesse caso, encontra-se o Poder Judiciário autorizado a reconhecer que o Executivo não cumpriu sua obrigação legal quando agrediu direitos difusos e coletivos, bem como a corrigir tal distorção restaurando a ordem jurídica violada. (STJ. RE n.º 1.041.197/MS. Relator Ministro Humberto Martins. J. 25/08/2009.) (grifos nossos)
[19] Embora inquestionável que resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, ainda que em bases excepcionais,determinar, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas, sempre que os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório, vierem a comprometer, com a sua omissão, a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. (STF. RE-AgR 410715/SP. Relator Min.Celso de Mello. J. 22/11/2005)
[20] VIANNA, Luiz Werneck. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999. p. 257-260.
[21] CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 105.
Ex-advogado. Analista Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal da Paraíba. Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FONSECA, Diego Melo da. Ação civil pública e ativismo judicial no direito brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 abr 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46528/acao-civil-publica-e-ativismo-judicial-no-direito-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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