Resumo: O embate político-religioso é um debate acerca da linguagem e do entendimento desta nos diversos sistemas sociais que formam a sociedade. Nesse sentido, cabe avaliar nesse trabalho a relação interpretativa dos argumentos religiosos utilizados como norteadores de decisões políticas e jurídicas; e os reflexos que se tem para a democracia, precipuamente em relação àqueles discordantes do ideário religioso utilizado como base e verdade absoluta. Desse modo, apresentar a relação dos sistemas sociais com a modernidade é o ponto de partida para entender a complexidade histórica que desencadeou a situação de desrespeito entre eles e como ocorre a corrupção da linguagem interna de cada um para imposição de entendimentos aos outros. Isto é, como não garantir o casamento homoafetivo, por exemplo, a possibilidade de existência, apesar de garantia constitucional, a garantia do tratamento igual àqueles que desejam obter tal instituto, com base em argumentos religiosos? Foi esse o embate enfrentado na ADPF 132-RJ juntamente à ADI 4.277-DF, julgada pelo STF em 2011, e que será a base para entender esse enfrentamento na democracia brasileira. Por fim, será avaliado como essa corrupção linguística pode ocorrer para fundamentar escárnios, deturpando proteções constitucionais, liberdades e direitos subjetivos. Nesse cerne, buscar-se-á entender como que a moral se torna argumento central nesse tipo de debate, impondo uma reflexão, no viés de Derrida, de como pode ser arrolado o direito, a política e a religião a fim de gerar respeito e cooperação.
Palavras- Chave: Sistemas Sociais, Luhmann, Casamento Homoafetivo, ADPF 132, Corrupção Sistêmica, Garantias Fundamentais.
1. A modernidade e a dissolução dos sistemas sociais.
O advento da modernidade foi caracterizado pela virada no estilo de vida e na organização social das sociedades europeias do século XVII, principalmente após a Revolução Industrial inglesa. É formada por instituições sociais que nos tempos tradicionais não se encontram registros, por redes de informações complexas que alteraram o mais íntimo da nossa existência, como afirma Giddens (1990). As sociedades tradicionais mantinham uma amálgama entre os sistemas sociais do direito, da política, da religião e da moral, ou seja, havia certa simplicidade na tomada de decisões ou na imposição de uma verdade absoluta a ser seguida por todos. Por vezes, o poder e a liderança eram relacionados a poderes místicos, advindo da natureza, dos próprios deuses ou de Deus.
A modernidade inicia um rompimento com essa forma de pensamento. As sociedades modernas diferem das pré-modernas por apresentarem uma racionalização e secularização dos pensamentos, por ser o momento de surgimento dos estados-nações e da separação dos sistemas sociais – onde Luhmann inicia a argumentação de sua teoria sistêmica. Estes vão ser definidos como autopoiéticos, autorreferentes, formados a partir de uma diferenciação com o ambiente externo. A ruptura com o pensamento medieval escolástico e a sobrepujança da autonomia da razão cria uma nova visão de mundo, norteada também por grandes alterações políticas, econômicas e sociais.
É possível determina-la como um período de grandes transformações de ocorrências constantes e de alcance global. Habermas, inclusive, é grande crítico de como se dá as relações e interpretações das informações transmitidas em tempo real nesse período (BORRADORI, 2003). Dessas modificações, Luhmann destaca a dissociação dos sistemas sociais e a produção binária e autorreferente de uma linguagem interna pertencente a cada um deles.
Os sistemas sociais ao serem dissociados demonstram a complexidade que engloba o período moderno. Ora, nas sociedades tradicionais todos os argumentos tinham como base a religião ou o místico, eram, portanto, inquestionáveis. As decisões políticas e os julgamentos também eram derivados desse uníssono de uma verdade absoluta e universal, caracterizando uma mescla tão forte que os sistemas sociais eram de difícil distinção, sendo tratados como uma única coisa. A modernidade e a autonomia da razão inicia um questionamento acerca da aceitação de novas verdades, nenhuma delas absoluta, mas passíveis de convivência, e, principalmente, a possibilidade de questionar as imposições quase dogmáticas dessas verdades nas sociedades tradicionais.
Essa multiplicidade de argumentos válidos deriva da linguagem inerente em cada sistema social. Luhmann (1983) busca definir que a produção de linguagem de cada um dos sistemas sociais é autorreferente com mecanismos de acoplamento heterorreferentes, ou seja, a linguagem é contra intuitiva, dispondo de sentido somente dentro das premissas propostas pelo autor e dentro de seu próprio contexto, tendo um sistema de acoplamento para encaixar seus mecanismos e fazer funcionar elementos de sistemas distintos e externos, respeitando seus limites e sem, com isso, confundi-los. Desse modo, a distinção argumentativa também distingue os próprios sistemas sociais, visto que não ser mais cabível a utilização da linguagem da religião na política, por exemplo, sob pena de retorno à fusão anterior. Não cabe mais uma verdade imposta por um dos sistemas, mas sim uma produção interna de cada sistema, que só serve para si, como produção de suas verdades – as quais, não necessariamente, serão verdades quando aplicadas aos outros sistemas sociais.
Desse modo, é perceptível que a produção interna de linguagem traz um debate binário – sagrado vs. profano, poder vs. não poder, justo vs. não justo – fazendo uma ressignificação, principalmente, do que é sagrado e do que pode ser considerado sagrado enquanto reflexos nos demais âmbitos sociais. Dworkin (2003) trata, por exemplo, da sacralidade da vida e da possibilidade da fundamentação para considerar ser direito fundamental ou não o aborto ou a eutanásia. Nesse interregno, o autor vai suscitar que o sagrado na modernidade pode ser definido por três vieses, direcionando o pensamento para a separação dos sistemas sociais, visto o conceito de sagrado não depender exclusivamente da visão religiosa. Assim, vai classificar o sagrado em relação à valorização subjetiva, instrumental ou pelo seu valor intrínseco – conceitos capazes de abranger a sacralidade da vida, por exemplo, de forma a tomar a decisão política mais democrática.
A sustentação do autor vai ao encontro de posições liberais que coadunam nos apontamentos de Luhmann. Quando Dworkin afirma (2003, pp. 139-40) que os debates sobre eutanásia e aborto transcendem às concepções espirituais subjetivas, ele vai tratar indiretamente da corrupção dos signos internos de um sistema social, que independe da matéria tratada. Essa corrupção é afirmada como sendo a utilização de uma linguagem produzida pela religião, por exemplo, dentro da política, sendo usada, inclusive, para a restrição de direitos minoritários. Assim sendo, a separação dos sistemas sociais causada pela modernidade, traz consigo uma alteridade inerente junto a uma abertura de diálogo e de acoplamentos argumentativos, visando à realização das liberdades subjetivas ao invés de uma imposição de dogmas.
2. Os direitos homoafetivos e as restrições causadas pela corrupção sistêmica
O posicionamento interno de cada sistema social pertence somente àquele sistema. Desse modo, a religião adota os dogmas ensinados por suas escrituras específicas tendo seu significado aceito somente dentro daquele âmbito, produzindo efeitos dentro daquele ambiente. Assim, vale dizer que se cristãos, por exemplo, apresentam dissonâncias em relação ao aborto e ao casamento homoafetivo, essas rejeições não podem ser impostas a toda a sociedade. Sendo assim, o que ocorre, então, quando elas são impostas?
A utilização dos conjuntos linguísticos produzidos por um sistema social distinto daquele que os produziu é o que Luhmann determinou de corrupção da linguagem sistêmica ou, simplesmente, corrupção sistêmica (1983). Esta vai ser o maior distúrbio da dissolução ocorrida com a modernidade. Como aclarado anteriormente, as sociedades tradicionais mantinham uma amálgama entre política, religião e direito não havendo distinção dos argumentos gerados por cada uma dessas partes, não sabendo a limitação de cada uma delas. Isso significa que o ideário da sociedade mantém um costume de aplicação linear, ou seja, uma forma de empregar conteúdos de qualquer sistema social para qualquer situação que se apresente.
A modificação trazida pela secularização, ainda que seja a força motriz do período moderno e das dissoluções dos sistemas sociais, não é capaz de modificar a forma de raciocínio da sociedade, no sentido de não ser capaz de alterar a cadeia lógica de argumentos que uma pessoa usaria em um debate. Isso, por conseguinte, corrobora com a corrupção sistêmica. É nessa impossibilidade que as pessoas continuam utilizando de livros sagrados para cometer crimes de liberdade e de ódio, oriundos das diversas possibilidades de verdades provenientes da modernidade.
No caso específico dos homoafetivos, se tem que eles, durante séculos, foram tratados – e, infelizmente, continuam sendo em muitos lugares – como uma escória social. São pessoas que possuem uma opção sexual destoante dos padrões estabelecidos, através de posições religiosas, ainda nas sociedades tradicionais. Vale dizer, que com o questionamento dos dogmas religiosos, essas pessoas começaram a exercer suas liberdades individuais, tanto sexual como de pensamento. Esse movimento teve diversas restrições causadas por políticas, leis e decisões judiciais, que os contraria no exercício de seus próprios direitos, fundamentados com argumentos religiosos.
Esses argumentos que não consideram a totalidade da sociedade e são baseados em um sistema social que não produz verdade para essa mesma totalidade, não merecem conhecimento para ser base de nenhuma vinculação fora do âmbito que a produziu. A corrupção sistêmica dos argumentos religiosos para limitar os direitos homoafetivos é uma afronta a algo que a modernidade proporcionou: liberdade de escolher sua própria verdade.
Essa imposição de verdades oriundas de sistemas religiosos é uma imposição de comportamentos e padrões, embasada em um tipo de paradigma social que a aceitava. No entanto, houve uma mudança radical na forma de pensamento, e essa atitude revela um preconceito com o Outro, além de demonstrar um medo de que essas posições distintas passem a figurar cada vez mais na sociedade.
3. O Constitucionalismo como o principal mecanismo de acoplamento
A modernidade trouxe também o constitucionalismo. Um movimento político, jurídico e ideológico que suscitou na concepção das constituições nacionais, limitando os poderes absolutos daqueles governantes ordinários nas sociedades tradicionais, cujo poderio derivava de fontes transcendentais. Como já é perceptível, o constitucionalismo contribuiu para o ambiente de autopoieses dos sistemas sociais como sistemas autônomos e independentes.
As constituições surgidas nesse período também buscam garantir direitos fundamentais a cada um dos indivíduos pertencente àquela nação. Desse modo, boa parte desses documentos não são baseados em verdades absolutas ou qualquer tipo de crença. Diversos comportamentos são admitidos e garantidos por elas, a fim de ser um mecanismo de consolidação de direitos e liberdades. Não cabe a ninguém determinar que relações homoafetivas não possam figurar como direito e liberdade daqueles que optarem por mantê-las.
Nesse sentido, o constitucionalismo se mostra como um fiel mecanismo de acoplamento dos sistemas sociais. A constituição é um produto jurídico que traduz a linguagem política, limitando a intervenção de qualquer outro sistema que imponha qualquer tipo de restrição às escolhas individuais.
4. A ADPF 132 como correção de uma corrupção sistêmica
No constitucionalismo brasileiro existem mecanismos de controle de constitucionalidade que, em tese, podem ser de controle de corrupção sistêmica. Uma das principais ações que buscavam reverter preconceitos ou a utilização da linguagem religiosa pela política, aquém da possibilidade de acoplamento, foi a ADPF 132/RJ julgada juntamente da ADI 4.277/DF, ambas tratantes do reconhecimento da união homoafetiva como instituto jurídico, dando interpretação conforme à Constituição ao art. 1.723 do Código Civil . Ademais, era um pedido de tratamento igualitário, visto que casais héteros já possuem esse tratamento desde os períodos tradicionais.
Como garantia constitucional mais imponente, o art. 5º da Constituição de 1988 aduz os principais princípios que direcionam o tratamento que o Estado brasileiro deve dar.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; (...)
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; (...)
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; (...)
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei; (...)
XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;
O rol acima demonstra somente exemplos das garantias que a constituição traz. É importante dizer que do mesmo modo que é garantida a liberdade de crença, é garantida também que qualquer discriminação contra direitos e liberdades fundamentais devem ser punidas.
É uma ação que trata da autonomia individual sendo cerceada por argumentos discriminatórios de origem não no sistema social da política ou do direito. Assim, ela busca simplesmente que o ideário social não imponha uma verdade absoluta para todos, buscando (des)caracterizar o termo “família” para dar abrangência aos casais homoafetivos. A apropriação do termo supracitado é o que gerou os embates políticos-religiosos da ADPF.
De um lado existe a afirmação política de que não há limitação para o termo, podendo ser utilizado por quem queira para constituir união estável e garantir os direitos provenientes de tal título. Do outro, argumentos religiosos, baseados em uma liturgia, que busca restringir o conceito. Essa última é uma produção linguística interna do sistema religioso que estava sendo utilizada erroneamente por muitos que negavam um direito fundamental de uma minoria.
A ADPF se mostrou como um corretor de corrupção sistêmica justamente por retirar essa produção e entendimento religioso que vigorava como base de restrição de direito, é impossível controlar o afeto de uma pessoa, sendo assim, os direitos oriundos dele não devem ser restritos por nenhum tipo de força externa. Cabe acrescentar que a ação também revela uma contraposição de liberdades, onde Dworkin afirmar estar a tensão entre reconhecimento e reivindicação, tendo o respeito às posições como produto.
Derrida associa essa tensão à hospitalidade, cometendo-se à ideia de tolerância. Entretanto, a tolerância depende de um reconhecimento do outro ou do discurso do outro. Assim, a ADPF serviu para garantir esse reconhecimento, que apesar de prejudicado pela corrupção histórico-sistêmica, garantiu que houvesse a convivência das posições argumentativas distintas.
Conclusões
A ADPF 132 garantiu o reconhecimento da união estável homoafetiva. Foi um mecanismo de grande valia para o movimento de resolução da corrupção sistêmica, em pelo menos um dos quesitos que historicamente teve a imposição de linguagem religiosa enquanto sendo uma decisão política. Luhmann ao definir as relações entre os sistemas sociais reorientou toda a teoria sociológica e possibilitou esses tipos de questionamentos contra impositivos de grande prejudicialidade às liberdades individuais.
A modernidade e a possibilidade de questionamento das verdades absolutas, além das limitações trazidas pelo constitucionalismo, serviram para que a sociedade desenvolvesse uma espécie de diálogo interno em que convivem todos os tipos de ideias. A convivência, entretanto, não disciplina uma obrigatoriedade de aceitação, o que, inclusive, é a motivação de ações como a tratada aqui quando ocorre uma imposição de um dos lados.
A constituição e os mecanismos de controle de constitucionalidade atuam de forma muito positiva no controle de posições fundamentalistas e de corrupção impositiva, cabe, portanto, à sociedade discordante compor essas ações para garantir que não haja mais uma verdade absoluta, mas uma verdade individual que respeita as demais, nos termos de Dworkin.
Bibliografia
BORRADORI, Giovanna; Filosofia em Tempo de Terror – Diálogos com Habermas e Derrida; Jorge Zahar Editor; 2004;
Constituição da República Federativa do Brasil; encontrado no sítio eletrônico: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm;
Decisão da ADPF 132-RJ, julgada pelo STF; encontrada no sítio eletrônico: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628633;
DWORKIN, Ronald; O Domínio da Vida; Ed. Martins Fontes, 2003;
DWORKIN, Ronald; O Império do Dirieto; Ed. Martins Fontes, 2007;
GIDDENS, Anthony; As Consequências da Modernidade; Ed. UNESP, 1990;
LUHMANN, Niklas; Sociologia do Direito; Editora Tempo Brasileiro, 1983;
LUHMANN, Niklas; La Religión de la Sociedad; Ed. Trotta, 2007.
Estagiário em Escritório de Advocacia. Estudante do 7º semestre do curso regular de Direito da Universidade de Brasília - UnB.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Bryan Douglas Souza. O embate político-religioso na ADPF 132: quais as consequências de imposições religiosas na democracia? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 abr 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46533/o-embate-politico-religioso-na-adpf-132-quais-as-consequencias-de-imposicoes-religiosas-na-democracia. Acesso em: 23 dez 2024.
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