RESUMO: Esse trabalho se volta ao estudo feito acerca da influência exercida pelo Pacto de San José da Costa Rica na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no tange à questão da prisão civil do depositário infiel. Isso porque, dispondo de forma diversa da Constituição Federal ao proibir a prisão civil do depositário infiel, o Pacto acabou por influenciar à Corte a se posicionar de acordo com as suas disposições, proibindo também essa modalidade de prisão. Assim, o objetivo deste trabalho se resume a promover uma investigação acerca de como se deu a guinada interpretativa do Supremo Tribunal Federal, quando este passou a entender a questão da prisão civil de acordo com as disposições contidas no Pacto de San José da Costa Rica. Para tanto, necessário se fez estudo acerca de importantes institutos do direito, tais como a prisão civil, o contrato de depósito, bem como análise acerca dos tratados internacionais e do status que os mesmos gozam no ordenamento jurídico brasileiro. A partir da pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, da utilização do procedimento histórico e do método indutivo, pode-se compreender que a partir do momento em que houve o reconhecimento majoritário da hierarquia supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos, concluiu-se por não existir mais base legal para a prisão civil do depositário infiel, posicionamento confirmado pelo cancelamento da Súmula 619 e edição da Súmula Vinculante nº25 do Supremo Tribunal Federal. Outrossim, atentou-se para a importância de constante adaptação e dinamização da Constituição Federal, a fim de adequá-la às novas realidades sociais. Este trabalho, em especial, trata da mudança feita através de procedimento informal, que é a mutação constitucional, expondo que quanto à questão da prisão civil, embora não tenha existido qualquer alteração no texto constitucional, não mais se admite a prisão do depositário infiel.
Palavras-chave: Prisão civil. Depositário infiel. Pacto de San José da Costa Rica.
1 INTRODUÇÃO
O presente texto trata da influência exercida pela Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, especificamente no que tange à prisão civil do depositário infiel. Isso porque, ao excepcionar apenas a hipótese de dívida alimentar à proibição da prisão civil, o Pacto findou por ir de encontro à previsão constitucional, que também admite em seu artigo 5º, inciso LXVII, a possibilidade de prisão civil do depositário infiel.
Grande relevância apresenta o tema neste estudo esmiuçado, uma vez que focado em valores supremos assegurados pela Nação, em especial a liberdade. De fato, se vive hoje em um Estado que não está mais voltado para si mesmo, mas para toda a comunidade internacional, assumindo os direitos humanos um papel de profunda relevância. Neste contexto, os tratados internacionais se erigem como importantes documentos que visam assegurar no plano internacional a efetividade desses direitos essenciais do homem.
Aqui é possível abordar a repercussão da Convenção Americana de Direitos Humanos na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Para tanto, vários outros temas de notória importância são analisados, a exemplo da prevalência dos direitos humanos na Constituição Federal, a hierarquia dos tratados internacionais no ordenamento jurídico brasileiro, a mutação constitucional.
Outrossim, o estudo realizado representa uma brilhante oportunidade de demonstrar como o Brasil tem avançado na caminhada rumo à implementação dos direitos humanos, assegurando justiça e dignidade ao seu povo.
Nesse diapasão pretende-se, de um modo geral, mostrar como o tratamento dado pelo Pacto de San José da Costa Rica ao instituto da prisão civil influenciou o Supremo Tribunal Federal, levando-o a uma mudança de posicionamento no que diz respeito à prisão do depositário infiel.
1 A PRISÃO CIVIL NA INFIDELIDADE DEPOSITÁRIA
Antes de mergulhar no núcleo de qualquer problemática, necessário se faz entender todas as partes que a compõem. Por este motivo, imprescindível se apresenta a feitura de breve estudo acerca dos institutos que serão importantes para a compreensão do tema a ser abordado neste texto.
Interessa aqui compreender como a prisão civil, que de diferentes formas tem se mostrado presente na história da humanidade, evoluiu e veio a ser introduzida no ordenamento jurídico brasileiro, aplicando-se à hipótese de infidelidade depositária.
1.1 Evolução histórica da prisão civil por dívida
A prisão civil por dívida é instituto arcaico, presente desde as antigas civilizações orientais, passeando por todos os períodos históricos até chegar à atualidade. Reflexo muitas vezes do contexto em que se inseria a sociedade de determinada época, apresenta em cada tempo diferentes características e particularidades.
Ensina-nos Álvaro Villaça Azevedo (2012, p. 3), em sua renomada obra “Prisão Civil por dívida”, que o Código de Hamurabi, vigente na Babilônia aproximadamente dois milênios antes de Cristo, determinava que o credor poderia tomar uma pessoa como garantia de um crédito de trigo ou de prata. O autor, referindo-se ao artigo 116 do Código acima citado, afirma que:
[...] se o aludido executado morresse na casa do credor, espancado ou maltratado por este, o proprietário desse executado obtinha condenação do credor; e, se o executado fosse filho de um homem livre, deveria ser morto o filho do credor; e se fosse escravo de homem livre, deveria o credor pagar um terço de mina de prata; e, fosse qual fosse seu crédito, perdê-lo-ia integralmente.
No Egito, admitiu-se a escravidão por dívida, situação em que o devedor servia ao credor até que realizasse o devido pagamento. Os hebreus, bem como os indianos, igualmente acolheram a prisão por dívidas. Na Índia, inclusive, o Código de Manu[1] determinava que se o inadimplente pertencesse a uma casta inferior, poderia ele ser sequestrado e acorrentado, bem como sua mulher, filhos e animais, para que trabalhassem até o total pagamento de sua dívida. (AZEVEDO, 2012, p. 5).
Ao analisar o Direito Grego, interessante mencionar a exposição contida no artigo “A história da prisão civil por dívida”:
Desde as leis de Dracon [...] até a posterior reestruturação destas por Sólon, a prisão era comumente transformada em escravidão [...], mediante prévio ajuste com o credor, caso não honrasse a obrigação assumida. Em caso de condenação judicial, se não fosse paga a dívida, tornava-se o devedor propriedade do credor, que poderia, inclusive, tirar-lhe a vida (GARCIA, 2001, p. 52).
No Direito Romano também é possível constatar a presença do instituto. Odete Novais Carneiro Queiroz (2004, p. 116), em seu livro “Prisão Civil e Direitos Humanos”, bem dispõe sobre o tema, mencionando que:
A Lei das XII Tábuas, pela sua Tábua III, permitia que a execução contra o inadimplente se desse sobre o seu próprio corpo, posto que poderia tornar-se escravo de seu credor. Se os credores fossem vários, o cidadão poderia ser esquartejado ou vendido a um terceiro.
Prosseguindo sua lição, a autora mostra que essa determinação foi derrubada pela Lex Poetelia Papiria, de 326 a.C, que não mais admitiu a execução pessoal do devedor, mas tão somente do seu patrimônio.
Época de regressão dos costumes sociais, a Idade Média voltou a admitir a cobrança sobre a pessoa do devedor, tornando-se este novamente servo do seu credor. Para Azevedo (2012, p. 19), “a invasão dos bárbaros criou [...] clima propício para que ressurgisse, no período medieval, a prisão por dívidas”.
A Modernidade, contudo, trouxe consigo uma nova mentalidade e a sede por mudanças, levando a sociedade a repensar a questão da prisão civil por dívidas.
Direcionando-se ao direito comparado, Azevedo (2012, p. 30), citando Luigi Mattirolo (1832), mostra que no Direito Italiano a prisão por dívida, denominada arresto personale per debiti, “era geralmente conhecida como a privação, imposta ao devedor, da liberdade pessoal, em razão do descumprimento das obrigações civis ou comerciais pelo mesmo assumidas”.
No Direito Francês, o Código Napoleônico, de 1804, previa a prisão civil do depositário, referindo-se ao depósito necessário. Tal previsão foi excluída em 1867, quando aboliu-se por completo a prisão por dívidas.
Já no Direito Inglês, é interessante citar a influência que a prisão civil exerceu sobre a literatura e as artes. Exemplo disto é o romance Bleakhouse, de Charles Dickens, bem como a peça O mercador de Veneza, de William Shakespeare, ambos frutos da insatisfação da sociedade com a existência do instituto. Foi o Debtor’s Act, de 1869, editado pela Rainha Vitória, que levou à abolição da prisão civil no país; “mesmo assim, esse estatuto manteve essa prisão em alguns casos, como no de insolvência fraudulenta” (AZEVEDO, 2012, p. 34).
Transportando-se ao Direito Português, é possível observar que “a prisão civil por dívida só incidiria após a execução dos bens do inadimplente” (QUEIROZ, 2004, p. 117). Era o que vinha determinado nas Ordenações Afonsinas (1446/1447), bem como nas posteriores Ordenações Manuelinas (1512/1514) e Ordenações Filipinas (1603), embora fossem restringindo-se com o decorrer do tempo as hipóteses de decretação dessa modalidade de prisão, a exemplo do Alvará de 11.1.1517, que a proibia em caso de pequenas dívidas referentes a alimentos, quando o alimentante estivesse impossibilitado de quitá-las.
No Brasil, foram herdados os institutos do direito português. Azevedo (2012, p. 45) nos ensina que:
[...] com a nossa independência, a Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império, pela Lei 20.10.1823, determinou que continuassem a viger, em nosso país, as ordenações, leis, regimentos, alvarás, decretos e resoluções portuguesas.
Dessa forma, com o advento da Independência do Brasil, eram as Ordenações Filipinas que vigoravam, admitindo a prisão civil por dívidas na situação há pouco analisada, qual seja, após executados os bens do devedor. Apenas por ocasião da elaboração do Código Civil de 1916, tais Ordenações saíram de cartaz em nosso país, sendo todas as suas determinações revogadas.
Quanto à previsão constitucional da prisão por dívidas, documenta-se que as Constituições brasileiras de 1824 e 1891 foram omissas quanto ao tema. A Constituição de 1934 veio a tratar do assunto, estabelecendo que não haveria prisão por dívidas, multas ou custas. O Constituinte de 1937 mais uma vez se omitiu, não oferecendo garantias contra a decretação dessa modalidade de prisão e deixando ao legislador ordinário a liberdade de dispor sobre a mesma. As Constituições de 1946 e 1967, bem como a Emenda Constitucional 01/69, proibiram a prisão civil, admitindo as exceções do devedor de alimentos e do depositário infiel, em redação similar à que se encontra prevista na atual Constituição de 1988 (AZEVEDO, 2012, p. 52-53).
1.2 Conceito e elementos da prisão civil
A prisão, em análise etimológica, significa o ato de prender alguém, capturar, segurar, derivando a palavra do latim clássico prehensione, e também da vulgar expressão latina pressione. Trata-se de uma privação à liberdade de ir e vir, ou seja, ao direito de locomoção do indivíduo.
Prisão civil é a que se manifesta no Direito Privado, sendo majestosamente definida por Azevedo (2012, p. 34) como “o ato de constrangimento pessoal, autorizado por lei, mediante segregação celular do devedor, para forçar o cumprimento de um determinado dever ou uma determinada obrigação”.
Não confunde-se a prisão civil com a prisão penal ou administrativa. Isto porque enquanto a prisão penal é decretada em virtude da violação à legislação criminal, portando caráter repressivo, de punição, e a administrativa é aquela decretada em prol da atividade administrativa, dos interesses do serviço público, a prisão civil é medida excepcional que visa forçar o devedor ao cumprimento de uma obrigação (AZEVEDO, 2012, p. 37).
A partir dos conceitos apresentados é possível extrair uma série de elementos caracterizadores da modalidade de prisão em estudo.
O primeiro deles é o caráter excepcional da sua decretação, notoriamente detectado a partir de leitura do art. 5º, LXVII, da Constituição Federal, que assim dispõe: “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”.
Podemos aferir do citado dispositivo constitucional que a prisão civil por dívidas é medida proibida em nosso país, existindo apenas duas exceções à proibição, quais sejam o inadimplemento de obrigação alimentícia e a infidelidade depositária.
Também constitui importante elemento da prisão civil o seu caráter coercitivo, não importando a sua decretação em pena, castigo, mas tão somente em um meio compulsório que visa forçar o cumprimento da obrigação por parte do devedor.
Nesse sentido, se manifesta Celso Ribeiro Bastos (1989, p. 306): “[...] ela não visa à aplicação de uma pena, mas tão-somente a sujeição do devedor a um meio extremamente violento de coerção, diante do qual, é de presumir, cedam as resistências do inadimplente”.
Marmitt (1989, p. 7), discorrendo sobre o tema, também faz sábias considerações:
A prisão existente na jurisdição civil é simples fator coercitivo, ou de técnica executiva, com fins de compelir o depositário infiel ou o devedor de alimentos, a cumprirem sua obrigação. Insere-se na Constituição Federal como exceção ao princípio da inexistência corporal por dívida. Sua finalidade é exclusivamente econômica, pois não busca punir, mas convencer o devedor relapso de sua obrigação de pagar.
Constatado o caráter compulsório da prisão civil, refletido na sua finalidade de cumprimento da obrigação pelo devedor, é possível concluir que uma vez paga a pensão alimentícia ou restituído o bem depositado, cessa imediatamente a prisão.
1.3 Do contrato de depósito
O contrato de depósito é modalidade antiga, que já se mostrava presente entre o povo grego, onde era considerado sagrado, bem como no direito romano clássico[2], apresentando neste muitas semelhanças com o contrato que hoje conhecemos.
Em nosso direito pátrio, encontra-se regulamentado nos artigos 627 a 652 do Código Civil de 2002. O artigo 627 nos oferece uma primeira noção do que vem a ser essa modalidade contratual: “Pelo contrato de depósito recebe o depositário um objeto móvel, para guardar, até que o depositante o reclame”.
Com maestria e simplicidade, Gonçalves (2009, p. 361) se dispõe a conceituar o instituto, afirmando que: “Depósito é o contrato em que uma das partes, nomeada de depositário, recebe da outra, denominada depositante, uma coisa móvel, para guardá-la, com a obrigação de restitui-la na ocasião em que foi ajustada ou quando lhe for reclamada”.
A finalidade do contrato de depósito é a guarda da coisa, sendo este um dos seus principais pontos característicos, que o distingue de outros institutos. Azevedo (2012, p. 58) nos mostra que:
Tanto a ideia de guardar o objeto depositado é essencial, que ao depositário é vedado servir-se da coisa por ele guardada, nem a dar em depósito a outrem, sem expressa autorização do depositante, sob pena de responder por perdas e danos, art. 640, caput, do CC/02.
Eventualmente, poderá haver permissão para utilização da coisa, sem que isso desvirtue o contrato do depósito. Essa utilização, contudo, não pode ser a finalidade principal da avença, sob pena do contrato transformar-se em comodato, se gratuito o uso, ou em locação, se remunerado (AZEVEDO, 2012, p. 58).
Trata-se em regra de um contrato gratuito, portanto, unilateral, uma vez que implica em obrigações tão somente ao depositário. É de salientar-se, contudo, que essa gratuidade não é da essência do instituto, uma vez que pode ser estipulado o pagamento de uma gratificação ao depositário, podendo esse pagamento resultar também de atividade negocial ou do exercício profissional da atividade de depósito, conforme se aufere do art. 628 do Código Civil. O contrato tornar-se-á bilateral nesses casos e “será do tipo comutativo, pressupondo uma equivalência entre as prestações, conhecida das partes já no início do contrato”. (QUEIROZ, 2004, p. 44)
Uma outra característica do contrato de depósito é a natureza móvel da coisa depositada, podendo se depreender tal informação ao analisar o já mencionado art. 627 (“recebe o depositário um objeto móvel”). Há, contudo, muitos doutrinadores e julgadores que têm admitido a possibilidade de depósito de imóvel, a exemplo do sequestro.
É um contrato real, ou seja, “somente se torna perfeito e acabado com a entrega do bem – objeto do negócio – de uma parte à outra” (GAGLIANO, 2010, p. 337). É também não solene ou não formal, uma vez que “a prova escrita, no depósito voluntário, é exigida tão só para a prova do ato. Trata-se de forma ad probationem, portanto não é requisito de validade do contrato” (QUEIROZ, 2004, p. 45).
É apontado também o caráter intuitu personae do instituto, pois baseado na confiança existente por parte do depositante na pessoa do depositário. Muitos autores entendem, todavia, que essa característica vem perdendo o sentido de existir com o passar do tempo, a exemplo de Silvio Rodrigues (1999, p. 261) que nos expõe que:
[...] a vida moderna trouxe uma porção considerável de situações em que o contrato de depósito se impõe de maneira distorcida, tais como a guarda de automóveis em garagens ou a de móveis em armazéns especializados etc. e onde é inadmissível a ideia de gratuidade, como também não mais se trata de negócio intuitu personae.
O depósito poderá ser regular ou irregular. O depósito regular é aquele constituído de coisa infungível e inconsumível, devendo ao final, portanto, ser restituída a mesma coisa que foi depositada. Já o depósito irregular é aquele constituído de coisa fungível e consumível, devendo ao final, e a contrário do depósito regular, ser restituída coisa da mesma espécie, quantidade e qualidade. Entende-se que neste caso desvirtua-se o contrato de depósito, aplicando-se as regras do mútuo (art. 645 do Código Civil), embora existam julgados no sentido de que não é perdido o caráter de depósito quando este versa sobre coisa fungível. (AZEVEDO, 2012, p. 56-57)
Imprescindível ainda fazer menção a uma outra classificação do depósito: voluntário ou necessário. É voluntário quando “nasce da vontade dos interessados, espontaneamente, por meio de convenção entre eles” (AZEVEDO, 2012, p. 56). Já o depósito necessário é aquele “em que o depositante, não podendo escolher livremente a pessoa do depositário, é forçado pelas circunstâncias a efetuar o depósito com pessoas, cujas virtudes desconhece” (RODRIGUES, 2000, p. 266).
Esta última espécie de depósito pode ser classificada ainda em legal, quando determinado por lei, ou miserável, quando feito em situações de calamidade, como incêndio, inundação, naufrágio ou saque. Enquadra-se, ainda, como depósito necessário, aquele realizado por hospedeiros ou hoteleiros, equiparados pelo art. 649 do Código Civil ao depósito legal: “Aos depósitos previstos no artigo antecedente é equiparado o das bagagens dos viajantes ou hóspedes nas hospedarias onde estiverem”.
Quanto aos deveres do depositário para com a coisa depositada, dispõe o art. 629 do mesmo diploma que:
O depositário é obrigado a ter na guarda e conservação da coisa depositada o cuidado e diligência que costuma com o que lhe pertence, bem como a restituí-la, com todos os frutos e acrescidos, quando o exija o depositante.
São obrigações do depositário, portanto, a guarda da coisa, a sua conservação e a posterior restituição na data avençada ou quando reclamada pelo depositante. “A não-devolução da coisa, com quebra da confiança e da boa-fé, é reprimida severamente pela lei, com a cominação de pena de prisão ao depositário infiel” (GONÇALVES, 2009, p. 373), tema que será a seguir minuciado.
1.4 Prisão do Depositário Infiel
Conforme exposto, dentre as obrigações do depositário, encontra-se a de restituir a coisa depositada, no prazo avençado ou quando reclamada pelo depositante.
O Código Civil de 2002, em seus artigos 633 a 635, prevê hipóteses que autorizam a negativa de restituição da coisa, bem detalhadas por Gagliano (2010, p. 350), quais sejam: exercício do direito de retenção, até que seja paga ao depositário a retribuição devida, o valor de eventual despesa realizada ou a indenização por algum prejuízo resultante do depósito; o embargo judicial da coisa depositada, quando sobre o objeto impõe-se alguma medida judicial constritiva ou assecuratória; a existência de execução pendente sobre o objeto depositado; e a ocorrência de motivo razoável acerca da procedência ilícita da coisa depositada.
Fora das hipóteses previstas legalmente, a negativa de restituição do bem depositado caracteriza a infidelidade depositária.
O depositário infiel, nos sábios dizeres de Queiroz (2004, p. 55) é:
[...] aquele que tendo a obrigação de restituir coisa alheia que recebeu para custódia não o fez, não cumpriu sua obrigação. E, ao colocar-se na posição de inadimplência, acaba por trair a confiança que nele depositou quem lhe entregou a coisa para guardar, tornando-se com isso um devedor em mora.
Para a infidelidade depositária, prevê o artigo 652 do Código Civil (1.287 do CC/16): “Seja voluntário ou necessário o depósito, o depositário que não o restituir, quando exigido, será compelido a fazê-lo mediante prisão não excedente a 1 (um) ano, e a ressarcir os prejuízos”.
Percebe-se claramente a existência de permissão legal para a decretação da prisão civil do depositário infiel, encontrando tal dispositivo guarida constitucional no art. 5º, LXVII da CF/88, que estabelece:
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
LXVII - não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel.
Acerca desta modalidade de prisão, necessário se faz tecer algumas considerações.
Um primeiro e interessante apontamento, é que a expressão ‘depositário infiel’ foi por muito tempo interpretada em sentido amplo, o que deu margem para que o legislador criasse novas figuras de depósito que se enquadrassem no dispositivo constitucional, conforme nos ensina Gilmar Mendes (2010, p. 728). Segundo o autor, o Supremo Tribunal Federal entendia que, não apenas os casos comuns de depósito, mas também outros como a prisão civil do devedor depositante infiel em contrato de alienação fiduciária, e os casos de penhor agrícola e penhor mercantil, encontravam-se abarcados pelo art. 5º, LXVII da Constituição.
Esse posicionamento sempre causou muita polêmica e foi palco de muitos debates em nosso país, especialmente no que tange à alienação fiduciária em garantia.
Quanto a este instituto, pertinente o conceito de Gomes (1993, p. 520), que o define como o “negócio jurídico pelo qual o devedor, para garantir o pagamento da dívida, transmite ao credor a propriedade de um bem, retendo-lhe a posse direta, sob a condição resolutiva de saldá-la”. Caso não venha a adimplir a obrigação assumida, encontra-se o devedor, ou fiduciante, obrigado a restituir o bem ao credor, denominado fiduciário.
O Decreto-lei nº 611/69, ao alterar e estabelecer normas de processo sobre alienação fiduciária dispõe em seu artigo 4º:
Se o bem alienado fiduciariamente não for encontrado ou não se achar na posse do devedor, o credor poderá requerer a conversão do pedido de busca e apreensão, nos mesmos autos, em ação de depósito, na forma prevista no Capítulo II, do Título I, do Livro IV, do Código de Processo Civil.
Ao admitir-se a ação de depósito no instituto da alienação fiduciária em garantia, conseqüentemente tornou-se possível a decretação da prisão civil no seio dessa ação. Queiroz (2004, p. 58) nos mostra que:
[...] sua equiparação, pela lei ordinária, ao depósito fez com que, por muito tempo, não houvesse vacilação em condenar-se à prisão, o fiduciante inadimplente que não restituísse a coisa alienada, na forma da permitida em face do depositário infiel.
Regressando às considerações acerca da prisão do depositário infiel, um outro importante apontamento é que, por tratar-se de medida extrema, não basta a simples recusa em restituir o bem para que seja autorizada a decretação da prisão. Esta deve dar-se no bojo de uma ação de depósito, com todas as garantias cabíveis ao depositário. Ensina-nos Gagliano (2010, p. 355) que:
É imprescindível o ajuizamento da chamada ação de depósito para que o depositário possa ter a garantia do contraditório, com oportunidade de restituir o bem ou justificar a negativa ou a impossibilidade, fática ou jurídica, de devolução dos bens.
Muito se discutia na doutrina e jurisprudência o momento em que deveria constar o pedido de decretação da prisão. Ao prever o §1º do artigo 902 do Código de Processo Civil que na petição inicial poderia constar o pedido de cominação da pena de prisão, muitos entenderam que somente poderia haver a decretação da prisão civil na ação de depósito se esta fosse requerida na inicial.
Não foi este o posicionamento que prevaleceu no Supremo Tribunal Federal, que defendia que, caso não fosse feito o pedido na inicial, poderia sê-lo após o não cumprimento de mandado de execução de sentença condenatória.
Na hipótese de depósito judicial, entendeu-se não ser necessária a propositura de ação de depósito, uma vez que o juiz, nos próprios autos em que se constitui o encargo, pode determinar a restituição da coisa. Era o que vinha consolidado na Súmula 619 do STF: “A prisão do depositário judicial pode ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, independente da propositura da ação de depósito”. Por motivos que mais adiante serão compreendidos, esta Súmula veio a ser revogada de nosso ordenamento.
Por fim, cabe-nos lembrar do já mencionado caráter compulsório da prisão civil, a partir do qual é possível concluir-se que:
[...] a qualquer momento pode liberar-se o depositário da cominação da prisão e do seu cumprimento, bastando para isso que cumpra a obrigação de exibir a coisa depositada ou ofereça o equivalente ao valor da res deposita, tratando-se pois de prisão civil por dívidas (QUEIROZ, 2004, p. 56-57).
Malgrado tudo o que neste tópico foi apresentado, a adesão pelo Brasil ao Pacto de San José da Costa Rica trouxe profundas influências aos nossos doutrinadores e julgadores, levando-os aos poucos a repensar todo o entendimento até então prevalecente acerca da prisão civil do depositário infiel. Nas próximas laudas será esmiuçado todo o debate que levou ao atual posicionamento acerca da questão.
2 OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS E O PACTO DE SAN JOSÉ DA RICA
Vive-se hoje a realidade de um mundo globalizado, em que os Estados não encontram-se mais voltados apenas para si mesmos, assumindo também obrigações no plano internacional.
Neste contexto, se erigem os tratados internacionais como a principal fonte de obrigação, disciplinando a relação entre Estados e organizações internacionais. Interessa a este estudo, especialmente, os tratados que dizem respeito aos direitos humanos, e que, pela importância que apresentam, gozam de especial posição no ordenamento jurídico brasileiro.
2.1 A prevalência dos Direitos Humanos na Constituição Federal de 1988
A Segunda Guerra Mundial trouxe consigo uma série de catástrofes e atrocidades que levaram ao massacre da dignidade humana, e fizeram com que, ao seu término, fossem pensadas formas de garantir aos cidadãos a proteção contra arbitrariedades das autoridades e a existência de uma vida digna e harmônica.
Iniciou-se, a partir de então, o advento da reconstrução dos Direitos Humanos. A dignidade da pessoa humana passou a ser “princípio que unifica e centraliza todo o sistema normativo, assumindo essencial prioridade” (PIOVESAN, 2008, p. 31), e orientando tanto o Direito Internacional como o Direito interno.
Isso se refletiu tanto na feitura de tratados internacionais que estabelecessem regras de proteção aos direitos fundamentais do cidadão, quanto na criação de textos constitucionais que incorporassem princípios, valores e normas protetivas destes direitos.
Assim aconteceu com a Constituição Federal de 1988, que instituiu um regime político democrático no Brasil, dando uma atenção nunca antes dispensada às garantias e direitos fundamentais, bem como a setores mais vulneráveis da sociedade brasileira. Pode-se afirmar que “a partir dela, os direitos humanos ganham relevo extraordinário, situando-se a Carta de 1988 como o documento mais abrangente e pormenorizado sobre os direitos humanos jamais adotado no Brasil” (PIOVESAN, 2008, p. 24).
É notória a opção da atual Constituição pela prevalência dos Direitos Humanos. Ainda em seu artigo 1º, inciso III, a dignidade da pessoa humana é elencada como um dos fundamentos do nosso Estado. O artigo 4º, inciso II, estampa a prevalência dos direitos humanos como um dos princípios que regem a República Federativa do Brasil em suas relações internacionais. O §1º do artigo 5º revela a aplicação imediata das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais, e o §2º do mesmo artigo dispõe que os direitos e garantias que se encontram expressos na Constituição “não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Cabe mencionar ainda o artigo 60, § 4º, inciso IV, que eleva os direitos e garantias individuais a condição de cláusulas pétreas, impedindo qualquer proposta de emenda tendente a aboli-los.
Esses são apenas alguns dispositivos que mostram a decisão do Constituinte pela atribuição de fulcro humanista à atual Carta Magna, o que não ocorreu em constituições anteriores. Apenas a título exemplificativo, podemos citar a Constituição de 1967, que somente tratou dos direitos e garantias fundamentais em seu artigo 153, e consagrou como cláusulas pétreas apenas a Federação e a República.
Imprescindível mencionar que o reconhecimento da prevalência dos direitos humanos em nosso país implica no também reconhecimento da:
[...] existência de limites e condicionamentos à noção de soberania estatal. Isto é, a soberania do Estado brasileiro fica submetida a regras jurídicas, tendo como parâmetro obrigatório a prevalência dos direitos humanos (PIOVESAN, 2008, p. 40) .
E foi essa prevalência dos direitos humanos na Constituição de 1988 que acabou por contribuir para a ratificação por parte do Brasil de instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos[3] (PIOVESAN, 2008, p.41). Nesse sentido, Queiroz (2004, p. 19) afirma que:
Compromissando-se com a comunidade internacional, o Brasil insere-se como mais um Estado-nação a optar pela vinculação de suas ações internas a documentos internacionais, no que tange à matéria afeita aos direitos humanos [...]. E ao fazê-lo, o país responsabiliza-se perante essa comunidade mundial a respeitar tais documentos internacionais, uma vez que voluntariamente aderiu aos mesmos.
É sobre esses instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos que trataremos a seguir.
2.2 Breves noções a respeito dos Tratados Internacionais
O tratado é atualmente a principal fonte de obrigação no plano internacional, regulamentando as mais diversas relações jurídicas entre países e organizações internacionais. Trata-se, na definição de Rezek (2008, p. 14), de “todo acordo formal concluído entre pessoas jurídicas de direito internacional público, e destinado a produzir efeitos jurídicos”.
Outra interessante definição é a apresentada na Convenção Internacional do Direito dos Tratados:
Tratado significa um acordo internacional concluído por escrito entre Estados e regido pelo Direito Internacional, quer conste de um instrumento único, quer de dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja sua denominação específica.
A mencionada Convenção constitui um importante documento, firmado no ano de 1969, em Viena, e ratificado pelo Brasil em 2009. O intuito desse instrumento, nas palavras de Chiapinni (2011, p. 1), é “solucionar as controvérsias sobre a aplicação dos tratados internacionais, e estabelecer parâmetros para a assinatura, adesão, formulação, denúncia, entre outras obrigações internacionais”.Trata-se de documento essencial para aqueles que almejam realizar o estudo dos Tratados Internacionais.
Quanto a estes, necessário salientar que nem sempre eles se propõem a inovar na ordem internacional, servindo muitas vezes tão somente para regulamentar situações já existentes. É o que nos mostra Piovesan (2008, p. 44):
Não necessariamente os tratados internacionais consagram novas regras de Direito Internacional. Por vezes, acabam por codificar regras preexistentes, consolidadas pelo costume internacional, ou, ainda, optam por modifica-las.
Seguindo adiante, a autora nos apresenta brilhante explanação acerca do processo de formação dos tratados internacionais. Quanto ao tema, podemos enumerar três fases, todas de competência do Poder Executivo: negociação, conclusão e assinatura. Esta última etapa constitui apenas um aceite precário e provisório, não implicando na produção de efeitos jurídicos.
Para a fase seguinte, é possível perceber a soma de vontades do Poder Executivo com a do Poder Legislativo, prevista em nossa Constituição. Quanto ao último Poder, o artigo 49, inciso I, dispõe ser competência exclusiva do Congresso Nacional “resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais”, o que se dá mediante decreto legislativo. Já o artigo 84, inciso VIII, diz ser competência privativa do Presidente da República “celebrar tratados, convenções e atos internacionais”.
Portanto, assinado pelo Executivo e aprovado pelo Legislativo, parte-se para a ratificação do tratado, feita também pelo Poder Executivo. A ratificação, de acordo com a Convenção de Viena, consiste no “ato internacional [...] pelo qual um Estado estabelece no plano internacional o seu consentimento em obrigar-se por um tratado”. Uma vez “celebrado por representante do Poder Executivo, aprovado pelo Congresso Nacional e, por fim, ratificado pelo Presidente da República, passa o tratado a produzir efeitos jurídicos” (PIOVESAN, 2008, p. 49).
Uma importante observação a ser feita é quanto à possibilidade de formulação de reservas, possível na maior parte dos tratados. Ela consiste, nos dizeres da Convenção de Viena, na:
[...] declaração unilateral, qualquer que seja a sua redação ou denominação, feita por um Estado ao assinar, ratificar, aceitar ou aprovar um tratado, ou a ele aderir, com o objetivo de excluir ou modificar o efeito jurídico de certas disposições do tratado em sua aplicação a esse Estado.
Ao utilizar-se da reserva, por conseguinte, o Estado pode adequar as disposições do tratado à sua melhor conveniência. No entanto, são previstas hipóteses nas quais não é permitida a sua formulação: quando a reserva é proibida pelo tratado; quando o tratado dispõe que só podem ser formuladas determinadas reservas, entre as quais não figure a reserva em pretendida; e nos casos não previstos anteriormente, mas nos quais a reserva seja incompatível com o objeto e a finalidade do tratado.
Significativos no contexto dos tratados são aqueles que tratam dos Direitos Humanos, uma vez que, pela relevância que possuem, gozam de tratamento especial em nosso ordenamento jurídico, sendo a eles, inclusive, conferida hierarquia diferenciada pela nossa Constituição, tema que será aprofundado no tópico seguinte.
Por fim, cabe mencionar que os Tratados possuem força obrigatória e vinculante, aplicando-se aos Estados que manifestaram consentimento em sua adoção. Uma vez que pautados no princípio da boa-fé, “cabe ao Estado conferir plena observância ao tratado de que é parte, na medida em que, no livre exercício de sua soberania, o Estado contraiu obrigações jurídicas no plano internacional” (PIOVESAN, 2008, p. 45). Mais adiante, afirma a autora que:
Considerando o processo de formação dos tratados e reiterando a concepção de que apresentam força jurídica obrigatória e vinculante, resta frisar que a violação de um tratado implica a violação de obrigações assumidas no âmbito internacional. O descumprimento de tais deveres implica, portanto, responsabilização internacional do Estado violador.
A análise da posição hierárquica ocupada pelos tratados no ordenamento jurídico brasileiro é de extrema importância, na medida em que leva à determinação de qual norma deve prevalecer em havendo conflito entre tratado e norma constitucional ou tratado e lei ordinária.
Confidencia Portela (2010, p.127) que:
O poder constituinte não estabeleceu regras claras referentes à matéria até a Constituição Federal de 1988, quando começou a se vislumbrar um esboço de tratamento do tema, ainda que limitado às normas internacionais de Direitos Humanos e de um tal modo que criou novos pontos controversos, sem necessariamente dirimir dúvidas anteriores. Com tudo isso, a definição do tratamento da matéria no Brasil é feita, principalmente, pela doutrina e pela jurisprudência.
Da citação acima, é possível auferir que a Constituição Federal deu tratamento diverso aos tratados internacionais relativos a direitos humanos. Piovesan (2008, p.67) ensina que o direito brasileiro adota um sistema misto disciplinador dos tratados, “sistema que se caracteriza por combinar regimes jurídicos diferenciados: um regime aplicável aos tratados de direitos humanos e outro aplicável aos tratados tradicionais”. A autora mostra que:
[...] relativamente aos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, a Constituição brasileira de 1988, em seu art. 5º, §1º, acolhe a sistemática da incorporação automática dos tratados, o que reflete a adoção da concepção monista. [...] O regime jurídico diferenciado conferido aos tratados de direitos humanos não é, todavia, aplicável aos demais tratados, isto é, aos tradicionais. No que tange a estes, adota-se a sistemática da incorporação legislativa, exigindo que, após a ratificação, um ato com força de lei (no caso brasileiro esse ato é um decreto expedido pelo Executivo) confira execução e cumprimento aos tratados no plano interno. Desse modo, no que se refere aos tratados em geral, acolhe-se a sistemática da incorporação não automática, o que reflete a adoção da concepção dualista (2008, p. 90).
Antes de adentrar na seara dos Tratados Internacionais que dizem respeito aos direitos humanos, mister compreender o posicionamento adotado em relação aos tratados tradicionais.
Não há dúvidas quanto ao caráter infraconstitucional desses tratados, uma vez que o artigo 102, III, b, da nossa Constituição atribui ao Supremo Tribunal Federal a competência para julgar mediante recurso extraordinário “as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal.” Uma vez possível a declaração de inconstitucionalidade do tratado, elencado junto à lei federal, conclui-se pelo seu status infraconstitucional.
Tema discutido na doutrina e jurisprudência é se esses tratados prevalecem sobre as leis federais ou se possuem a mesma hierarquia que elas.
Documenta-se que o posicionamento dominante em nossa jurisprudência até o ano de 1977 era no sentido da superioridade hierárquica dos tratados quando em conflito com norma ordinária, não revogando a lei posterior um tratado que com ela fosse incompatível[4].
O Recurso Extraordinário 80.004, julgado em 1977, veio para modificar o entendimento até então prevalecente, consolidando um novo posicionamento do Supremo Tribunal Federal acerca da questão. Koehler, em artigo intitulado “Hierarquia dos tratados internacionais em face do ordenamento jurídico interno”, nos fornece breve noção do caso julgado no recurso extraordinário em questão:
Tratava-se de conflito envolvendo a Lei Uniforme de Genebra sobre Letras de Câmbio e Notas Promissórias, que entrou em vigor com o Decreto nº 57.663 de 1966, e uma lei interna posterior, o Decreto-lei nº 427/69. O conflito relacionava-se à obrigatoriedade ou não de existência do aval aposto na nota promissória – uma exigência formal para a validade do título que não constava no texto internacional. Prevaleceu, ao final do julgamento, o Decreto-lei nº 427/69, valendo-se o STF da regra lex posterior derogat priori.
Admitindo a paridade entre tratados internacionais e lei federal, o Supremo Tribunal Federal concluiu, em caso de conflito, pela aplicação do princípio segundo o qual a norma posterior revoga a norma anterior com ela incompatível. Nesse sentido, dispõe Rezek (2008, p.99):
De setembro de 1975 a junho de 1977 estendeu-se no plenário do Supremo Tribunal Federal, o julgamento do Recurso Extraordinário 80.004, em que assentada, por maioria, a tese de que, ante a realidade do conflito entre o tratado e lei posterior, esta, porque expressão última da vontade do legislador republicano deve ter sua prevalência garantida pela Justiça – sem embargo das conseqüências do descumprimento do tratado, no plano internacional. Admitiram as vozes majoritárias que, faltante na Constituição do Brasil garantia de privilégio hierárquico do tratado internacional sobre as leis do Congresso, era inevitável que a Justiça devesse garantir a autoridade da mais recente das normas, porque paritária sua estatura no ordenamento jurídico.
A posição do STF, que veio a ser reiterada em julgamentos posteriores, foi, e ainda é, alvo de muitas críticas. Interessante a observação feita por Celso D. Albuquerque Mello (1979, p.70) a respeito do tema:
A tendência mais recente no Brasil é a de um verdadeiro retrocesso na matéria. No recurso extraordinário n. 80.004, decidido em 1977, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu que uma lei revoga o tratado anterior. Esta decisão viola também a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados (1969) [...].
Isso porque o artigo 27 da citada convenção dispõe que “uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado”.
A posição aceita pelos críticos do posicionamento do Supremo é a da supralegalidade dos tratados, situando-se estes em um nível hierárquico intermediário, pois abaixo da Constituição, mas acima das leis ordinárias. É o que defende Mazzuoli (2001, p. 118), afirmando que não podem os tratados serem revogados por lei posterior, uma vez que não se encontram em paridade com as demais leis nacionais.
Discussão ainda maior, contudo, é a travada em relação à hierarquia dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos. A esse respeito, é possível noticiar a existência de quatro correntes: a que atribui caráter constitucional a esses tratados, a que atribui caráter infraconstitucional, a que afirma que eles possuem caráter supraconstitucional, e por fim a que defende o caráter infraconstitucional, mas supralegal, dos tratados.
Para a corrente que defende a hierarquia constitucional dos Tratados Internacionais sobre Direito Humanos, essa condição se apresenta desde o advento da promulgação da Constituição Federal de 1988, em que mostrou-se claro o propósito do constituinte de dar prevalência aos direitos humanos.
Com efeito, o artigo 5º, §2º da Carta dispõe que “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Ao fazer essa previsão, Piovesan (2008, p. 58) entende que a Constituição está incluindo os tratados sobre direitos humanos no catálogo de direitos constitucionalmente protegidos, estendendo a esses tratados o mesmo regime conferido aos outros direitos e garantias fundamentais. Na mesma linha de pensamento, explana Portela (2010, p. 129):
O referido preceito consagra a cláusula de abertura dos direitos fundamentais, que permite a permanente e rápida atualização da ordem constitucional e, nesse sentido, abre espaço para que os tratados de direitos humanos contribuam para a ampliação do rol de direitos e garantias constitucionalmente protegidos.
De fato, o artigo 5º, §2º mostra que não se pode reduzir as disposições dotadas de valor constitucional tão somente àquelas que se encontram expressas em seu texto. Nesse sentido afirma Canotilho (1993, p. 982): “O programa normativo-constitucional não pode se reduzir, de forma positivística, ao ‘texto’ da Constituição. Há que densificar, em profundidade, as normas e princípios da constituição, alargando o ‘bloco da constitucionalidade’ [...]”.
Seguindo esse mesmo entendimento, de que a Constituição admite outros direitos que não aqueles enumerados expressamente em seu texto, José Afonso da Silva (2000, p. 197) classifica os direitos individuais em três grupos: o dos direitos individuais explícitos, que são aqueles explicitamente enunciados no art. 5º, os direitos individuais implícitos, que estão subentendidos nas regras de garantias, certos desdobramentos do direito à vida; e, por fim, os direitos individuais decorrentes do regime e de tratados internacionais subscritos pelo Brasil.
Os que defendem o status constitucional dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos acreditam que, em havendo conflito entre norma constitucional e a disposição de um tratado, deverá prevalecer aquela que for mais favorável à vítima.
Em suma, é possível concluir que para os defensores dessa corrente:
A hierarquia constitucional dos tratados de proteção dos direitos humanos decorre da previsão constitucional do art. 5º, §2º, à luz de uma interpretação sistemática e teleológica da Carta, particularmente da prioridade que atribui aos direitos fundamentais e ao princípio da dignidade da pessoa humana. Essa opção do Constituinte de 1988 se justifica em face do caráter especial dos tratados de direitos humanos e, no entender de parte da doutrina, da superioridade desses tratados no plano internacional (PIOVESAN, 2008, p. 68).
Há uma segunda corrente que defende que os Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos gozam de status de lei ordinária. Foi esse o entendimento majoritário adotado no Supremo Tribunal Federal por muitos anos, tendo se consolidado desde o já mencionado Recurso Extraordinário 80.004. Isso é possível perceber em trecho do voto proferido pelo Ministro Celso de Mello no HC 72.131:
[...] Não cabe atribuir, por efeito do que prescreve o art. 5º, parágrafo 2º, da Carta Política, um inexistente grau hierárquico das convenções internacionais sobre o direito positivo interno vigente no Brasil, especialmente sobre as prescrições fundadas em texto constitucional, sob pena de essa manifestação inviabilizar, com manifesta ofensa à Supremacia da Constituição, [...] o próprio exercício pelo Congresso Nacional, de sua típica atividade político-jurídica consistente no desempenho da função de legislar. (HC 72.131/RJ, julg. 22.01.1995)
Conforme já dito neste trabalho, em havendo conflito entre tratado e lei posterior, deve esta prevalecer, sem prejuízo das consequências decorrentes do descumprimento do tratado no âmbito internacional.
Uma outra corrente prende-se ao posicionamento de que os tratados internacionais de direitos humanos gozam de status infraconstitucional, porém supralegal, tendo em vista o seu caráter especial quando comparados a outros atos normativos internacionais. Significativo para os que são adeptos a essa corrente foi o voto do Min. Sepulveda Pertence, relator no RHC 79.785, que defendeu a tendência a:
[...] aceitar a outorga de força supra-legal às convenções de direitos humanos, de modo a dar aplicação direta às suas normas – até se necessário, contra a lei ordinária – sempre que, sem ferir a Constituição, a complementem, especificando ou ampliando os direitos e garantias dela constantes” (RHC 79.785-7/RJ, julg.29.03.2000, in DJU de 19.09.2003).
Ao reconhecer o status supralegal dos tratados internacionais de Direitos Humanos, atenta-se para a impossibilidade de revogação desses instrumentos por lei ordinária. Contudo, percebe-se ao mesmo tempo o fato de que esses tratados não podem ir de encontro ao que dispõe a Constituição, uma vez que esta prevalece sobre eles.
Por fim, cabe mencionar uma quarta corrente, defendida por grande parte dos internacionalistas contemporâneos e que reconhece o status supraconstitucional dos instrumentos de proteção dos direitos humanos. A esse respeito, cabe mencionar os dizeres de Augustín Gordillo, citado por Piovesan (2008, p.68):
[...] a supremacia da ordem supranacional sobre a ordem nacional preexistente não pode ser senão uma supremacia jurídica, normativa, detentora de força coativa e de imperatividade. Estamos, em suma, ante um normativismo supranacional. Concluímos, pois, que as características da Constituição, como ordem jurídica suprema do direito interno, são aplicáveis em um todo às normas da Convenção, enquanto ordem jurídica suprema supranacional. Não duvidamos de que muitos intérpretes resistirão a considerá-la direito supranacional e supraconstitucional, sem prejuízo dos que se negarão a considerá-la sequer direito interno, ou, mesmo, direito.
Uma vez explanadas as correntes que se propõem a desvendar a problemática da hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos, é possível concluir pela grande divergência existente na doutrina e jurisprudência a respeito do tema.
Com o intuito de amenizar a polêmica e as discussões causadas, a Emenda Constitucional n. 45, de 2004, que introduziu o §3º ao art. 5º da Constituição Federal, veio consolidar o entendimento de que:
Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às Emendas Constitucionais.
O dispositivo não deixa dúvidas de que, tratando-se de tratado e convenção internacional cujo conteúdo seja direitos humanos, aprovado pelo rito previsto no §3º do art. 5º, qual seja três quintos dos votos, em cada casa do Congresso, em dois turnos de votação, estar-se-á diante de normas de caráter constitucional.
Mas longe de acabar com toda a divergência existente a respeito do assunto, a aprovação da Emenda Constitucional n. 45/2004 trouxe novos questionamentos. Realmente não restam dúvidas quanto aos Tratados aprovados após seu ingresso no ordenamento jurídico. Contudo, como fica a situação dos tratados que, a despeito de protegerem os direitos humanos, foram aprovados antes do advento da Emenda 45, e, portanto, sem obedecer ao trâmite previsto no art. 5, §3º?
Muitos autores defendem que os tratados ratificados anteriormente ao mencionado parágrafo, mesmo sem a observância do quórum qualificado, gozam de hierarquia constitucional. É o que entende Piovesan (2008, p. 72), dispondo que:
Por força do art. 5º, §2º, todos os tratados de direitos humanos, independentemente do quórum de sua aprovação, são materialmente constitucionais, compondo o bloco de constitucionalidade. O quórum qualificado está tão-somente a reforçar tal natureza [...]. Não seria razoável sustentar que os tratados de direitos humanos já ratificados fossem recepcionados como lei federal, enquanto os demais adquirissem hierarquia constitucional exclusivamente em virtude de seu quórum de aprovação.
Entende-se não ser coerente não atribuir caráter constitucional a um tratado de direitos humanos apenas pela inobservância a uma formalidade que à época de sua ratificação não estava prevista, e, portanto, não tinha como ser obedecida.
Nesse mesmo diapasão, expõe Rezek (2008, p. 103):
[...] é sensato crer que ao promulgar esse parágrafo na Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004, sem nenhuma ressalva abjuratória dos tratados sobre direitos humanos outrora concluídos mediante processo simples, o Congresso constituinte os elevou à categoria dos tratados de nível constitucional.
A contrariu sensu, há quem não atribua caráter constitucional aos tratados aprovados antes da Emenda Constitucional n. 45, acreditando, inclusive, que a aprovação da emenda veio para confirmar o caráter infraconstitucional desses instrumentos. É o que entende Gilmar Mendes (2010, p. 743):
Em termos práticos, trata-se de uma declaração eloquente de que os tratados já ratificados pelo Brasil, anteriormente à mudança constitucional, e não submetidos ao processo legislativo especial de aprovação no Congresso Nacional, não podem ser comparados às normas constitucionais.
Embora não admitindo o status constitucional dos tratados anteriores à Emenda n. 45, é possível documentar que a disposição do §3º do art. 5º trouxe profundas mudanças no posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal, que percebeu a necessidade de evolução e atualização jurisprudencial, tendo em vista o reconhecimento do caráter especial dos tratados de direitos humanos em relação aos demais tratados.
A jurisprudência que defendia o status de lei ordinária desses instrumentos acabou tornando-se defasada, sendo imperiosa a conclusão pela supralegalidade dos mesmos. O próprio Gilmar Mendes, no julgamento do lendário Recurso Extraordinário 466.343, mostra que:
[...] A premente necessidade de ser dar efetividade à proteção dos direitos humanos nos planos interno e internacional torna imperiosa uma mudança de posição quanto ao papel dos tratados internacionais sobre direitos na ordem jurídica nacional. É necessário assumir uma postura jurisdicional mais adequada às realidades emergentes em âmbitos supranacionais, voltadas primordialmente à proteção do ser humano.
Essa evolução no posicionamento do Supremo Tribunal Federal é de sublime relevância para este texto, na medida em que levou à completa mudança no tratamento dado à questão da prisão civil do depositário infiel. Isso será o objeto de estudo do capítulo seguinte.
2.4 O Pacto de San José da Costa Rica e a Prisão Civil
Instrumento de maior importância no sistema interamericano, a Convenção Americana de Direitos Humanos foi assinada em San José, Costa Rica, em 1969. De acordo com dados da Organização dos Estados Americanos, dos 35 Estados membros da OEA, 24 são partes da Convenção[5]. No ordenamento jurídico brasileiro, ela foi incorporada em 1992, através do Decreto-legislativo nº 27:
Art. 1º: É aprovado o texto da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto São José) celebrado em São José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, por ocasião da Conferência especializada Interamericana sobre Direitos Humanos.
Também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, a Convenção reconhece e assegura uma gama de direitos, dentre os quais podemos citar direito à personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal, à liberdade pessoal, à indenização, à liberdade de consciência e religião, à liberdade de pensamento e de expressão, à proteção da honra e da dignidade, à proteção da família, ao nome, à dignidade, à igualdade perante a lei etc.
Diante de todos esses direitos previstos no Pacto, entende Piovesan (2008, p. 245) que:
[...] cabe ao Estado-parte a obrigação de respeitar e assegurar o livre e pleno exercício desses direitos e liberdades, sem qualquer discriminação. Cabe ainda ao Estado-parte adotar todas as medidas legislativas e de outra natureza que sejam necessárias para conferir efetividade aos direitos e liberdades enunciados.
E, de fato, os artigos 1º e 2º da Convenção tratam, respectivamente, da obrigação de respeitar os direitos e do dever de adotar disposições de direito interno, a fim de tornar efetivos os direitos e liberdades previstos.
Uma importante explanação acerca do Pactoé que o mesmo prevê a existência de uma Comissão Interamericana de Direitos Humanos, bem como uma Corte Americana de Direitos Humanos, que, segundo Piovesan (2008, p. 246), constituem “um aparato de monitoramento e implementação dos direitos que enuncia”.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, de acordo com o disposto no capítulo VII da Convenção, representa todos os membros da Organização dos Estados Americanos e é composta por sete membros, sendo estes pessoas de alta autoridade moral e notório saber em matéria de direitos humanos.
Sua função principal é promover a observância e a defesa dos direitos humanos, através de diversas atribuições, tais como: estimular a consciência dos direitos humanos nos povos da América; formular recomendações aos governos dos Estados-membros, quando considerar conveniente, no sentido de que adotem medidas progressivas em prol dos direitos humanos no âmbito de suas leis internas e seus preceitos constitucionais, bem como disposições apropriadas para promover o devido respeito a esses direitos; preparar estudos ou relatórios que considerar convenientes para o desempenho de suas funções; solicitar aos governos dos Estados-membros que lhe proporcionem informações sobre as medidas que adotarem em matéria de direitos humanos; atender às consultas que, por meio da Secretaria Geral da Organização dos Estados Americanos, lhe formularem os Estados-membros sobre questões relacionadas com os direitos humanos e, dentro de suas possibilidades, prestar-lhes o assessoramento que lhe solicitarem etc.
Qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou entidade não-governamental legalmente reconhecida em um ou mais Estados-membros da Organização, pode apresentar à Comissão petições que contenham denúncias ou queixas de violação da Convenção por um Estado-parte.
Já a Corte Interamericana, é composta por sete juízes de Estados membros da OEA, com diferentes nacionalidades e reconhecida competência em matéria de direitos humanos. A Corte tem competência para conhecer de qualquer caso, relativo à interpretação e aplicação das disposições do Pacto, que lhe seja submetido, desde que os Estados-partes no caso tenham reconhecido ou reconheçam a referida competência.
Quando decidir que houve violação de um direito ou liberdade protegidos na Convenção, a Corte determinará que se assegure ao prejudicado o gozo do seu direito ou liberdade violados. Determinará também, se isso for procedente, que sejam reparadas as consequências da medida ou situação que haja configurado a violação desses direitos, bem como o pagamento de indenização justa à parte lesada.
O Brasil reconheceu a competência da Corte em 1998, através do Decreto Legislativo 89, com os seguintes dizeres:
O Governo da República Federativa do Brasil declara que reconhece, por tempo indeterminado, como obrigatória e de pleno direito a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em todos os casos relacionados com a interpretação ou aplicação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em conformidade com o artigo 62, sob reserva de reciprocidade e para fatos posteriores a esta declaração.
Dentre as várias disposições previstas no Pacto de San José da Costa Rica, a que trouxe mais repercussão ao ordenamento jurídico brasileiro foi a contida em seu artigo 7º, 7, que estabelece: “Ninguém será detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar”.
Percebe-se que o Pacto proíbe expressamente a possibilidade de prisão civil por dívidas, excetuando apenas uma hipótese, que é a do inadimplemento de obrigação alimentar.
Essa disposição teve grande repercussão no ordenamento brasileiro na medida em que, a Constituição Federal admite duas exceções à proibição da prisão civil, que é a do devedor de alimentos e a do depositário infiel.
Uma vez ratificada a Convenção Americana pelo Brasil, como deveria ficar a questão da prisão civil do depositário infiel? Teria a Convenção força para ir de encontro à previsão constitucional, proibindo essa modalidade de prisão? Ou deveria prevalecer a disposição constitucional?
Quanto a esses questionamentos, o capítulo seguinte traçará todo o caminho percorrido pela jurisprudência brasileira até chegar à consolidação do seu atual posicionamento.
3 A PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
A partir da análise de julgados do Supremo Tribunal Federal é possível compreender todo o processo de mudança que ocorreu na Corte desde a adesão do Brasil ao Pacto de San José da Costa Rica, no que diz respeito à prisão civil do depositário infiel.
Essencial nesse processo de mudança foi a aprovação da Emenda Constitucional n° 45/2004, que ao reconhecer a importância dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro, fez o Supremo perceber a necessidade de se repensar o instituto da prisão civil, adequando-o às disposições contidas no Pacto.
3.1 Entendimento anterior à Emenda Constitucional nº45/2004
Conforme já exposto neste estudo, por ocasião do Recurso Extraordinário nº 80.004, decidido em 1977, o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que os tratados internacionais gozavam de status de lei ordinária.
Mesmo após o advento da promulgação da Constituição Federal de 1988, foi reiterado pela Corte a tese da paridade entre tratado e lei ordinária.
Por esse motivo, e aplicando o princípio de que norma posterior revoga norma anterior com ela incompatível, admitia-se que lei posterior, uma vez manifestando a vontade última do legislador, revogasse o disposto em um tratado internacional anterior.
Com a adesão do Brasil ao Pacto de San José da Costa Rica, por meio do Decreto-legislativo nº 27 de 1992, entrou em cena nova disposição acerca da prisão civil, que divergia do que dispunha a Constituição Federal no que diz respeito à questão da prisão do depositário infiel, uma vez que a última a admitia expressamente, enquanto o Pacto a proibia.
Embora ressalvasse apenas a prisão decorrente do inadimplemento de obrigação alimentar, não admitindo, portanto, a prisão do depositário infiel, não teve o Pacto de San José da Costa Rica força suficiente para ir de encontro à previsão constitucional, uma vez que gozava de hierarquia de lei ordinária.
Por esse motivo, o Supremo Tribunal Federal não vacilou em aplicar por muito tempo a prisão civil nos casos de infidelidade depositária, inclusive nas hipóteses em que havia equiparação ao instituto do depósito, a exemplo da alienação fiduciária em garantia.
Trecho da Ementa do Habeas Corpus 72.131 – RJ (22.11.1995) permite constatar o entendimento àquele tempo adotado: “Nada interfere na questão do depositário infiel em matéria de alienação fiduciária o disposto no §7º do art. 7º da Convenção de San José da costa Rica”. Na ocasião, ficou firmado, conforme trecho do voto do Ministro Celso de Mello, que:
[...] A circunstância do Brasil haver aderido ao Pacto de San José da Costa Rica – cuja posição, no plano da hierarquia das fontes jurídicas, situa-se no mesmo nível de eficácia e autoridade das leis ordinárias internas – não impede o Congresso Nacional, em tema de prisão civil por dívida, aprove legislação comum instituidora desse meio excepcional de coerção processual [...]. Os tratados internacionais não podem transgredir a normatividade emergente da Constituição, pois, além de não disporem de autoridade para restringir a eficácia jurídica das cláusulas constitucionais, não possuem força para conter ou para delimitar a esfera de abrangência normativa dos preceitos inscritos no texto da Lei Fundamental.
Foi esse o posicionamento que prevaleceu em nossa Corte por muitas décadas, e que se pode constatar também em trecho da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.480, que teve como relator o Ministro Celso de Mello, de 4 de setembro de 1997:
Os tratados ou convenções internacionais, uma vez regularmente incorporados ao direito interno, situam-se, no sistema jurídico brasileiro, nos mesmos planos de validade, de eficácia e de autoridade em que se posicionam as leis ordinárias, havendo, em consequência, entre estas e os atos de direito internacional público, mera relação de paridade normativa.
De igual modo, a Ementa do HC 79.785 – RJ, julgado em 29 de março de 2000, mostra que havia a: “prevalência da Constituição, no direito brasileiro, sobre quaisquer convenções internacionais, incluídas as de proteção aos direitos humanos, que impede [...] a pretendida aplicação da norma do Pacto de San José”.
O Supremo admitia inclusive que, em se tratando de depósito judicial, não era necessária a propositura de uma ação de depósito para que fosse decretada a prisão, podendo esta se dar no seio do próprio processo no qual se constituía o encargo. Esse entendimento vinha retratado na Súmula 619, que assim dispunha: “A prisão do depositário judicial pode ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, independentemente da propositura de ação de depósito”.
Foram aqui mencionados apenas alguns dos vários julgados que demonstram o entendimento que prevalecia na Suprema Corte; de que, mesmo após a adesão ao Pacto de San José da Costa Rica, persistia a constitucionalidade da prisão civil do depositário infiel, bem como:
[...] que o Pacto de São José da Costa Rica, além de não poder contrapor-se ao disposto no artigo 5º, LXVII, da mesma Constituição, não derrogou, por ser norma infraconstitucional geral, as normas infraconstitucionais especiais sobre prisão civil do depositário infiel (HC 79.870/SP, julg. 15.05.2000, in DJU de 20.10.2000).
Dominou esse posicionamento no Supremo Tribunal Federal até o advento da Emenda Constitucional nº45/2004, que veio trazer mudanças significativas à questão, conforme analisado no tópico seguinte.
3.2 Entendimento posterior à Emenda Constitucional nº45/2004
A aprovação da Emenda Constitucional nº45/2004 trouxe novos horizontes no que diz respeito ao tratamento dado pelo Supremo Tribunal Federal à questão da prisão civil do depositário infiel. Ao conferir status constitucional aos tratados internacionais sobre direitos humanos aprovados em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos de votação e por três quintos dos votos, ficou demonstrado o caráter especial que esses diplomas apresentam, não mais se podendo admitir a tese que atribuía aos mesmos status de lei ordinária.
Foi a partir de então que se deu a guinada interpretativa do Supremo Tribunal Federal, quando este passou a julgar o tema da prisão civil de acordo com as disposições contidas no Pacto.
Afim de confirmar esta nova realidade, necessária se faz a análise de importante precedente para o tema, qual seja o Recurso Extraordinário 466. 343-1/SP (22.11.2006),em especial o voto proferido pelo Ministro Gilmar Mendes, referência para quem estuda a fundo o conteúdo proposto por este trabalho.
O Recurso Extraordinário em questão, que teve como relator o Ministro Cezar Peluso, envolveu o Banco Bradesco S/A, que interpôs o Recurso em insatisfação à acórdão proferido em sede de apelação pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, em que este deixou de impor a pena de prisão civil ao devedor fiduciante, sob alegação de sua inconstitucionalidade. O recorrente alegou, com fulcro no art. 102, III, a, da CF, que houve violação ao artigo 5º, inciso LVII do mesmo diploma, que possibilita a prisão civil do devedor de alimentos e do depositário infiel.
Como já mencionado, emblemático foi o voto proferido pelo Ministro Gilmar Mendes, em sessão do Plenário de 22 de novembro de 2006, merecendo, por esse motivo, exposição mais detalhada.
O Ministro inicia sua brilhante explanação tratando da controvérsia existente no nosso ordenamento jurídico em relação à prisão civil do depositário infiel, uma vez que tanto legislações mais avançadas, como o Pacto de San José da Costa Rica, ratificado pelo Brasil, proíbem essa modalidade de prisão, admitindo apenas a prisão civil do devedor de alimentos.
Quanto a essa questão, interessante citar trecho do voto:
Com a ratificação pelo Brasil desta convenção, assim como do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, sem qualquer reserva, ambos no ano de 1992, iniciou-se um amplo debate sobre a possibilidade de revogação, por tais diplomas internacionais, da parte final do inciso LXVII do art. 5º da Constituição brasileira de 1988, especificamente, da expressão “depositário infiel”, e, por consequência, de toda a legislação infraconstitucional que nele possui fundamento direto ou indireto.
A fim de solucionar a controvérsia, Mendes entende por necessária a análise, já feita neste estudo, acerca da hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos, discorrendo acerca das quatro correntes existentes a respeito do tema.
Quanto à tese da supraconstitucionalidade dos tratados, o Ministro acredita ser a mesma “incompatível com a realidade de Estados que, assim como o Brasil, estão fundados em sistemas regidos pelo princípio da supremacia formal e material da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico”.
Tratando da tese que atribui caráter constitucional aos tratados de direitos humanos, Mendes explica que os seus defensores “entendem que os §§1 e 2º do artigo 5º da Constituição caracterizar-se-iam, respectivamente, como garantes da aplicabilidade direta e do caráter constitucional dos tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário”. Ele conclui, contudo, que essa tese acabou perdendo o sentido diante da promulgação da Emenda nº45/2004, uma vez que previu um processo especial de aprovação dos Tratados Internacionais, não podendo os tratados anteriores que não obedeceram a esse rito, gozar de status constitucional.
Apesar de esvaziar a tese da constitucionalidade dos tratados, a promulgação da Emenda, por outro lado, destacou o caráter especial que possuem esses instrumentos internacionais, não podendo os mesmos continuar equiparados a leis ordinárias, posicionamento dominante no STF desde o julgamento do RE nº 80.004/SE. Nas palavras do Ministro:
É preciso ponderar [...] se no contexto atual, em que se pode observar a abertura cada vez maior do Estado constitucional a ordens jurídicas supranacionais de proteção de direitos humanos, essa jurisprudência não teria se tornado completamente defasada.
Ele menciona, ainda, a tendência contemporânea do constitucionalismo mundial de prestigiar as normas internacionais atinentes aos direitos humanos, apontando para uma necessária mudança na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Conclui que a tese mais adequada é aquela que atribui status de supralegalidade aos tratados e convenções internacionais de direitos humanos, mostrando que esse posicionamento já havia sido apresentado pelo Ministro Sepúlveda Pertence, no julgamento do RHC nº79.785-RJ, em 2000.
Esses tratados não poderiam confrontar a Constituição Federal; no entanto, gozariam de caráter especial em relação aos demais atos normativos internacionais, pois “equipará-los à legislação ordinária seria subestimar o seu valor no contexto do sistema de proteção dos direitos da pessoa humana”.
Por fim, o Ministro Gilmar Mendes encerra essa etapa do seu voto com brilhante entendimento, a seguir explanado:
[...] Diante da supremacia da Constituição sobre os atos normativos internacionais, a previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel (art. 5º, inciso LXVII) não foi revogada pela ratificação do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), mas deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria, incluídos o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e o Decreto Lei nº 911, de 1º de outubro de 1969. Tendo em vista o caráter supralegal desses diplomas normativos internacionais, a legislação infraconstitucional posterior que com eles seja conflitante também tem sua eficácia paralisada. É o que ocorre, por exemplo, com o art. 652 do Novo Código Civil (Lei nº10.406/2002) [...].
Na visão de Mendes, portanto, não existiria mais base legal para a aplicação do dispositivo constitucional que admite a prisão civil do depositário infiel.
O posicionamento do Ministro foi acompanhado pelos demais membros da Suprema Corte, que passaram a manifestar-se também pela inadmissibilidade da prisão civil na infidelidade depositária.
Curiosa a informação fornecida por Piovesan (2008, p. 74), de que até novembro de 2006, oito dos onze Ministros do Supremo haviam se manifestado pela inconstitucionalidade da prisão do devedor em tratando-se de alienação fiduciária. Em contrapartida, no ano de 1995, por ocasião do julgamento do HC 72.131-RJ, oito dos onze ministros entenderam pela possibilidade da prisão civil por dívida, tendo em vista a paridade hierárquica entre tratado e lei federal.
Pertinente mencionar também o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do Habeas Corpus 87.585-8/TO (03.12.2008), relatado pelo Ministro Marco Aurélio, onde desafiou-se a legitimidade de ordem de prisão, por 60 dias, decretada em virtude do não adimplemento de obrigação contratual por parte do paciente, quando intimado a entregar o bem depositado. Da seguinte forma dispõe segmento da Ementa referente ao Habeas Corpus em questão: “DEPOSITÁRIO INFIEL – PRISÃO. A subscrição pelo Brasil do Pacto de San José da Costa Rica [...] implicou a derrogação das normas estritamente legais referentes à prisão do depositário infiel”.
Na ocasião foi discutida com profundidade a questão da hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos. Apesar de prevalecente a tese da supralegalidade desses tratados, interessante observar que não foi caso de unanimidade, uma vez que os Ministros Celso de Mello, Cezar Peluso, Ellen Gracie e Eros Grau, conferiram aos tratados de direitos humanos status constitucional. É o que se poder depreender de trecho do voto proferido pelo Ministro Celso de Mello:
É preciso ressalvar, no entanto, como já precedentemente enfatizado, as convenções internacionais de direitos humanos celebradas antes do advento da E.C nº45/2004, pois, quanto a elas, incide o §2º do art. 5º da Constituição, que lhes confere natureza materialmente constitucional, promovendo a sua integração e fazendo com que se subsumam mesmo à noção de bloco de constitucionalidade.
É essencial asseverar que, independentemente da tese admitida a respeito da posição hierárquica das convenções de direitos humanos, se a da constitucionalidade ou a da supralegalidade, tendo em vista a disposição do art. 7º, 7, do Pacto de San José da Costa Rica, não existe mais base legal para a aplicação da prisão civil do depositário infiel.E é nesse sentido que Mello continua o seu voto:
Independentemente da orientação que se venha a adotar, [...] a conclusão será, sempre, uma só: a de que não mais subsiste, em nosso sistema de direito positivo interno, o instrumento da prisão civil nas hipóteses de infidelidade depositária, cuide-se de depósito convencional (voluntário), ou trate-se de depósito necessário.
Diante da opção do Supremo pela inadmissibilidade da modalidade de prisão em debate, desprovida de sentido restou a aplicação da Súmula 619, do STF, que, conforme já disposto,continha a seguinte redação: “A prisão do depositário judicial pode ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, independentemente da propositura de ação de depósito”. Por esse motivo, foi a súmula expressamente revogada quando do julgamento do Habeas Corpus 92.566/SP (02.12.2008), que teve como relator o Ministro Marco Aurélio.
Em contrapartida, em 16 de dezembro de 2009, foi acolhida e aprovada, por unanimidade, a proposta de edição da Súmula Vinculante nº25, que encontra-se em nosso ordenamento jurídico com o seguinte texto: “É ilícita a prisão civil do depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito”.
Interessante mencionar que o Superior Tribunal de Justiça, seguindo os passos da Corte, veio a aprovar em 2010 a Súmula 419, que enuncia: “Descabe a prisão civil do depositário judicial infiel”.
A edição das mencionadas súmulas veio como uma confirmação do entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal após anos de discussão, a confirmação de que os direitos humanos devem prevalecer e de que a liberdade constitui valor fundamental em nosso sistema pátrio.
Por fim, cabe citar ensinamento do professor Luiz Flávio Gomes, em artigo que retrata o tema:
Em síntese: a nova postura jurisprudencial do STF finca suas raízes em novos tempos, em novos horizontes: a era da internacionalização dos direitos humanos já não pode ser (jurassicamente) ignorada. No Estado constitucional e humanista de direito não cabe prisão civil contra o depositário infiel, qualquer que seja esse depositário (judicial ou não). A única prisão civil admitida pelo direito internacional é a relacionada com alimentos. Conclusão: é a única que vale hoje no direito interno brasileiro (ou seja: a única que ainda faz parte do direito “vivente”).
De tudo o que foi dito, é possível constatar que embora o texto constitucional encontre-se intacto, prevendo as exceções da prisão civil do devedor alimentício e do depositário infiel, não mais se admite em nosso país esta última modalidade. É que se vive numa época em que a proteção aos direitos humanos se mostra essencial, em que os Estados encontram-se voltados para a comunidade internacional, devendo obediência àquilo que com ela foi acordado.
A Constituição Federal não pode se manifestar como um documento estático, morto, que fica para trás enquanto a realidade, a consciência e os costumes, seguem adiante. Trata-se, em verdade, de um organismo vivo, que torna necessárias mudanças que visem adaptá-la às novas realidades e aspirações da sociedade.
Para que haja as devidas mudanças na Constituição, contudo, não necessariamente deve haver alterações em seu texto escrito. Ao lado dos tipos formais de reforma constitucional, quais sejam a revisão e as emendas constitucionais, existe também a possibilidade de mudança informal.
Neste caso, presencia-se a alteração de sentido da norma constitucional, do modo de interpretá-la, sem que isso implique alteração em seu texto; trata-se do fenômeno da mutação constitucional, vislumbrada, em especial e no caso em estudo, no seio da atividade judicial, atribuindo os juízes e Tribunais novos sentidos ao texto constitucional quando de sua aplicação aos casos concretos.
Bulos (1997, p. 57) entende que a mutação constitucional é:
[...] o processo informal de mudança da Constituição, por meio do qual são atribuídos novos sentidos, conteúdos até então não ressaltados à letra da Lex Legum, quer através da interpretação, em suas diversas modalidades e métodos, quer por intermédio da construção (construction), bem como dos usos e costumes constitucionais.
O mesmo autor, em sua brilhante obra “Mutação Constitucional”, cita o mestre Canotilho, que entende ser a mutação constitucional uma "revisão informal do compromisso político formalmente plasmado na Constituição sem alteração do texto constitucional. Em termos incisivos: muda o sentido sem mudar o texto" (BULOS, 1997, p. 57).
Também intentando oferecer noções acerca do instituto, Lenza (2009, p. 90) acredita que as mutações constitucionais:
[...] exteriorizam o caráter dinâmico e de prospecção das normas jurídicas, através de processos informais. Informais no sentido de não serem previstos dentre aquelas mudanças formalmente estabelecidas no texto constitucional.
Ao exercerem essa alteração informal na Constituição, os juízes e Tribunais dão nova vida ao seu conteúdo, tornando-a documento condizente com os novos contextos em que a sociedade se insere.
Sem que haja qualquer adaptação, a Constituição finda por não exercer qualquer forma de concretização no meio social, não passando de uma mera folha de papel (LASSALE, 1998, p. 21)
Importante asseverar que o fenômeno da mutação constitucional não quer significar que houve erro quando da interpretação da Constituição em julgamentos passados. Não se está diante de uma correção interpretativa, mas de uma adaptação. Valores que eram admitidos em contextos sociais anteriores já não o são mais, tornando-se necessária essa nova atribuição de sentido ao texto constitucional. Sobre isso afirma o Ministro Gilmar Mendes, em voto proferido no Recurso Extraordinário 466.343-1 (22.11.2006):
A afirmação da mutação constitucional não implica o reconhecimento, por parte da Corte, de erro ou equívoco interpretativo do texto constitucional em julgados pretéritos. Ela reconhece e reafirma, ao contrário, a necessidade da contínua e paulatina adaptação dos sentidos possíveis da letra da Constituição aos câmbios observados numa sociedade que, como a atual, está marcada pela complexidade e pelo pluralismo.
Especificamente na questão do depositário infiel, interessante o apontamento feito pelo Ministro Celso de Mello, em voto proferido no Habeas Corpus 91.361/SP (23.09.2008):
O alcance das exceções constitucionais à cláusula geral que veda, em nosso sistema jurídico, a prisão por dívida pode sofrer mutações, quer resultantes da atividade desenvolvida pelo próprio legislador comum, quer emanadas de formulações em sede de convenções ou tratados internacionais, quer, ainda, ditadas por juízes e Tribunais, no processo de interpretação da Constituição e de todo o complexo normativo nela fundado. Isso significa que a interpretação judicial [...] desempenha um papel de fundamental importância, não só na revelação do sentido das regras normativas, mas sobretudo na adequação da própria Constituição às novas exigências, necessidades e transformações decorrentes dos processos sociais, econômicos e políticos que caracterizam a sociedade contemporânea.
Fez-se necessária uma mudança de sentido em relação à previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel, uma vez que esse tipo de prisão não correspondia mais aos anseios de uma sociedade cada vez mais preocupada como ser humano e com a obediência aos tratados internacionais firmados.
A prisão civil do depositário infiel não mais se compatibiliza com os valores supremos assegurados pelo Estado Constitucional, que não está mais voltado apenas para si mesmo, mas compartilha com as demais entidades soberanas, em contextos internacionais e supranacionais, o dever de efetiva proteção dos direitos humanos (RE. 466.343-1, julg. 22.11.2006).
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[1] “[...] se um credor se queixasse por não ter recebido uma soma emprestada e retida pelo devedor, era este obrigado a pagá-la ao mesmo credor, se este provasse seu crédito. Poderia, então, o credor usar dos meios admitidos, na prática, para forçar seu recebimento, fosse por meios morais, processuais, astuciosos, embaraçosos ou, mesmo, violentos”. (AZEVEDO, 2012, p. 4)
[2] Dentre os seus elementos, pode-se mencionar: a) os sujeitos depositante (deponens) e depositário (depositarius); b) a entrega de objeto móvel, em que bastava a possessio naturalis; c) a finalidade de guarda gratuita; d) a concordância pela devolução da coisa quando solicitada (AZEVEDO, 2012, p. 55)
[3] “Até então, as Constituições anteriores à de 1988, ao estabelecer tratamento jurídico às relações internacionais, limitavam-se a assegurar os valores da independência e soberania do País – tema básico da Constituição imperial de 1824 – ou se restringiam a proibir a guerra de conquista e a estimular a arbitragem internacional – Constituições republicanas de 1891 e de 1934 -, ou se atinham a prever a possibilidade de aquisição de território, de acordo com o direito internacional público – Constituição de 1937 -, ou por fim, reduziam-se a propor a adoção de meios pacíficos para a solução de conflitos – Constituições de 1946 e 1967” (PIOVESAN, 2008, p. 38).
[4]Quanto a esse posicionamento, Philadelpho Azevedo, então Ministro da Excelsa Corte, publicou, em 1945, comentário no qual demonstrava a convicção unânime da Corte, àquela época, quanto à prevalência dos tratados internacionais sobre o direito interno infraconstitucional (MAZZUOLI, 2001, p.131).
[5]São eles: Argentina, Barbados, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Dominica, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Suriname, Uruguai, Trinidad & Tobago e Venezuela, tendo os dois últimos apresentado denúncia (Disponível em: http://www.oas.org).
advogada, Pós-graduanda em Direito Penal e Processual Penal, professora no Curso Almanaque Direito.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, Gabriela Fernandes Correia. A prisão civil no pacto de San José da Costa Rica e sua influência na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 maio 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46583/a-prisao-civil-no-pacto-de-san-jose-da-costa-rica-e-sua-influencia-na-jurisprudencia-do-supremo-tribunal-federal. Acesso em: 23 dez 2024.
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