Resumo: A despeito de inexistir expressa previsão legal no ordenamento jurídico pátrio, o objetivo deste artigo é evidenciar a compatibilidade da técnica da modulação dos efeitos temporais com o controle difuso de constitucionalidade. Após a análise acurada das razões legais e extralegais que envolvem o tema, impede reconhecer que a hesitação ou mesmo relutância da jurisprudência em contemplar a aplicação da técnica da modulação dos efeitos ao controle difuso de constitucionalidade dá-se menos por necessidade do que por tradição.
Palavras-chave: controle de constitucionalidade – modulação dos efeitos – controle difuso.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho versa sobre a modulação dos efeitos no controle de constitucionalidade, o que significa dizer que nesta obra serão abordados os efeitos das decisões de inconstitucionalidade tanto no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade quanto no plano do controle difuso.
Embora relativamente novo (na literatura jurídica pátria, o tema somente ganhou fôlego após a promulgação da Lei n. 9.868, de 10 de novembro de 1999), a modulação dos efeitos encerra importância singular para o estudo e aplicação do direito, em razão da relevância teórica e prática que envolve o assunto.
A profundidade teórica nota-se por meio do inevitável confronto entre a tradicional tese da nulidade da lei inconstitucional, de raiz norte-americana (entre nós, defendida por Rui Barbosa), e a tese da anulabilidade da lei inconstitucional, concebida por Hans Kelsen.
O impacto prático verifica-se, principalmente, em razão da natureza própria da decisão que fixa a modulação dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade. A aplicação da técnica tende sempre a alcançar um número indeterminado de situações socialmente críticas, haja vista que os fundamentos arguidos para seu emprego são “razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social”, nos termos do art. 27 da Lei n. 9.868/99.
Em que pese a inexistência de expressa previsão legal (ao revés do que ocorre no controle concentrado), verificar-se-á se os princípios que ensejam ou mesmo reclamam a aplicação da modulação no controle concentrado não se encontram presentes também no controle difuso.
EFEITOS DAS DECISÕES DE INCONSTITUCIONALIDADE NO DIREITO BRASILEIRO
1. Considerações Iniciais
O sistema brasileiro de controle de constitucionalidade aproxima-se em muitos pontos do sistema português. Bem por isso, a exemplo do que ocorre no sistema lusitano, entre nós, no que concerne à eficácia subjetiva, a decisão de inconstitucionalidade, como regra, produz efeitos erga omnes em sede do controle concentrado de constitucionalidade, mas apenas efeitos inter partes, quando se trata do controle difuso de constitucionalidade.
Por outro lado, no que toca à eficácia temporal da decisão de inconstitucionalidade e, principalmente, à aplicação da técnica da modulação dos efeitos, cabe registrar que o direito brasileiro percorreu caminho singular.
Embora a mencionada técnica tenha sido consagrada inúmeros sistemas de controle de constitucionalidade, o referido tema sempre sofrera uma resistência invulgar por parte de nossos juristas.
A relutância do direito brasileiro em recepcionar a aludida técnica (em termos expressos) tem ligação com a própria concepção de eficácia contemplada por nossos operadores. Ainda que sob o prisma pragmático possam ser apontadas graves incongruências[1], tanto a doutrina quanto a jurisprudência pátria sempre foram correligionárias do postulado da nulidade da lei inconstitucional. A propósito do entendimento predominante na doutrina, Luís Roberto Barroso relata que:
A teoria da nulidade da norma inconstitucional foi amplamente acolhida no Direito brasileiro desde o início da República, quando Ruy Barbosa averbou que 'toda a medida legislativa, ou executiva, que desrespeitar precedentes constitucionais, é, de sua essência, nula'. Na mesma linha seguiram os autores de textos clássicos sobre o tema – como Francisco Campos, Alfredo Buzaid, Castro Nunes e Lúcio Bittencourt – em substancial reprodução da doutrina americana na matéria. Esse é o entendimento que prevalece ainda hoje, mas que já não é absoluto[2].
No mesmo sentido, a respeito do posicionamento dominante na jurisprudência, o ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, Paulo Brossard, justifica-o em passagem de indiscutível força retórica:
A Corte verifica e anuncia a nulidade como o joalheiro pode afirmar, depois de examiná-lo, que aquilo que se supunha ser um diamante não é diamante, mas um produto sintético. O joalheiro não fez a pasta sintética, apenas verificou que o era. Também a decisão judicial não muda a natureza da lei, como o joalheiro não muda a natureza do diamante. Ela nunca foi lei, ele nunca foi diamante. Aquilo que se supunha diamante e que o perito verificou ser um produto sintético não deixou de ser diamante a partir da verificação do joalheiro, mas “ab initio” não passava de produto sintético. Também a lei inconstitucional. O Judiciário não a fez inconstitucional, apenas verificou e declarou que o era. Por isso seu efeito é “ex tunc”[3].
Assim, haja vista que a teoria da nulidade da lei inconstitucional sempre fora evocada com vivo entusiasmo, é natural que o tema da modulação dos efeitos temporais da decisão de inconstitucionalidade, que se funda na tese contrastante da anulabilidade, tenha recebido proporcional repulsa. Pela mesma razão, aliás, impende assinalar que o sistema brasileiro atribuí, como regra, eficácia ex tunc à decisão declaratória de inconstitucionalidade.
Entretanto, a inclinação histórica do direito pátrio para a postulado da nulidade (e, consequentemente, para a eficácia retroativa da decisão de inconstitucionalidade) sofreu uma sensível atenuação no final da década de 90 do século passado. Com efeito, após a promulgação da Lei n. 9.868, de 10 de novembro de 1999, e de seu famigerado art. 27, ficou mesmo difícil, senão impossível, não conceder que o direito brasileiro fora impelido, por disposição expressa do referido artigo, a ter que conviver não só com a teoria da nulidade mas também com a teoria da anulabilidade da lei inconstitucional.
Em que pese a citada lei se referir especificamente ao controle concentrado de constitucionalidade, não se pode negar que a sua promulgação, ao menos, deu ensejo a uma nova discussão sobre o assunto em relação ao controle difuso. Aliás, isso, entre outros aspectos, é o que será visto nossos próximos tópicos.
2. Modulação no Controle Concentrado
A introdução da técnica da modulação dos efeitos temporais no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade (por meio do art. 27 da Lei n. 9.868/99) e, consequentemente, a superação do binômio nulidade/inconstitucionalidade, ao que tudo indica, foi menos produto de uma elucubração teórica do que uma exigência de ordem prática.
É que, amiúde, a mera declaração de inconstitucionalidade de uma lei (ainda que flagrantemente) contrária à Constituição Federal e, por consequência, a atribuição de efeitos ex tunc à decisão, não conduzia, necessariamente, a uma situação justa ou juridicamente aceitável.
Cappelletti exemplifica caso em que um servidor público tenha trabalhado, por diversos anos, com fundamento em uma lei muito tempo depois declarada inconstitucional e outro em que o Estado tenha recolhido determinado tributo, por longo período, com base em uma lei posteriormente declarada inconstitucional. Em relação a esses e outros casos semelhantes, questiona o mencionado autor: “Poderão ser destruídos, também, todos os efeitos que foram produzidos, sem uma válida base legal, por aqueles atos públicos ou privados que se fundaram na referida lei?”[4]
Evidentemente que nesses e em casos similares a simples declaração de nulidade com efeitos retroativos tenderia a produzir uma situação intolerável para o direito. A boa-fé do servidor que trabalhara por anos para o Estado não poderia ser “recompensada” com a sanção de devolver todos os valores recebidos durante a vigência da lei inconstitucional. Também não seria lícito ao estado locupletar-se a custo do labor do servidor. Do mesmo modo, em relação ao segundo exemplo, o certo é que o encargo de restituir os contribuintes de imposto por um longo período cobrado - ainda que com lastro em lei supervenientemente declarada inconstitucional – provavelmente comprometeria as reservas patrimoniais do Estado.
Assim sendo, tendo em vista que situações dessa ordem acabavam “por obrigar os Tribunais, muitas vezes, a se absterem de emitir um juízo de censura, declarando a constitucionalidade de leis manifestamente inconstitucionais”[5], o fato é que a técnica da modulação dos efeitos surgiu, sobretudo, como uma tentativa de adequação da decisão de inconstitucionalidade “às situações da vida”[6], mesmo porque “um resultado injusto, ou por qualquer outra razão duvidoso, é também em regra – embora não sempre – um resultado juridicamente errado”[7].
Nesse mesmo sentido, cabe transcrever a conclusão de Jorge Miranda:
A fixação dos efeitos da inconstitucionalidade destina-se a adequá-los às situações da vida, a ponderar o seu alcance e a mitigar uma excessiva rigidez que pudesse comportar; destina-se a evitar que, para fugir a consequências demasiado gravosas da declaração, o Tribunal Constitucional viesse a não decidir pela ocorrência de inconstitucionalidade; é uma válvula de segurança da própria finalidade e da efetividade do sistema de fiscalização[8].
Dessa forma, como é sabido, a citada técnica foi consagrada por meio do art. 27 da Lei n. 9.868, de 10 de novembro de 1999. Todavia, mesmo antes da promulgação da referida lei, que introduzira a modulação dos efeitos temporais no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade, entre nós, houve a tentativa de se incluir disposição análoga ao art. 282, n. 4, da Constituição Portuguesa, diretamente em nosso atual texto constitucional.
O projeto, da lavra do Senador Maurício Corrêa, continha a seguinte redação:
Art. 127. (...)
§ 2º Quando o Supremo Tribunal Federal declarar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, determinará se eles perderão eficácia desde a sua entrada em vigor, ou a partir da publicação da decisão declaratória[9].
Na ocasião, porém, o referido projeto fora rejeitado, em homenagem à tradicional teoria da nulidade.
A inovação operada com a promulgação da Lei n. 9.868/99, e de seu famigerado artigo 27, portanto, é um marco para o direito positivo brasileiro, uma vez que o referido artigo foi o primeiro a dispor expressamente sobre a modulação dos efeitos temporais, ainda que apenas para o âmbito do controle concentrado de normas.
Com efeito, o mencionado artigo assim preceitua:
Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
Da leitura do artigo acima transcrito, observa-se que o Pretório Excelso, “tendo em vistas razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social”, tem autorização expressa para restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou mesmo para decidir que o julgado tenha eficácia ex tunc ou pro futuro.
O manejo da técnica, entretanto, exige a aprovação qualificada de dois terços dos membros do Tribunal, o que enaltece o caráter excepcional da decisão que a emprega, ao mesmo tempo em que corrobora para que sua aplicação seja parcimoniosa.
Quanto às hipóteses que ensejam a aplicação da modulação dos efeitos temporais, convém destacar que são arguíveis dois arranjos de fundamentos: o primeiro, de caráter estritamente jurídico: “razões de segurança jurídica”; o segundo, de ordem notoriamente pragmática: “excepcional interesse social”.
Tendo em consideração o disposto no artigo supracitado, o Superior Tribunal Federal o evocou em importante decisão a respeito de norma da Constituição Estadual que atribuía à Defensoria Pública do Estado à defesa jurídica dos servidores públicos processados civil ou criminalmente em virtude do exercício do cargo. Trata-se da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.° 3.022-1 do Rio Grande do Sul (RTJ 193/117).
Na hipótese, o pleno do Tribunal entendeu pela inconstitucionalidade da alínea “a” do Anexo II da Lei Complementar n.° 10.194/94 do Estado do Rio Grande do Sul que previa competir ao defensor público estadual o encargo de assistir os servidores estaduais “nos casos de atos praticados no exercício de suas atribuições funcionais”. O fundamento da decisão era que o exercício de tal encargo desvirtuava a missão institucional da Defensoria Pública, qual seja, a de defesa dos necessitados, nos termos do art. 134 c/c o disposto no art. 5º LXXIV da Carta de Outubro.
Entretanto, a Corte Maior, posto que tenha se pronunciado pela inconstitucionalidade do mencionado dispositivo legal, houve por bem atribuir efeitos pro futuro à decisão, de modo que a invalidade da referida alínea somente fora constituída em 31 de dezembro do ano corrente à publicação do acórdão. Na ocasião, o entendimento arguido para a aplicação do art. 27 (da Lei n.° 9.868/99) foi de que a determinação de efeitos ex tunc causaria “prejuízos desproporcionais”.
3. Modulação no Controle Difuso
O tema da modulação dos efeitos no âmbito do controle difuso de constitucionalidade ainda hoje parece percorrer um caminho diáfano e insólito. Parte desta atmosfera de indecisão certamente pode ser atribuída ao próprio direito positivo. A falta de uma norma jurídica que enfrente diretamente a questão (seja para prevê-la ou para barrá-la no campo do controle difuso) acaba por contribuir para esse clima de irresolução.
Por outro lado, a própria magnitude da decisão que a aplica, quer por romper com o tradicional dogma da nulidade da lei inconstitucional (profundamente enraizado na literatura jurídica pátria), quer por dispor sobre situações jurídica ou socialmente críticas, definitivamente explica a cautela de nossos doutrinadores em se posicionarem incisivamente sobre o assunto.
A propósito da delicadeza da questão, não é sem razão que o próprio Gilmar Mendes se limitou a afirmar que:
Embora a Lei n.9.868/99 tenha autorizado o Supremo Tribunal Federal a declarar a inconstitucionalidade com efeitos limitados, é lícito indagar sobre a admissibilidade do uso dessa técnica de decisão no âmbito do controle difuso.
(...)
No que interessa para a discussão da questão em apreço, ressalte-se que o modelo difuso não se mostra incompatível com a doutrina da limitação dos efeitos[10].
Embora diga respeito ao ordenamento jurídico português, à vista da similitude entre o sistema lusitano e o brasileiro de controle de constitucionalidade, vale nota a reflexão abalizada de Jorge Miranda sobre a possibilidade de aplicação da modulação dos efeitos em sede do controle difuso:
Problema delicado consiste em saber se a restrição de efeitos da inconstitucionalidade ou da ilegalidade pode ser decretada também na fiscalização concreta e se, sendo nesta admissível, pode ser decidida por todos os tribunais ou apenas pelo Tribunal Constitucional.
Vale a ratio do art. 282.°, n.° 4, analogamente no campo dos arts. 207.° e 280.°? Hesitamos em responder.
Haverá casos em que se tornará mister não operar a repristinação. Mais difícil parece conceber (excepto talvez perante hipóteses de casos administrativos decididos, de cumprimento de obrigações ou de outras relações consolidadas) uma sentença em que se julgue inconstitucional a norma aplicável ao caso sub judice e, do mesmo passo, esta só seja desaplicada ex nunc.
Seja como for, na fiscalização concreta, em nenhum caso, poderá a restrição dos efeitos fundar-se em «interesse público de excepcional relevo»; terá de se fundar ou em segurança jurídica ou em razões de equidade. E terá sempre de se garantir recurso para o Tribunal Constitucional[11].
Entretanto, a hesitação de parte da doutrina em relação ao tema parece não encontrar eco nas atuais decisões da Corte Maior.
Com efeito, ao arrepio de qualquer disposição legal expressa, o Supremo Tribunal Federal tem aplicado e reconhecido a técnica da modulação dos efeitos temporais em um número ascendente de julgados no âmbito do controle difuso[12], dois dos quais merecem especial destaque nesta pesquisa.
O primeiro precedente diz respeito à composição da Câmara de Vereadores do Município de Mira-Estrela. O julgado em questão é o Recurso Extraordinário n.° 197.917-8 de São Paulo. O caso trata de uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Estado de São Paulo por meio da qual o Órgão Ministerial requereu que o citado município reduzisse seu número de vereadores, de 11 para 9, em atendimento ao mandamento constitucional. Incidenter tantur, o parquet requereu a declaração de inconstitucionalidade da lei orgânica municipal, sob o argumento de violação ao art. 29, IV, da Carta Magna, bem como a devolução dos subsídios recebidos indevidamente pelos vereadores.
No caso, em sede de apreciação do mencionado recurso extraordinário, o STF entendeu pela inconstitucionalidade da aludida lei orgânica, uma vez que o Município de Mira-Estrela, com uma população um pouco maior do que 2.600 (dois mil e seiscentos) habitantes, evidentemente não poderia eleger 11 vereadores, isto é, 2 além do mínimo legal. Porém, em que pese a flagrante inconstitucionalidade da citada lei orgânica, a Corte Maior houve por bem atribuir efeitos pro futuro à pronuncia de inconstitucionalidade, tendo em consideração que “a declaração de nulidade, com seus normais efeitos ex tunc, resultaria grave ameaça a todo o sistema legislativo vigente”[13]. Entendeu-se, assim, que a prevalência do interesse público e do princípio da segurança jurídica impelia a aplicação da pronuncia de inconstitucionalidade com efeitos limitados.
A segunda decisão versa sobre gratificação recebida por um funcionário público do estado do Amazonas em razão de sua aposentadoria. Cuida-se do Recurso Extraordinário n.° 434.222-7 do Estado do Amazonas. Na espécie, foi sustentada a inconstitucionalidade do inciso II do art. 139 da Lei n.° 1.762/86 do Estado do Amazonas, que prescrevia acréscimo de 20% aos proventos para os ocupantes que se aposentassem na última classe da carreira, uma vez que a Constituição de 1967, vigente à época de ingresso da referida lei, expressamente proibia que o funcionário inativo recebesse mais proventos do que aquele em atividade.
Embora o Excelso Pretório tenha considerado que a “lei inconstitucional nasce morta”, entendeu-se que, no caso concreto, os efeitos emanados por ela deveriam ser mantidos, com base, sobretudo, no princípio da boa-fé que deve orientar a administração pública.
A propósito do princípio da boa-fé aplicável ao caso, o ex-ministro Carlos Velloso assim se pronunciou:
(...) não custa repetir, o ato administrativo embasa-se no princípio da boa-fé, tanto do órgão administrativa que deferiu a vantagem, como, e, principalmente, do servidor público, o que recomenda a manutenção dos efeitos do ato[14].
A despeito das referidas decisões não cogitarem de uma possível aplicação analógica do art. 27 da Lei n.° 9.868/99, em ambos os casos supramencionados a Corte Suprema fundamentou o emprego da modulação dos efeitos em motivos que guardam relação imediata com aqueles agasalhados no famigerado artigo, quais sejam, “razões de segurança jurídico ou de excepcional interesse social”. No primeiro caso, o acórdão conclamou o princípio da segurança jurídica e a prevalência de interesse social para afastar o postulado da nulidade da lei inconstitucional; no segundo, foram evocados os princípios da boa-fé e o da segurança jurídica.
Assim, em consonância com os fundamentos sustentados para aplicação da aludida técnica no âmbito controle concentrado, vindica relevo destacar que a jurisprudência do STF avança, a passos firmes, no sentido de convalidar a aplicação da técnica da modulação dos efeitos temporais em sede do controle difuso de constitucionalidade, não obstante a falta de previsão legal para a aplicação da referida técnica neste último.
CONCLUSÃO
Após a análise apurada das razões de ordem prática e jurídica que orbitam a questão, parece difícil não reconhecer a aplicabilidade da técnica da modulação dos efeitos ao controle difuso de constitucionalidade.
Exatamente porque, exceto pela ausência de permissivo expresso na legislação infra-ordenada, que não pode ser vista jamais como obstáculo ingalgável, o controle difuso de constitucionalidade compartilha das mesmas razões que autorizam e que, amiúde, reclamam a aplicação da técnica da modulação no campo do controle concentrado.
Cobra relevo destacar que a técnica da limitação dos efeitos não tem relação nenhuma com qualquer modalidade de controle de constitucionalidade individualmente considerada. A modulação é, sobretudo, uma exigência de ordem pragmática e como tal pode ocorrer em qualquer espécie de controle. É uma “válvula de segurança” do próprio sistema que visa amoldar os efeitos ocasionalmente intoleráveis da declaração de inconstitucionalidade “às situações da vida”.
Quanto à ausência de expressa previsão legal para a aplicação da técnica ao controle difuso, convém ressaltar que de nenhum modo é possível sustentar que as “razões de segurança jurídica” ou de “excepcional interesse social” (mencionadas pelo art. 27 da Lei n. 9.868/99 como motivos aptos a ensejar a aplicação da modulação dos efeitos) fiquem vinculadas somente a esta ou aquela modalidade de controle de constitucionalidade.
Como prova desta assertiva, destaca-se que a decisão emblemática proferida no RE 197.917-8/SP, que apreciara a legitimidade da composição da Câmara de Vereadores do Mira-Estrela, estudada no tópico anterior, houve por bem aplicar a técnica da modulação dos efeitos no plano do controle difuso exatamente por reconhecer que, no caso concreto, havia razões de segurança jurídica e de excepcional interesse social a justificar a medida (na espécie, o Juízo entendeu que a mera “declaração de nulidade, com seus normais efeitos ex tunc, resultaria grave ameaça a todo sistema legislativo vigente”).
Dessa forma, se se reconhece que o princípio constitucional da segurança jurídica, bem como que “razões de excepcional interesse social” podem navegar igualmente por ambas as modalidades de controle de constitucionalidade, o certo é que a mera ausência de dispositivo legal autorizante não pode constituir impedimento à aplicação da técnica no modelo difuso. Isto é, se as razões aludidas no art. 27 da Lei n. 9.868/99 podem perfeitamente estarem presentes no controle difuso, sempre que elas ali se configurarem, impõe-se a aplicação analógica do mencionado dispositivo, afinal, “onde há a mesma razão, aí a lei deve ser a mesma” (ubi eadem legis ratio, ibi ipsa lex).
Além disso, ainda que não se cogite da aplicação analógica, não se pode jamais olvidar que ao órgão julgador, na hipótese de tensão entre princípios constitucionais, nunca fora dada a atribuição de sacrificar um valor supremo em prol de outro de igual ou equivalente hierarquia. Assim, seria no mínimo contraditório reconhecer ao judiciário legitimidade para aplicar o postulado da nulidade da lei inconstitucional, quando esta escolha resultar no sacrifício desmedido de um ou de muitos outros princípios constitucionais.
Da mesma forma como a tensão entre princípios constitucionais exige a aplicação do princípio da cedência recíproca para se evitar ofensa a razoabilidade e a proporcionalidade (que devem nortear toda decisão judicial), o conflito inevitável que exsurge da vigência de uma lei inconstitucional reclama a aplicação da técnica modulação dos efeitos, sempre que a situação de inconstitucionalidade implicar confronto entre o princípio da legalidade, de um lado, com os princípios da segurança jurídica, da boa-fé, da proteção da confiança e da teoria da aparência, do outro.
Portanto, tendo em consideração que o órgão julgador não pode ser impedido de proceder a ponderação entre princípios constitucionais e que a técnica da modulação dos efeitos, no fundo, não é mais do que um desdobramento de um conflito qualificado entre princípios constitucionais, o fato é a sua aplicação não pode ser negada no controle difuso, sob pena de se ferir de morte o exercício da própria função jurisdicional.
Assim sendo, verifica-se que a hesitação ou mesmo relutância por parte de nossos juristas faz-se menos por necessidade do que por tradição, porquanto inexistem motivos robustos que justifiquem a não admissão da técnica da modulação dos efeitos ao controle difuso de constitucionalidade.
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NOTAS:
[1] “A generalização de efeitos pela via da intervenção do Senado Federal, consagrado pela Constituição de 1934 e reproduzida nos textos subsequentes, não contribui para a consolidação da doutrina da nulidade. Ao revés, a outorga desse poder a um órgão político mais negava do que afirmava a teoria da nulidade. Na reforma constitucional de 1965 (Emenda n. 16) tentou-se superar essa orientação, mas, nesse passo, houve a rejeição da fórmula proposta pelo Executivo. A adoção do controle abstrato de normas (representação de inconstitucionalidade) obrigou o Supremo Tribunal Federal a enfrentar a questão, descobrindo, depois de longas discussões, que a eficácia da decisão de inconstitucionalidade proferida nessa ação não poderia depender da suspensão do Senado. Como era largamente aceita a idéia da nulidade da lei inconstitucional entre nós, tornou-se lugar comum afirmar a nulidade da lei declarada inconstitucional no processo da representação de inconstitucionalidade.
É notório, pois, que, não tendo sido capaz de fundamentar um mecanismo de expulsão ou uma justificativa para a não-aplicação da lei nos primeiros tempos da República (1889-1934), e tendo em vista a instituição da suspensão da execução da lei declarada inconstitucional na Constituição de 1934, não restou à doutrina outra alternativa senão declamar, sem qualquer efeito prático, a teoria da nulidade, em completo divórcio com o estabelecido no sistema positivo. A rigor, somente com o advento da Emenda n. 16/65 é que se criou, no direito positivo, uma base normativa para a velha teoria da nulidade. E, ainda assim, somente em 1977, passados doze anos da promulgação da aludida Emenda, veio o Supremo reconhecer a qualidade de eficácia erga ommnes à decisão proferida na representação. Merece registro, portanto, que o casamento entre as concepções teóricas sobre a nulidade da lei inconstitucional somente veio a se realizar em fins da década de 70, quase um século após a afirmação inicial da teoria da nulidade entre nós”. MARTINS, Ives Gandra da Silva, MENDES, Gilmar Ferreira, Obra cit., pp. 482-483.
[2] BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 18.
[3] Voto proferido na ADIn 2, RTJ 169:780 Apud ZAVASKI, Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, pp. 48-49
[4] CAPPELLETTI, Mauro, Obra cit., p. 123.
[5] Exposição de Motivos n. 189, de 7 de abril de 1997, ao Projeto de Lei n° 2.960, de 1997
[6] MIRANDA, Jorge. Obra cit., p. 500.
[7] Exposição de Motivos n. 189, de 7 de abril de 1997, ao Projeto de Lei n° 2.960, de 1997
[8] MIRANDA, Jorge. Obra cit., pp. 500-501.
[9] Disponível em <http://academico.direito-rio.fgv.br/ccmw/Argui%C3%A7%C3%A3o_de_Descumpri mento_de_Preceito_Fundamental._Coment%C3%A1rios_%C3%A0_Lei_n%C2%BA_9.882/99>, acessado em 15/09/2010.
[10] MARTINS, Ives Gandra da Silva, MENDES, Gilmar Ferreira, Obra cit., p. 511.
[11] MIRANDA, Jorge. Obra cit., p. 505.
[12] É o que se nota nos seguintes julgados RE-AgR 434.222-7/AM, RE 197.917-8/SP, MS 22.357-0/DF, Rcl 2.391-5/PR.
[13] RE 197.917-8/SP.
[14] RE-AgR 434.222-7/AM.
Advogado. Graduado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FERREIRA, Felipe Silva. A modulação dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade e sua compatibilidade com o controle difuso Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 abr 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46547/a-modulacao-dos-efeitos-da-decisao-de-inconstitucionalidade-e-sua-compatibilidade-com-o-controle-difuso. Acesso em: 23 dez 2024.
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