RESUMO: A norma jurídica, estabelecida em lei, determina a orientação a ser tomada em todos os atos jurídicos, podendo ser analisada sob três planos distintos, quais sejam: o da existência, da validade e da eficácia. A análise de tais planos está diretamente relacionada à produção de seus efeitos no plano social. A Constituição Federal de 1988, instrumento do Estado Democrático de Direito, estabelece direitos e garantias fundamentais. Para que direitos fundamentais previstos em normas programáticas sejam concretizados, a Lei Maior previu instrumentos para combater as omissões inconstitucionais. Ocorre que tais instrumentos por si só podem não ser suficientes para suprir essa omissão, vindo o Judiciário a agir de forma proativa para efetivar esses direitos fundamentais, surgindo o fenômeno chamado de ativismo judicial. O ativismo surge, então, como um mecanismo para dar maior eficácia social às normas programáticas e desde que exercido de forma responsável, observados seus limites e os pressupostos constitucionais consiste em possível meio para solução do problema da efetividade da norma programática.
Palavras-chave: Norma constitucional programática. Aplicabilidade e eficácia. Ativismo judicial.
ABSTRACT: The rule of law, established by law, determines the direction to be taken in all legal acts and may be examined under three different plans, namely: the existence, validity and effectiveness. The analysis of such plans is directly related to the production of its effects on the social level. The Federal Constitution of 1988 Democratic State of the instrument of law establishes fundamental rights and guarantees. For fundamental rights provided for in programmatic constitutional rule are implemented, the higher Law provided instruments to combat unconstitutional omissions. It turns out that these instruments alone may not be sufficient to supply the omission, from the judiciary to act proactively to effect these fundamental rights, the emerging phenomenon called judicial activism. Activism comes, then, as a mechanism to give greater effectiveness to the social program standards and since exercised responsibly, observed its limits and constitutional assumptions is to possible means to solve the problem of effectiveness of the programmatic norm.
Key words: Programmatic constitutional rule. Applicability end effectiveness. Judiciary activism.
INTRODUÇÃO
Busca-se no presente trabalho, de modo a não exaurir o tema, analisar a questão da aplicabilidade e da eficácia da norma constitucional, especialmente da norma constitucional programática. Discorre-se acerca dos planos de existência, de validade e de eficácia da norma jurídica, abordando a classificação de José Afonso da Silva quanto ao último plano, bem como os mecanismos para efetivação das normas constitucionais.
A justificativa para a apresentação desse trabalho decorre da necessidade de se ressaltar o quanto da importância do estudo e da pesquisa sobre efetividade da norma constitucional. Importante, também, analisar o ativismo judicial como possível instrumento para a obtenção da eficácia social das normas programáticas, diante da ineficiência do legislador em regulamentá-las, fenômeno que faz parte da realidade brasileira.
Tem por finalidade, esse estudo, esclarecer os pontos relevantes sobre o assunto, e, sobretudo, demonstrar a importância da atuação proativa do Judiciário. O ativismo, desde que exercido dentro dos limites estabelecidos e com observância dos pressupostos constitucionais, terá condições de realizar a justiça social. Não é admissível que o cidadão seja impedido de ver concretizados seus direitos sociais por negligente omissão do Legislativo.
O foco principal desse trabalho é demonstrar, sem pretensão de exaurir o assunto, a importância em compreender os instrumentos de eficácia da norma constitucional, seu alcance e a contribuição do ativismo judicial. A efetivação dos direitos fundamentais é a premissa basilar do Estado Democrático de Direito, sendo, portanto, a busca pela sua concretização o que deve determinar a atuação do Poder Público.
1 APLICABILIDADE E EFICÁCIA DA NORMA CONSTITUCIONAL
O vocábulo norma, derivado do latim e com origem do grego gnorimos,, que significa esquadria ou esquadro, sendo adotado na linguagem jurídica como regra, forma, paradigma ou tudo que se estabelece no ordenamento jurídico para servir de pauta na conduta. Assim, a norma jurídica (praaeceptum juris), estabelecida em lei, determina a orientação a ser tomada em todos os atos jurídicos, entendidos esses como atos de manifestação da vontade humana que causam efeitos jurídicos, impondo elementos para que tais atos possuam legitimidade.
A norma, portanto, segundo De Plácido e Silva (2008, p. 960), “bem se revela a esquadria legal que vem traçar as medidas necessárias para a regularidade jurídica do que se pretende fazer. Nela, pois, está contida a regra a ser obedecida, a forma a ser seguida ou o preceito a ser respeitado”. Para Pontes de Miranda (1972, p.168), a regra jurídica consiste em objeto de estudo da Ciência do Direito, perquirindo-se acerca da sua intervenção nos fatos da vida jurídicos.
Normas constitucionais, por sua vez, de acordo com José Afonso da Silva (2004, p. 44), são aquelas regras que incorporam uma constituição rígida, abrangendo, dessa forma, o conceito de normas constitucionais formais, assim consideradas aquelas introduzidas, no texto constitucional, pelo Poder Constituinte, por meio de um processo legislativo próprio e mais dificultoso do que o processo legislativo das outras normas jurídicas, uma vez que, nas palavras do referido autor, apenas as normas constitucionais formais constituem fundamento de validade do ordenamento jurídico. José Afonso ressalta, ainda, que as normas que tratam de matérias objeto do direito constitucional, chamadas de normas constitucionais materiais, desde que integrem o corpo da constituição rígida são consideradas normas constitucionais.
Caracterizam-se, ainda, as normas constitucionais por sua maior abertura, utilizando-se com mais frequência que outras normas dos conceitos jurídicos indeterminados e das cláusulas gerais, bem como por sua superioridade hierárquica em relação às demais normas jurídicas, estando no ápice do ordenamento e constituindo fundamento de validade das normas inferiores, resultando no princípio da compatibilidade vertical das normas do ordenamento jurídico, segundo o qual, as normas de grau inferior somente terão validade se forem compatíveis com as normas de grau superior, proporcionando a unidade e harmonização do sistema jurídico.
A norma jurídica comporta análise em três planos distintos, quais sejam: o da existência, da validade e da eficácia. O primeiro plano se relaciona a observância dos elementos necessários para a introdução da norma no ordenamento jurídico, fazendo-a existir juridicamente e sendo capaz de produzir efeitos no mundo jurídico e fático. Acerca do plano da existência, afirma Luís Roberto Barroso (1995, p. 65):
A existência de um ato jurídico – que pressupõe, naturalmente, a sua existência no mundo dos fatos – ocorre quando nele estão presentes os elementos constitutivos definidos pela lei como causa eficiente de sua incidência. [...] A ausência, deficiência ou insuficiência dos elementos que constituem pressuposto de incidência da norma impedem o ingresso do ato no mundo jurídico. Será, por via de consequência, um ato inexistente, do qual o direito só se ocupará para repeli-lo adequadamente. Seria inexistente, v.g., uma ‘lei’ que não houvesse resultado de aprovação da Casa Legislativa, por ausente a manifestação de vontade apta a fazê-la ingressar no mundo jurídico.
A norma que existe juridicamente e cuja observância é obrigatória diz-se vigente. Conforme José Afonso da Silva (2004, p. 52), “a vigência, aqui, é tomada no seu sentido técnico-formal de norma que foi regularmente promulgada e publicada, com a condição de entrar em vigor em data determinada”. O período entre a publicação da lei promulgada até a data prevista para entrada em vigor é chamado de vacatio legis, período esse em que a lei não pode ser exigida. Ressalte-se que a vigência não se confunde com a validade, nas palavras de Ingo Wolfang Sarlet (2014, p. 168):
[...] independentemente de sua validade a norma pode ter entrado em vigor e, nesse sentido, ter integrado a ordem jurídica (ter existido), especialmente se considerarmos que, mesmo no caso de uma superveniente declaração de inconstitucionalidade, nem sempre resulta uma pronúncia de nulidade [...]
Comprovada a existência e vigência da lei, verifica-se o segundo plano, qual seja, o da validade. Para uma norma ser válida ela deve estar integrada ao ordenamento jurídico de modo que tenham sido observados os requisitos competência, forma adequada e legitimidade. A validade pode ser estudada sob dois enfoques: a validade formal e a validade material. A primeira se relaciona ao processo de elaboração e formação em conformidade com as diretrizes instituídas no sistema jurídico, ou seja, a norma deve ser submetida ao Poder Legislativo e passar por todos os trâmites legais exigidos pela Constituição Federal. Já a segunda se relaciona a observância da harmonia entre seu conteúdo e o ordenamento jurídico hierarquicamente constituído. Conforme Luís Roberto Barroso (1995, p. 65):
[...] se estiverem presentes os elementos agente, forma e objeto, suficientes à incidência da lei, o ato será existente. Se, além disso, estiverem presentes os requisitos de competência, forma adequada e licitude-possibilidade, o ato, que já existe, será também válido. A ausência dos requisitos conduz à invalidade do ato, à qual o ordenamento jurídico, considerando a menor ou maior gravidade da violação, comina as sanções de nulidade e anulabilidade.
A eficácia das normas, por sua vez, relaciona-se a produção de efeitos. Pinto Ferreira (2002, p.21) entende que a eficácia é própria das normas jurídicas, tendo como consequência automática a possibilidade de geração imediata de efeitos jurídicos, variando o grau, através de um comando, que pode ser positivo ou uma omissão. Caracteriza-se, também, segundo referido autor, pela possibilidade da sua executoriedade.
Segundo José Afonso da Silva (2004, p. 66), “eficácia é a capacidade de atingir objetivos previamente fixados como metas”. Supracitado autor leciona que a eficácia pode ser compreendida em dois sentidos: a eficácia social e a eficácia jurídica. O primeiro instituto é observado quando a norma válida é aplicada efetivamente a uma determinada situação fática concreta. Já conforme a segunda acepção, existe a possibilidade da norma de vir a produzir efeitos na sociedade, entretanto, já produzindo efeitos no mundo do Direito.
A eficácia social, portanto, consiste na produção concreta de efeitos previstos pela norma no plano social. Trata-se de verdadeira efetivação da norma. Já eficácia jurídica diz respeito à aplicação jurídica da norma, que pode produzir efeitos no mundo jurídico sem ter eficácia social, é o caso, por exemplo, de uma norma que revoga outra anterior, mas que não é efetivada por condutas na ordem dos fatos sociais. Diz respeito à aptidão, em caráter potencial, da norma produzir efeitos e ser aplicada.
A eficácia e a aplicabilidade estão interligadas, uma vez que, conforme Ingo Sarlet (2014, p. 169), “[...] a eficácia jurídica consiste justamente na possibilidade de aplicação da norma aos casos concretos, com a consequente geração dos efeitos jurídicos que lhe são inerentes”. José Afonso da Silva (2004, p. 60) afirma que a aplicabilidade da norma depende da existência da legitimidade, da vigência e da eficácia:
Uma norma só é aplicável na medida em que é eficaz. Por conseguinte, eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais constituem fenômenos conexos, aspectos talvez do mesmo fenômeno, encarados por prismas diferentes: aquela como potencialidade, esta como realizabilidade, praticidade. Se a norma não dispõe de todos os requisitos para sua aplicação aos casos concretos, falta-lhe eficácia, não dispõe de aplicabilidade. Esta se revela, assim como possibilidade de aplicação. Para que haja essa possibilidade, a norma há que ser capaz de produzir efeitos jurídicos.
A doutrina clássica classifica as normas constitucionais em normas autoaplicáveis, aquelas que têm eficácia por si mesmas, não necessitando de complemento, e normas não autoaplicáveis, aquelas que dependem de complementação por outras normas para terem eficácia. Ruy Barbosa (1933, p.488) adota tal qualificação, afirmando, inclusive, que a maioria das normas constitucionais não são autoaplicáveis. Esse posicionamento sofre críticas quanto a sua terminologia, posto que, conforme Ingo Sarlet (2014; p. 175):
[...] a expressão ‘autoaplicável’ transmite a falsa impressão de que estas normas não podem sofrer qualquer tipo de regulamentação legislativa, quando, pelo contrário, não se controverte a respeito da possibilidade de regulamentação das normas diretamente aplicáveis, para que possam ter maior executoriedade ou com o objetivo de serem adaptadas às transformações e às circunstâncias vigentes na esfera social e econômica.
José Afonso da Silva, entretanto, não faz tal distinção, considerando todas as normas constitucionais como autoaplicáveis, uma vez que são revestidas de eficácia jurídica, ou seja, possuem capacidade para produção de efeitos no mundo jurídico seja em maior ou menor grau. O que há que se perquirir, conforme tal autor, são os diferentes graus de efeitos jurídicos das normas constitucionais, resultando na tríplice característica das normas constitucionais, classificando-as em: normas constitucionais de eficácia plena; contida; e limitada ou reduzida.
As normas constitucionais de eficácia plena são aquelas que podem produzir todos os seus efeitos, desde sua entrada em vigor, independentemente de complementação por norma infraconstitucional. Tais normas possuem aplicabilidade direta, imediata e integral e não podem ser restringidas pelo legislador. São exemplos de normas constitucionais de eficácia plena os artigos 2º e 5º, IX, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88), que tratam da independência dos poderes e da liberdade de expressão.
As normas constitucionais de eficácia contida são aquelas que podem produzir a plenitude de seus efeitos jurídicos a partir de sua vigência, mas podem ter seu alcance restringido pelo legislador, nos termos que a lei estabelecer. Possuem aplicabilidade direta, imediata, mas não integral, pois pode vir a ter seu alcance reduzido, limitando sua eficácia e aplicabilidade. É exemplo de norma constitucional o art.5º, XIII, segundo o qual, “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.
Já as normas constitucionais de eficácia limitada são aquelas que não produzem a plenitude de seus efeitos jurídicos a partir de sua entrada em vigor, necessitando de complementação de outra norma para sua executoriedade. Não produzem imediatamente todos os seus efeitos, mas alguns são produzidos desde logo seja promulgada e publicada, como a revogação das normas que se mostrem colidente e a proibição da produção de normas que vão de encontro àquelas, o que é chamado de efeito paralisante da função legislativa em sentido contrário. Possuem aplicabilidade indireta, em parte mediata e reduzida, posto que, conforme José Afonso da Silva (2004, p.83):
[...] somente incidem totalmente sobre esses interesses após uma normatividade ulterior que lhes desenvolva a eficácia, conquanto tenham uma incidência reduzida e surtam outros efeitos não-essenciais, ou, melhor não dirigidos aos valores-fins da norma, mas apenas a certos valores-meios e condicionantes [...]
As normas de eficácia limitada se dividem em dois grupos: I - normas de princípio programático ou norma programática; e II - normas de princípio institutivoou organizativo ou orgânico. As primeiras estabelecem programas constitucionais de ação social a serem seguidos pelo executor, limitando-se a traçar diretrizes a serem observadaspelo Poder Público. É exemplo de norma programática o art. 215 da CRFB/88, segundo o qual, “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais". As segundas fazem previsão de um órgão, entidade ou uma instituição para ser estruturado definitivamente pelo legislador ordinário. Consiste em exemplo de norma de princípio institutivo o §2º, do art. 90, da CRFB/88, que traduz: “a lei regulará a organização e o funcionamento do Conselho da República.
Pinto Ferreira aduz, ainda, que existem as normas constitucionais absolutas, aquelas que não podem sofrer emendas, sendo, portanto, intangíveis. Diante de tais características são dotadas de uma força paralisante aplicável a qualquer legislação que lhes oponha. Conforme supracitado autor (2002, p.36), embora dotadas de eficácia absoluta e imediata, diferencem-se das normas constitucionais de eficácia plena, pois essas são passíveis de se impor o poder da emendabilidade.
Outros doutrinadores apresentam suas classificações acerca da aplicabilidade e eficácia das normas constitucionais, como Maria Helena Diniz, Pontes de Miranda e Celso Antônio Bandeira de Mello. Entretanto, adotaremos no presente estudo a já tradicional e referida classificação de José Afonso da Silva, considerando que toda norma constitucional é autoaplicável e possui alguma eficácia imediata.
2 APLICABILIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS SOB O PRISMA DO DIREITO CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEO
O Direito Constitucional traduz o conjunto de normas jurídico-constitucionais, dotadas de supremacia hierárquica e que servirão de parâmetro de controle de constitucionalidade para todas as demais normas do ordenamento jurídico, além de assegurar sua eficácia por ela mesma, sendo, portanto, autogarantista. Nesse sentido, Ingo Sarlet(2014, p.94) apresenta como características do Direito Constitucional:
A primeira e principal característica do Direito Constitucional reside na sua supremacia hierárquica, no sentido de que as normas constitucionais prevalecem em relação a toda e qualquer força normativa (incluídas as leis elaboradas pelo Poder Legislativo) e todo e qualquer ato jurídico na esfera interna da ordem estatal. [...] Uma segunda característica reside no caráter autogarantista do direito constitucional, ou seja, no fato de que o direito constitucional, diversamente do que ocorre com os demais ramos do direito (infraconstitucional), não possui uma instância que lhe seja superior e externa (no sentido de órgão supraestatal) e que possa assegurar sua eficácia e efetividade, pois é a própria constituição, mediante o direito constitucional (suas regras e princípios), que deve assegurar-se, estando, portanto, limitada às suas próprias forças e garantias.
A percepção do Direito Constitucional sofreu diversas mudanças desde o chamado constitucionalismo primitivo (aproximadamente de 30.000 a.C. até 1.000 a.C.), onde os chefes das famílias ditavam e resguardavam as normas supremas para o convívio social, passando pelo constitucionalismo antigo (aproximadamente de 1.000 a.C. ao séc. V d.C.), pelo constitucionalismo medieval (séc. V a XVIII), pelo constitucionalismo moderno (séc. XVIII a séc.XX), chegando ao constitucionalismo contemporâneo (séc. XX e XXI), caracterizado pelas constituições garantistas e dirigentes, e, finalmente, ao neoconstitucionalismo, nos dias atuais.
Após a 2ª Guerra Mundial, diante da necessidade de se fazer valer os direitos fundamentais, deu-se uma mudança na forma de percepção e na prática do Direito Constitucional. A Constituição teve reafirmada sua força normativa, posicionando-se no centro do sistema jurídico e sendo superada a sua visão como mero instrumento político de retórica. Assim, entende-se que suas normas são dotadas de imperatividade e em caso de sua inobservância serão utilizados mecanismos próprios de coação.
A Constituição atua como instrumento limitativo do poder, tratando dos direitos da pessoa humana, da organização e do exercício do poder político, salvaguardando, dessa forma, preceitos basilares do Estado Democrático de Direito. Constituem fundamentos básicos das constituições modernas, incluindo a Constituição Federal de 1988, o princípio da separação dos poderes e os direitos fundamentais, sendo estes últimos considerados a “alma das Constituições”, conforme entende Ingo Sarlet (2014, p.86):
O poder estatal (e social) também encontra limites mediante o reconhecimento e garantias de direitos fundamentais, que operam tanto como esferas livres (ou parcialmente livres) de intervenção do Estado e de terceiros, quanto asseguram, numa perspectiva positiva, a exigência de ações (prestações). Aqui a noção, amplamente difundida, de que direitos fundamentais são, em certo sentido, “trunfos contra a maioria” (Ronald Dworkin e Jorge Reis Novaes), traduz a ideia de que mediante o exercício dos direitos fundamentais se está também a limitar o poder.
Além da primazia dos direitos fundamentais e da separação dos poderes, essa nova percepção do direito constitucional estabelece o reconhecimento da normatividade dos princípios que passam a ter força de normas jurídicas, ampliando a efetividade da Constituição. Nesse sentido, Eduardo Cambi (2007, p.5), afirma que “[...] os princípios jurídicos deixam de ter aplicação meramente secundária, como forma de colmatar lacunas, para ter relevância jurídica na conformação judicial dos direitos.”
O neoconstitucionalismo, portanto, caracteriza-se pelo reconhecimento pela normatividade da constituição, onde todas as disposições constitucionais, inclusive princípios, são normas jurídicas, pela superioridade hierárquica da Constituição sobre o restante da ordem jurídica, devendo as demais normas passarem pela filtragem constitucional, ou seja, observância à Constituição, que lhes condicionará a interpretação, pela prevalência dos direitos fundamentais e pela centralidade da Constituição que deve guiar os demais ramos do Direito.
Entretanto, para que tais paradigmas do neoconstitucionalismo sejam concretizados, faz-se necessário uma nova dogmática para a hermenêutica constitucional com base nos direitos fundamentais, objetivando a construção de um método de interpretação mais eficiente e capaz de concretizar valores, princípios e regras constitucionais. Nesse sentido, afirma Ana Paula de Barcellos (2005, p.127):
A particularidade do neoconstitucionalismo consiste em que, consolidadas essas três premissas na esfera teórica, cabe agora concretizá-las, elaborando técnicas, jurídicas que possam ser utilizadas no dia-a-dia da aplicação do direito. O neoconstitucionalismo vive essa passagem, do teórico ao concreto, de feérica, instável e em muitas ocasiões inacabada construção de instrumentos por meio dos quais se poderá transformar os ideias da normatividade, superioridade e centralidade da Constituição em técnica dogmaticamente consistente e utilizável na prática jurídica.
Dessa forma, faz-se necessário uma nova exegese constitucional, onde toda interpretação jurídica deva ser executada com base nos pressupostos constitucionais. A aplicação da Constituição, direta ou indiretamente, em qualquer forma de realização do direito, nas palavras de Luís Roberto Barroso (2008, p.510), é própria do neoconstitucionalismo:
Aplica-se diretamente, quando alguma pretensão se funda em dispositivo do próprio texto constitucional; indiretamente, quando alguma pretensão se funda em dispositivo do direito infralegal, por duas razões: na aplicação do direito infraconstitucional sempre haverá embutida uma operação de controle incidental de constitucionalidade; o sentido e alcance da norma infraconstitucional deverá ser atribuído para realizar os valores e fins constitucionais.
Conforme a prática jurídica tradicional, que utiliza o método subsuntivo, a norma, em seu relato abstrato e sob a forma de regra, oferece a solução para os problemas jurídicos a partir da descrição da conduta a ser seguida, aplicando-se por subsunção, ou seja, há uma norma aplicável a cada caso concreto, sendo necessário apenas o seu enquadramento para que o problema seja resolvido. Assim, segundo o modelo tradicional compete ao juiz apenas identificar a norma aplicável ao caso concreto para concluir o caso, uma vez que a solução já estava contida na norma. Diante da constante mutação e evolução da sociedade, esse modelo se tornou insuficiente para solucionar diversos problemas jurídicos, em especial as questões que envolvem a aplicação e interpretação Constitucional.
A nova interpretação constitucional pressupõe que, diante do caráter aberto e principiológico da Constituição, nem sempre a solução para o problema será encontrada através da subsunção, devendo o intérprete atuar de maneira subjetiva, analisando topicamente o caso e realizando escolhas, através da técnica da ponderação. Conforme referida técnica, deve-se verificar o conflito no caso concreto de modo que seja aplicado aquela norma mais adequada não eliminando com essa aplicação a outra norma conflitante, observando a proporcionalidade. Daniel Sarmento (2001, p.93) aduz acerca da técnica da ponderação:
O método de ponderação é efetivado à luz das circunstâncias concretas em caso. Deve-se, primeiramente, interpretar os princípios em jogo, para verificar se há realmente colisão entre eles. Verificada a colisão, devem ser impostas restrições recíprocas aos bens jurídicos protegidos por cada princípio, de modo que cada um só sofra as limitações indispensáveis à salvaguarda do outro. A compreensão a cada bem jurídico deve ser inversamente proporcional ao peso específico atribuído ao princípio que o tutela, e inversamente proporcional ao peso específico conferido ao princípio oposto. Assim, a ponderação deve observar o Princípio da Proporcionalidade em sua tríplice dimensão: necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito.
Assim, a visão clássica de Montesquieu de que o juiz é labouche de laloi, passa a ser superada, sendo o Poder Judiciário considerado um garantidor da normatividade da Constituição, cabendo, consequentemente, ao intérprete a atribuição de sentido a conceitos jurídicos indeterminados, a ponderação entre princípios aparentemente conflitantes e valorações próprias.
Objetivando auxiliar o intérprete acerca do entendimento e do significado das normas constitucionais, têm-se os princípios denominados pela doutrina como princípios específicos de interpretação constitucional, que consistem em técnicas de interpretação constitucional. O primeiro princípio consiste na unidade da Constituição, segundo o qual, deve ser realizada uma interpretação sistêmica, tomando-se as normas constitucionais em conjunto, como um sistema unitário de princípios e regras, evitando antinomias entre eles enão sendo possível evitar eventual conflito, deve ser empregada a técnica da ponderação, uma vez que não há hierarquia entre as normas constitucionais.
O segundo princípio trata-se do efeito integrador ou da eficácia integradora da Constituição que traduz a ideia de que deve haver uma integração entre os poderes para suprir lacunas que obstaculizariam direitos substanciais, beneficiando, assim, a integração política e social. O terceiro princípio refere-se à máxima efetividade ou eficiência, que, segundo Luiz Roberto Barroso (2008, p.40):
O intérprete constitucional deve ter compromisso com a efetividade da Constituição: entre interpretações alternativas e plausíveis, deverá prestigiar aquela que permita a atuação da vontade constitucional, evitando, no limite do possível, soluções que se refugiem no argumento da não auto aplicabilidade da norma ou na ocorrência de omissão do legislador.
Depreende-se, portanto, do princípio da efetividade que os direitos fundamentais devem ser interpretados de modo que lhes confira o maior alcance possível, ou seja, caso exista dúvida deverá prevalecer a tese que dê a maior efetividade possível ao direito fundamental.
Consistem, ainda, em princípios de interpretação constitucional o princípio da harmonização, segundo o qual, deve haver uma harmonização na interpretação dos bens e valores jurídicos colidentes para que possam coexistir, de modo que seja evitado o sacrifício total de um em relação ao outro; o princípio da força normativa da constituição, que pressupõe a eficácia máxima das normas constitucionais; e, por fim, princípio da interpretação conforme que consiste em conferir a uma norma que admite vários significados a interpretação que mais se adeque ao que preceitua a Constituição, visando a preservação do texto inquinado de acordo com os valores constitucionais.
Estabelece o art. 5º, §1º, da CRFB, que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicabilidade imediata”. Infere-se, portanto, que a aplicabilidade imediata é qualidade comum a todas as normas constitucionais, devendo-se perquirir apenas a eficácia da norma, o que, segundo Ingo Sarlet (2014, p. 188), “é uma decisão do intérprete e aplicador da norma constitucional”.
3 EFETIVIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS PROGRAMÁTICAS
Efetividade, conforme De Plácido e Silva (2008, p.511), “indica a qualidade ou o caráter de tudo o que se mostra efetivo ou que está em atividade”. Luís Roberto Barroso (1993, p. 79), por sua vez, afirma que se tem com a efetividade “[...] a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela representa a materialização dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social".
Trata-se, portanto, da eficácia em seu aspecto social, uma vez que, diz-se efetiva a norma que aplicada ao caso concreto produz os efeitos esperados, atingindo a finalidade prevista na norma.
As normas constitucionais programáticas, como dito anteriormente, são aquelas que estabelecem programas a serem executados pelo Poder Publico. Assim, o constituinte se limitou a traçar diretrizes a serem cumpridas pelo Estado, na busca pela efetivação dos direitos sociais, em vez de regular diretamente a execução e concretização desses direitos. Caracterizam-se por disciplinarem os interesses econômico-sociais, como o incentivo à cultura, à ciência e à tecnologia; por terem eficácia reduzida, uma vez que não produzem imediatamente todos os seus efeitos; e por necessitarem de complementação de outra norma para sua concretização.
A efetividade de tais normas é que constitui objeto de análise, posto ser a efetivação dos direitos sociais um dos corolários do Estado Democrático de Direito. Percebe-se, assim, a clara importância do estudo da eficácia das normas programáticas, tendo em vista que os direitos fundamentais previstos nas referidas normas só serão concretizados diante da eficácia social das mesmas. José Afonso da Silva (2004, p.139) destaca, ainda, a relevância das normas programáticas na ordem jurídica e no regime político do País, uma vez que “indicam os fins e objetivos do Estado, o que importa definir o sentido geral da ordem jurídica”.
As normas que tratam de direitos fundamentais individuais, chamados de direitos fundamentais de primeira dimensão, ligados à liberdade, são de aplicação direta e imediata. Nesse diapasão, Ruy Barbosa (1933, p.484), afirma que “a declaração de um direito individual pela Constituição do Estado importa na imediata aquisição do direito assegurado e na proibição geral, aos particulares e às autoridades públicas, de o violarem”.
As normas constitucionais que enunciam os direitos sociais, por sua vez, conhecidos como direitos fundamentais de segunda dimensão, cuja titularidade é uma coletividade, exigem para a concretização uma prestação positiva por parte do Estado, surgindo, então, um impasse na aplicação e efetivação desses direitos. Acerca da efetividade dos direitos sociais, Paulo Bonavides (2006, p. 564) aduz que:
[...] passaram primeiro por um ciclo de baixa normatividade ou tiveram eficácia duvidosa, em virtude de sua própria natureza de direitos que exigem do Estado determinadas prestações materiais nem sempre resgatáveis por exiguidade, carência ou limitação essencial de meios e recursos. De juridicidade questionada nesta fase, foram eles remetidos à chamada esfera programática, em virtude de não conterem para sua concretização aquelas garantias habitualmente ministradas pelos instrumentos processuais de proteção aos direitos da liberdade.
Assim, a busca por meios que assegurem a efetividade das normas programáticas constitui forma de consecução dos fins econômico-sociais do Estado, bem como realiza a justiça social. Nesse sentido, José Afonso da Silva (2004, p. 140) entende que a busca por instrumentos constitucionais com fundamentação teórica para solucionar o problema da eficácia social das normas constitucionais dotadas de caráter abstrato e que necessitam de regulamentação consiste em um problema para a doutrina.
Ainda acerca da efetividade das normas programáticas diante da reconhecida força normativa da Constituição e da aplicabilidade imediata de suas normas, leciona Eduardo Cambi (2007, p. 7):
Com efeito, o reconhecimento da força normativa da Constituição marca uma ruptura com o Direito Constitucional clássico, onde se visualizavam normas constitucionais programáticas que seriam simples declarações políticas, exortações morais ou programas futuros e, por isto, destituída de positividade ou de eficácia vinculativa. A positividade jurídico-constitucional das normas programáticas significa fundamentalmente: i) vinculação do legislador, de forma permanente, à sua realização (imposição constitucional); ii) vinculação positiva de todos os órgãos concretizadores (Executivo, Legislativo e Judiciário), os quais devem tomá-las como diretivas materiais permanentes; iii) servirem de limites materiais negativos dos poderes públicos, devendo ser considerados inconstitucionais os atos que as contrariam .
Assim, objetivando a efetividade das normas que estabelecem direito fundamentais, aí incluídas as normas programáticas, a Constituição Federal de 1988 instituiu instrumentos garantidores da eficácia e a aplicabilidade de tais normas, quais sejam: mandado de injunção; ação direta de inconstitucionalidade por omissão; e iniciativa popular, que serão tratados a seguir.
4 INSTRUMENTOS DE EFICÁCIA DA NORMA CONSTITUCIONAL
Como dito anteriormente, o §1º, do art.5º, da CRFB/88, determina a aplicabilidade imediata das normas constitucionais que instituem direitos fundamentais. Entretanto, a eficácia de algumas normas, especialmente das normas programáticas, necessitam de atuação positiva do Estado. Tal atuação pode não ocorrer por omissão do Estado, o que impede a efetivação de direitos fundamentais. Com o objetivo de impor ao Estado a positivação da conduta, mecanismos constitucionais foram previstos.
O primeiro mecanismo é o mandado de injunção, previsto no art.5º, LXXI, da CRFB/88, segundo o qual, “conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”. Consiste, assim, em inovação da Constituição Federal de 1988, sendo instrumento de defesa de legítimos direitos fundamentais, sejam individuais ou coletivos.
A função do mandado de injunção, nas palavras de José Afonso da Silva (2004, p.165), “seria fazer valer, no interesse do impetrante, um direito ou prerrogativa previsto em norma constitucional cujo exercício em geral é inviabilizado pela falta de regulamentação”. Ingo Sarlet e LênioStreck (2014, p.482) aduzem, ainda, acerca do mandado de injunção:
Trata-se, em suma, de direito-garantia e ação constitucional típica com a finalidade de, mediante provimento jurisdicional, assegurar a tutela de direitos e garantias constitucionais cuja efetiva fruição estava sendo inviabilizada pela falta de atuação, no plano normativo, do poder público.
Verifica-se, portanto, que o mando de injunção exige para sua aplicação a falta de norma regulamentadora prevista no texto constitucional e que tal omissão impeça o efetivo exercício de direitos e garantias constitucionais. Assim, infere-se que o mandado de injunção é remédio constitucional aplicável às normas de eficácia limitada, especialmente as normas programáticas que necessitam de provimento normativo do Poder Público para a efetivação de seus principais efeitos.
A legitimidade ativa do mandado de injunção pertence a qualquer pessoa titular de direitos constitucionais que seja prejudicada em virtude de uma omissão legislativa, ressaltando-se que, mesmo sem expressa previsão constitucional, os Tribunais Superiores pátrios têm admitido a propositura dessa ação na modalidade coletiva, em analogia ao mandado de segurança, tendo legitimidade para propositura da ação as mesmas entidades previstas para o mandado de segurança coletivo. No pólo passivo figurará sempre o órgão estatal, uma vez que a ele cabe o papel de editar a norma regulamentadora cuja inexistência impede a concretização de direitos fundamentais.
A competência para julgamento do mandado de injunção, em âmbito federal, é prevista nos arts.102, I, “q”; II, “a”; 105, I, “h”; e 121, § 4.º, V, da CRBF/88, e, em relação as normas constitucionais estaduais, as Constituições de cada estado disciplinaram a competência para processo e julgamento de tal ação.
O Supremo Tribunal Federal entende que o mandado de injunção é autoaplicável, adotando-se no que couber as normas do mandado de segurança, conforme estabelece o art.24, parágrafo único da Lei nº 8.038/90.
Quanto aos efeitos da decisão do mandado de injunção, a doutrina e a jurisprudência divergem, dividindo-se em duas correntes: posição concretista e posição não concretista. Segundo essa última, o mandado de injunção constitui ação de cunho meramente declaratório, limitando-se a reconhecer formalmente a inércia do Poder Público e a instá-lo a suprir a omissão, equivalendo, dessa forma, a ação de inconstitucionalidade por omissão. A primeira posição, por sua vez, entende que o mandado de injunção é ação de natureza híbrida, declaratória, mandamental e constitutiva, uma vez que lhe compete, além de declarar a omissão, estabelecer uma possível regulamentação para o caso concreto, até que o Legislativo supra a omissão. Divide-se, ainda, em concretista-geral e concretista-individual.
De acordo com a posição concretista-geral, a decisão proferida pelo Poder Judiciário terá efeitos erga omnes até que o Poder Publico edite a norma integrativa, legislando, assim, no caso concreto, o Judiciário. Já conforme a posição concretista-individual, a decisão proferida produziria efeitos somente em relação ao autor do mandado de injunção. Subdivide-se, ainda, tal corrente, conforme adota o STF, em: concretista-individual direta e concretista-individual intermediária. Lênio Streck e Ingo Sarlet (2014, p.485) distinguem tais posições:
De acordo com a primeira, o Poder Judiciário, ao julgar procedente a demanda, implementa a eficácia da norma constitucional em relação ao autor, assegurando-lhe, no caso concreto, o exercício do direito. Já de acordo com a posição concretista-individual intermediária, o Poder Judiciário, julgando procedente o mandado, fixa um prazo ao Congresso Nacional para que este elabore a norma regulamentadora, de tal sorte que, transcorrido o prazo e persistente a omissão, caberia ao Poder Judiciário fixar as condições necessárias ao exercício do direito por parte do autor.
Predominava no STF a posição não concretista, apesar das diversas críticas, uma vez que o mandado de injunção se tornava muitas vezes inócuo na solução do problema da efetivação da norma constitucional. Hodiernamente, em conformidade com os paradigmas do Estado Democrático de Direito, buscando uma aplicação imediata e efetiva dos direitos fundamentais, o STF vem adotando a posição concretista, como se pode observar no julgamento dos Mandados de Injunção 670, 708 e 712, em 2007, decidindo-se que, enquanto não for elaborada a regulamentação para o direito de greve do servidor público, valerão as regras previstas para o setor privado, previstas na Lei nº 7.783/89, aplicando-se referida lei não apenas aos impetrantes, mas a todos os servidores públicos prejudicados pela omissão legislativa, bem como no julgamento do MI 721/DF, em 2007, que atacava a omissão normativa prevista no art.40, §4º, da Constituição, acerca do exercício do direito à aposentadoria especial, em que foi deferido, por unanimidade, o direito à aposentadoria ao impetrante, conforme dispõe o art. 57 da Lei nº 8.213/91, que dispõe sobre planos de benefícios da Previdência Social.
Dessa forma, o Judiciário, objetivando concretizar os direitos fundamentais e em consonância com o §1º, do art.5º, da Constituição, que estabelece a aplicabilidade imediata das normas instituidoras de direitos fundamentais, vêm adotando uma postura proativa diante da inefetividade de tais direitos. Trata-se do fenômeno do ativismo judicial que será tratado adiante.
O segundo mecanismo é a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO), prevista no art.103, §2º, da Constituição, segundo o qual, uma vez declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, o Poder competente será cientificado para a adoção das providências necessárias e, caso se trate de órgão administrativo, deverá fazê-lo em trinta dias.
A legitimidade ativa para propositura da ADO é estabelecida em rol taxativo, previsto no art.103 da Constituição Federal de 1988. Já a legitimidade passiva pertence ao órgão incumbido de editar a norma regulamentadora. Acerca do objeto na ação direta de inconstitucionalidade por omissão, Luís Roberto Barroso (2012, p.236-237) ensina que:
Por objeto da ação direta de inconstitucionalidade por omissão deve-se entender, em primeiro lugar, o tipo de providência que o autor pode postular. Pela literalidade da previsão do art. 103, § 2º, são duas as possibilidades. Se o sujeito passivo na ação for um dos Poderes, o pedido estaria limitado a que lhe seja dada ciência da ocorrência da omissão inconstitucional, para a adoção das providências necessárias Embora o STF já tenha admitido a fixação de prazo, ressaltou que se tratava de mera indicação, sem estabelecer consequências para o caso de eventual descumprimento. Por outro lado, sendo a omissão imputável a um órgão administrativo, a decisão terá caráter de uma verdadeira ordem, cabendo a ele adotar as providências necessárias no prazo de trinta dias, sob pena de responsabilização. O interesse final visado pelo autor, ainda que insatisfatoriamente atendido pela disciplina do instituto, é sanar a lacuna do ordenamento, promovendo o cumprimento da vontade constitucional na matéria.
Com relação aos efeitos produzidos pela declaração de inconstitucionalidade por omissão, entende-se que ela apenas cientifica o Poder Público para edição da norma, assemelhando-se, assim, a posição não concretista dos efeitos do mandado de injunção. Parte da doutrina, incluindo José Afonso da Silva (2004; p. 166), critica a eficácia de tal instituto, uma vez que não há uma coerção ao Legislativo para que atue, existindo apenas a expectativa de que, diante de um dever moral, o legislador atenda ao julgado.
Por fim, o último mecanismo se trata da iniciativa popular, prevista no art.61, §2º, da Constituição, que estabelece a possibilidade de apresentação de projeto de lei, à Câmara dos Deputados, por iniciativa popular desde que subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.
A importância de tal instituto para combater as omissões inconstitucionais reside no fato de que diante de uma omissão legislativa que impeça a efetivação de um direito, a população, por meio da iniciativa popular, desde que não se trate de matéria privativa de outro legitimado, pode apresentar projeto de lei que supra essa omissão. Nesse sentido, afirma José Afonso da Silva (2004, p.166):
A omissão do Poder Legislativo não pode ser totalmente suprimida pela participação popular, mas a falta de iniciativa das leis o pode, e por certo que a iniciativa, subscrita por milhares de eleitores, traz um peso específico, que estimulará a atividade dos legisladores.
São esses, portanto, os instrumentos constitucionalmente previstos de combate às omissões inconstitucionais. A eficiência, entretanto, de tais instrumentos não é absoluta, necessitando muitas vezes que o Poder Judiciário, diante de uma inércia reitera e injustificada do Legislativo, busque efetivar os direitos fundamentais.
5 ATIVISMO JUDICIAL COMO INSTRUMENTO DE EFETIVIDADE DAS NORMAS PROGRAMÁTICAS
A redemocratização do País, culminando com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e as garantias à magistratura, o fortalecimento das instituições, a constitucionalização abrangente, abarcando o Direito Constitucional diversas matérias, tornando tais matérias pretensões jurídicas e o significativo aumento das demandas judiciais são causas apontadas pela doutrina do fenônomeno da “judicialização” de questões políticas e sociais que, conforme a acepção clássica, não competiriam ao Poder Judiciário decidir. A “judicialização” ocorre quando direitos fundamentais deixam de ser efetivados por falhas nas políticas públicas, vindo o Judiciário a atuar para concretizar tais direitos.
O ativismo judicial, por sua vez, consiste em uma atuação proativa do órgão julgador para suprir omissões inconstitucionais que inviabilizam a efetivação de direitos fundamentais. Vladimir Santos Vitovsky (2010, p.92) aduz que o ativismo “instala-se em situações de retração do poder legislativo, de um descolamento entre a classe política e a sociedade civil, trata-se de uma participação mais intensa do Judiciário na concretização de valores e fins constitucionais”.
As causas da expansão do ativismo judicial, conforme Dimitri Dimoulis (2012, p.62), derivam basicamente de três pressupostos:
I – abandono do constitucionalismo liberal, reducionista e socialmente descompromissado; II – manutenção do modelo de Justiça Constitucional e de sua função de tutela e realização dos ditames constitucionais por essa Justiça; III – déficit material na realização dos direitos nos Estados sociais periféricos.
Diante dessas conjecturas, passou a ser exigida uma atuação específica do Poder Judiciário de modo a tornar efetivo os ditames constitucionais.
No Brasil, tem-se percebido claramente uma postura mais ativa do Judiciário. Exemplos claros de tal fato são a regulamentação do direito de greve por parte do servidor público, através do julgamento dos Mandados de Injunção (MIs) 670, 708 e 712, em 2007, determinando a aplicação por analogia da Lei nº. 7783/89, que cuida do exercício do direito de greve no setor privado, não só aos impetrantes, mas a todos os servidores públicos; o combate ao nepotismo, por meio do julgamento procedente da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 12 e da edição da Súmula Vinculante nº 13, em 2008.
Diante dessa nova perspectiva, surgem questionamentos acerca da sua legitimidade, havendo correntes favoráveis e contrárias. Em favor do ativismo, argumenta-se que a proatividade do julgador enseja uma maior concretização dos direitos fundamentais, que não são efetivados por omissões legislativas e que o preenchimento de lacunas por parte do Judiciário é um fator positivo para a garantia das liberdades dos indivíduos, buscando, assim, o ideal de igualdade material. Conforme Eduardo Cambi (2012, p.93-92):
Em países de modernidade tardia, como o Brasil, não é satisfatório que o Judiciário deixe de efetivar os direitos fundamentais, ficando à espera da indefinida atuação do legislador. Deve o Judiciário exercer, ainda que excepcionalmente, uma função socioterapêutica, corrigindo desvios na consecução das finalidades a serem atingidas para a proteção dos direitos fundamentais, além de assumir a gestão da tensão entre a igualdade formal e a justiça social.
Dessa forma, para aqueles favoráveis ao ativismo judicial, essa nova postura dos julgadores seria uma possível solução para os conflitos causados pelas omissões do Poder Legislativo, posto que a efetividade dos direitos fundamentais seria alcançada com tal postura proativa.
Acerca da legitimidade dos juízes é cediço que ao Poder Judiciário, de acordo com a nova percepção do Direito Constitucional, compete o papel de garantidor das normas constitucionais, devendo zelar pelo seu cumprimento e efetivação. É incontroverso, portanto, que cabe ao Judiciário intervir diante da reiterada e injustificada omissão legislativa para tornar efetivo direito fundamental, ressaltando-se que tal intervenção encontra limites na reserva do possível e na reserva da consistência.
O ativismo judicial, portanto, consiste em instrumento legítimo no sistema brasileiro, uma vez que a realidade do País exige atuações efetivas e dinâmicas em busca da concretização dos direitos fundamentais, não podendo o cidadão ficar à mercê da boa vontade do legislador ineficiente e omisso. Assim entende Eduardo Cambi (2010, p. 245):
Confiar, unicamente, na concretização do interesse público, por parte dos administradores públicos, eleitos para isto, é fechar os olhos para a realidade brasileira, marcada por inúmeros políticos despreparados, oportunistas, corruptos ou que fazem uso inadequado do dinheiro público. O direito pós-moderno, ao contrário do direito moderno, não se contenta passividade jurisdicional, apostando na vontade transformadora guiada pela atividade intersocial de produção responsável de projetos de justiça social inclusiva (pró-atividade na tutela dos interesses sociais relevantes).
A CRFB/88 estabelece como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana, sendo regida pelo princípio da prevalência dos direitos humanos, assim, faz-se necessária e legítima posturas que, de acordo com tais paradigmas, tenham por objetivo a efetiva aplicação das normas constitucionais. Dessa forma, o ativismo judicial, desde que não ultrapasse seus limites e atue de acordo com os pressupostos e os princípios constitucionais, consiste em instrumento para a concretização da eficácia social das normas constitucionais programáticas e contribui para a manutenção do Estado Democrático de Direito.
CONCLUSÃO
A centralidade da Constituição no ordenamento jurídico e a primazia dos direitos fundamentais constituem elementos essenciais no Estado Democrático de Direito. A aplicabilidade e a efetividade de suas normas, consequentemente, são institutos inerentes à concretização dos referidos direitos. Trata-se, respectivamente, de possibilidade de aplicação e da produção concreta dos efeitos previstos pela norma constitucional no plano social.
Buscando a efetivação de suas normas, a Constituição Federal de 1988 previu a utilização de certos instrumentos garantistas. Em relação às normas programáticas que para sua efetiva aplicação e concretização necessitam de regulamentação por parte do legislador ordinário, tais instrumentos consistem no mandado de injunção, na ação direta de inconstitucionalidade por omissão e na iniciativa popular.
Infere-se, todavia, que referidos mecanismos por si só não são capazes de suprir a omissão inconstitucional, necessitando que, diante da reiterada e injustificada inércia do órgão competente, o Poder Judiciário venha a agir de forma proativa para que os direitos sociais previstos nas normas programáticas se concretizem.
Dessa forma, o ativismo judicial se mostra como um mecanismo capaz de auferir maior eficácia social às normas programáticas. Não devendo o Judiciário agir como um legislador positivo, mas, agindo de acordo com sua legitimidade e dentro dos seus limites, nas ações que visam garantir a eficácia constitucional, buscar a efetivação dos direitos fundamentais.
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Advogada, especialista em Direito e Processo Constitucionais pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR, aprovada no Concurso para o Cargo de Defensor Substituto do Estado do Rio Grande do Norte.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MASSILON, Thaina Cidrao. Efetividade das normas programáticas e ativismo judicial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 abr 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46558/efetividade-das-normas-programaticas-e-ativismo-judicial. Acesso em: 23 dez 2024.
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