Resumo: A complexidade da questão agrária brasileira demanda atenção especial do operador do Direito. A política agrícola nacional tem por objetivo garantir ao produtor rural meios para desenvolver a atividade agropecuária, de modo a alcançar o seu sustento e de sua família e, em última análise, o desenvolvimento social e econômico do país. Tratar dos aspectos de maior relevância em relação à política agrícola brasileira será o objetivo do presente estudo.
Palavras-Chave: Política Agrícola Nacional. Reforma Agrária. Crédito Rural.
Sumário: 1. Introdução; 2. Processo histórico; 3.Reforma Agrária e Política Agrária Nacional; 4. Política Agrícola no Brasil; 4.1. Crédito Rural; 5. Conclusão; 6. Referências bibliográficas.
1. Introdução
Da política agrícola nacional dependem os produtores rurais, em especial os pequenos e médios, mas não apenas eles. Na realidade, a adoção de mecanismos e instrumentos capazes de permitir o adequado uso do solo, incentivando o desenvolvimento do país, trata-se de medida que traz enorme benefício à sociedade como um todo.
Nesse sentido, a presente dissertação tem por objetivo traçar os contornos gerais da política agrícola brasileira, passando, inicialmente, pelos acontecimentos históricos por sobre os quais ela foi erigida. Em seguida, buscou-se estabelecer um paralelo entre a política agrícola e a reforma agrária, visto que não há possibilidade de pensar tais institutos de maneira isolada.
Ao final, foram dedicadas algumas linhas ao tratamento do crédito rural, instrumento de maior evidência na concretização de uma política de desenvolvimento rural, do qual decorre quase a totalidade das demais medidas disciplinadas pelo ordenamento jurídico.
Por óbvio, o quadro aqui delineado não esgota o tema atinente à política agrícola, mas prende-se às questões de maior pertinência, garantindo ao leitor uma boa visão sobre o tema, consoante se verá a seguir.
2. Desenvolvimento
2.1. Processo histórico
Como é sabido, não se pode conceber um Direito descolado da realidade. Trata-se de um fenômeno eminentemente histórico, resultado do meio e das condições específicas de uma determinada época. Nesse sentido, não há como discorrer acerca da Política Agrícola nacional sem, antes, dispensar algumas considerações em relação ao contexto sobre o qual fora estruturado o Direito Agrário brasileiro.
Pois bem.
A questão fundiária no Brasil remonta ao ano de 1594, quando, de um lado, D. João (rei de Portugal) e, de outro, D. Fernando (rei da Espanha), assinaram o famigerado Tratado de Tordesilhas, definido, de acordo com Benedito Ferreira Marques, nos seguintes termos:
(...) as terras eventualmente descobertas no mundo passariam ao domínio de que as descobrisse, conforme estipulação seguinte: traçada uma linha imaginária do Pólo Antártico, distante 370 léguas das Ilhas de Cabo Verde, em direção ao Poente, as terras que fossem encontradas à direita daquela linha imaginária seriam de Portugal, enquanto as à esquerda seriam da Espanha.[1]
Delimitado o território brasileiro, a coroa portuguesa cuidou de ocupá-lo. Tal incumbência foi atribuída a Martin Afonso de Sousa (1531), colonizador responsável pela instituição do regime sesmarial de distribuição das terras recém descobertas, a quem coube o fatiamento de grandes parcelas do território entre a nobreza portuguesa. Daí, portanto, decorre a gênese do processo de latifundiarização, ensejador de incalculáveis controvérsias até os dias atuais.[2] Embora não tenha alcançado seus objetivos de colonização, o regime das sesmarias durou até o ano de 1822, poucos meses antes da declaração da independência brasileira.
Extintas as sesmarias, o Brasil permaneceu por 28 anos órfão de qualquer instrumento normativo que cuidasse da questão agrária. Somente em 1850, já no período imperial, é que foi editada a Lei n. 601, apelidada simplesmente de “Lei de Terras”, considerada um marco histórico no contexto legislativo agrário brasileiro.
Nas palavras de Benedito Ferreira Marques, o diploma em comento teve como objetivos:
(1) proibir a investidura de qualquer súdito, ou estrangeiro, no domínio de terras devolutas, excetuando-se os casos de compra e venda; (2) outorgar títulos de domínio aos detentores de sesmarias não confirmadas; (3) outorgar títulos de domínio a portadores de quaisquer outros tipos de concessões de terras feitas na forma da lei então vigorante, uma vez comprovado o cumprimento das obrigações assumidas nos respectivos instrumentos; e (4) assegurar a aquisição do domínio de terras devolutas através da legitimação de posse, desde que fosse mansa e pacífica, anterior e até a vigência da Lei.[3]
Como é possível notar, a Lei de Terras buscou reconhecer e trazer para o mundo jurídico situações já consolidadas na prática. Perceba-se, de uma banda, a concessão do domínio àqueles detentores da posse de terras devolutas até a vigência da Lei e, de outra, a determinação de que a partir daquele momento as terras pertencentes à Coroa (devolutas) só passariam ao particular por meio da compra e venda.
Com o advento da proclamação da República, em 1889, viu-se um intenso movimento em direção à institucionalização do Direito Agrário no Brasil, sendo o tema tratado pelos diplomas normativos nacionais de maior importância, a exemplo das Constituições de 1891, 1934, 1946 e 1964, bem como pelo Código Civil de 1916[4]. Tal movimento culminou, em 30 de novembro de 1964, com a edição do Estatuto da Terra (Lei n. 4504/1964), vigente até os dias de hoje e considerado o mais completo instrumento atinente à matéria agrária já editado no ordenamento jurídico brasileiro.
Inegável, ainda, a importância da Constituição de 1988, em cujo teor se encontram consagrados os mais altos valores da nação, tais como a dignidade da pessoa humana e a função social da propriedade, os quais devem funcionar como verdadeiros norteadores para o enfrentamento da questão agrária brasileira.
Portanto, é a partir dos acontecimentos históricos e diplomas normativos acima tratados que deve ser entendida a Política Agrícola brasileira.
2.2. Reforma agrária e Política Agrícola Nacional
A Política Agrícola nacional tem como objetivo precípuo corrigir as distorções decorrentes do longo processo de formação da sociedade brasileira, o qual, de um modo geral, sempre privilegiou a manutenção das terras na mão de alguns poucos, em detrimento de uma maioria extremamente carente e necessitada.
Embora o ramo jusagrarista não esteja restrito ao instituto da reforma agrária, certamente este se trata de uma de seus temas de maior importância.
O modelo agrário adotado no Brasil, iniciado com as sesmarias e perpetuado com a Lei n. 601/1850, desde sempre beneficiou a concentração de terras, legitimando a latifundiarização. O problema permanece, consoante demonstra o ilustre professor Benedito Ferreira Marques, in verbis:
Mesmo com o extraordinário acervo legislativo hoje existente no Brasil, todo ele voltado para a busca de soluções da tormentosa questão agrária, ainda subsistem razões irrefutáveis para a pregação da ambicionada reforma agrária. O clamor dos “sem terra”, hoje organizados em uma entidade reconhecida pelo próprio Governo, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), é a demonstração mais eloquente de que o problema continua existindo e reclamando determinação e coragem dos governantes para enfrentá-lo. (...) ainda perdura o quadro cada vez mais concentrador de grandes extensões de terras improdutivas, propiciando indesejáveis enfrentamentos entre trabalhadores rurais e proprietários, de consequências graves.[5]
O termo “reforma” é bem empregado ante o compromisso com a reformulação da estrutura agrária brasileira. Todavia, a mera distribuição de terras não é suficiente para alcançar os seus objetivos, impondo-se a adoção de medidas outras capazes de permitir o desenvolvimento “pós-reforma”. Nesse momento entra em cena o que se convencionou chamar de “Política Agrícola”, que se trata, na realidade, da postura assumida pelo próprio Governo no sentido de garantir que a melhor distribuição da terra seja seguida pelo adequado desenvolvimento dos indivíduos por ela beneficiados e, por conseguinte, do próprio país.
O instituto da Reforma Agrária é definido expressamente pelo Estatuto da Terra, nos seguintes termos:
Considera-se Reforma Agrária o conjunto de medidas que visem a promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento da produtividade.
Consoante se extrai da leitura do preceptivo acima referido, o conceito de reforma agrária oferecido pelo Estatuto da Terra não delimita de forma específica o seu objeto – se incidente sobre terras públicas ou privadas –, mas apenas refere-se a medidas em abstrato para que seja alcançada uma melhor distribuição da terra, visando à justiça social e o aumento da produtividade.
Discorrendo acerca do conceito de reforma agrária, Nilma de Castro Abe assim ensina:
É, portanto, um conceito aberto, inclusive quanto aos próprios objetivos a serem perseguidos pela reforma agrária: a) a desconcentração de terra para redução das desigualdades sociais; b) o progresso socioeconômico do trabalhador rural; e c) o desenvolvimento econômico nacional. Isso porque, ressalte-se com ênfase, a lei não impôs ao administrador público a implementação simultânea desses objetivos, permitindo o eventual entendimento de que apenas um deles possa ser perseguido sem o outro, e mesmo assim sua consecução ser designada como uma ação de reforma agrária.[6]
Aqui, entra em cena a importância de uma Política Agrícola forte para a consecução dos objetivos perseguidos pela Reforma Agrária, conforme prelecionam Silvia C. B. Opitz e Oswaldo Opitz:
Uma reforma agrária sem medidas de política agrária é quase impossível num país em desenvolvimento, porque não basta distribuir a terra, mister se faz que o Estado dê as condições econômicas e financeiras aos colonos para garantir-lhes o pleno emprego e o aumento da produtividade.[7]
A própria Constituição de 1988 reconhece a correlação entre a Reforma Agrária e a Política Agrícola, determinando em seu artigo 187, § 2º, que as ações nestas áreas ocorram de modo compatibilizado. Como se nota, os institutos consubstanciam faces de um mesmo objetivo, qual seja, fazer da questão fundiária um instrumento para a realização da justiça social, oportunizando aos cidadãos que por meio de suas relações com a terra contribuam para o desenvolvimento econômico e social do país.
2.3. Política Agrícola no Brasil
Assim como no caso da Reforma Agrária, também o conceito de Política Agrícola é verificado na legislação brasileira, inclusive no mesmo Estatuto da Terra, que em seu artigo 1º, §2º, dispõe:
Entende-se por Política Agrícola o conjunto de providência de amparo à propriedade da terra, que se destinem a orientar, no interesse na economia rural, as atividades agropecuárias, seja no sentido de garantir-lhes o pleno emprego, seja no de harmonizá-las com o processo de industrialização do País.
Portanto, a sua definição pelo ordenamento nacional não é nova, estando cristalizada desde o ano de 1964, quando editado o referido Estatuto.
Embora o termo “Política de Desenvolvimento Rural” também possa ser usado para se referir ao tempo, porquanto esta é a denominação utilizada pelo artigo 73 do Estatuto da Terra, a expressão “Política Agrícola” foi consagrada pela Constituição Brasileira de 1988, refletindo-se nos diplomas posteriores a ela. Todavia, independentemente do termo ou denominação, importa saber em que consiste esta política e quais os objetivos buscados por ela.
É possível afirmar que a base da política agrícola engloba um conjunto de ações votadas ao planejamento, o financiamento e o seguro da produção agrária. Nesse sentido, dada a sua importância, deverá ser construída tendo como pressuposto o fato de que a atividade agrícola está subordinada às normas e princípios de interesse público, sendo o cumprimento da função social e econômica da propriedade o objetivo a ser alcançado.
De acordo com Benedito Ferreira Marques, a política agrícola é:
Atribuição do Poder Público, ao qual compete planejar o futuro, no setor agropecuário, informando o que plantar e onde plantar, e quando deve ser colhido, para os mercados interno e externo, propiciando ao produtor o crédito suficiente e oportuno, minimizando-lhe os custos da produção e oferecendo-lhe condições para comercialização satisfatórias dos produtos, mediante uma infraestrutura eficiente de transporte e armazenagem, além de uma política de preços mínimos compatíveis com o mercado.
Trata-se, portanto, de uma postura a ser assumida pela Administração, com vistas a fornecer ao produtor rural o amparo necessário ao desenvolvimento de suas atividades, bem como as decorrentes destas (beneficiamento, armazenamento, transporte etc).
Entretanto, o tratamento conferido pela legislação nacional à política agrícola não está restrito ao plano das ideias, havendo objetivos e instrumentos muito bem delimitados para que seja colocada em prática.
De acordo com o artigo 187 da Constituição de 1988, a definição de uma política agrícola nacional deve ter por base, especialmente, a criação de instrumentos creditícios e fiscais que beneficiem o produtor, preços compatíveis com os custos de produção e a garantia de comercialização, seguro agrícola, incentivos à pesquisa, à assistência técnica, o ao cooperativismo, entre outros.
Já o artigo 73 do Estatuto da Terra reforça as diretrizes acima elencadas, prescrevendo, ainda, que todo o incentivo à produção agropecuária atenda não só ao consumo nacional, mas que seja possível também a obtenção de excedentes exportáveis.
Ainda no que diz respeito à Constituição, esta trouxe em seu texto, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) – artigo 50, a previsão de que fosse promulgada uma lei que dispusesse “sobre os objetivos e instrumentos de política agrícola, prioridades, planejamento de safras, comercialização, abastecimento interno, mercado externo e instituição de crédito fundiário”.
De fato, em 17 de janeiro de 1991, a lei preconizada pela Carta Maior foi editada sob o nº 8.171, conferindo eficácia plena à norma insculpida no artigo 187 da CF. De acordo com a redação de seu artigo 1º, o referido diploma tem por objetivo definir os objetivos e as competências institucionais, além de prever os recursos e estabelecer as ações e instrumentos da política agrícola.
Em seu artigo 4º, a Lei nº 8.171, apelidada pela doutrina em geral de “Lei de Política Agrícola” define objetivamente as ações e instrumentos para a implementação das políticas ligadas ao desenvolvimento rural, os quais se encontram em consonância com os preceitos contidos na legislação agrarista, especialmente na Constituição Federal e no Estatuto da Terra.
Ao longo seus 19 incisos, o preceptivo em comento (artigo 4º) descreve tais ações e instrumentos, nos seguintes termos:
I - planejamento agrícola;
II - pesquisa agrícola tecnológica;
III - assistência técnica e extensão rural;
IV - proteção do meio ambiente, conservação e recuperação dos recursos naturais;
V - defesa da agropecuária;
VI - informação agrícola;
VII - produção, comercialização, abastecimento e armazenagem;
VIII - associativismo e cooperativismo;
IX - formação profissional e educação rural;
X - investimentos públicos e privados;
XI - crédito rural;
XII - garantia da atividade agropecuária;
XIII - seguro agrícola;
XIV - tributação e incentivos fiscais;
XV - irrigação e drenagem;
XVI - habitação rural;
XVII - eletrificação rural;
XVIII - mecanização agrícola;
XIX - crédito fundiário.
Como se nota, o campo de atuação da política agrícola é acentuadamente amplo, dispondo o gestor público de uma vasta gama de instrumento de que pode se valer para alcançar os fins consagrados pela Lei em seu artigo 3º.
A título de arremate, importa lançar mão mais uma vez do magistério de Benedito Ferreira Marques, que assim afirma:
(...) certo é que o ordenamento jurídico agrário brasileiro oferece instrumental bastante para a adoção de uma boa política agrária, capaz de promover o desenvolvimento do país, além de propiciar o progresso social e econômico do produtor, quiçá tornando realidade o preceito contido no art. 85, § 1º, do ET, que lhe prevê lucro mínimo de 30% em sua atividade produtiva!
A partir do que foi dito neste tópico chega-se à conclusão de que a mera distribuição da terra não é suficiente para resolver o secular problema agrário brasileiro. Nesse momento é que entra em cena uma política agrícola bem estruturada, capaz de fazer com que a terra seja bem utilizada, garantindo assim o sustento e a preservação da vida, portanto.
Elencados os instrumentos com os quais se pretende colocar em prática uma política de desenvolvimento rural efetiva, optou-se, na presente dissertação, por adentrar à análise do crédito rural, haja vista ser ele o que conta com maior destaque no meio jusagrarista, permitindo a ocorrência de praticamente todos os demais.
2.3.1. Crédito Rural
Não é exagero dizer que o crédito rural representa o centro a partir do qual, direta ou indiretamente, decorrem praticamente todos os demais instrumentos de política agrícola definidos em lei.
De fato, é impossível se falar em planejamento agrícola, pesquisa agrícola tecnológica, conservação e recuperação dos recursos naturais, formação profissional e educação rural, seguro agrícola, tributação e incentivos fiscais, irrigação e drenagem, habitação rural, eletrificação rural e mecanização agrícola, sem, primeiramente, enfrentar a questão concernente ao modo pelo qual serão obtidos os recursos suficientes a permitir a concretização de tais medidas.
A concessão de crédito ao produtor rural brasileiro remonta ao ano de 1937, quando por meio da Lei n. 454 foi atribuída ao Banco do Brasil a incumbência de prestar assistência financeira à agricultura, mediante condições a serem estabelecidas em regulamento elaborado por aquela instituição financeira, sob a aprovação do Ministério da Fazenda. A partir de então surgiu a “Carteira de Crédito Agrícola e Industrial”, ou simplesmente “CREAI”, nome pelo qual ficou conhecido.[8]
Após a sua criação, o CREAI passou a ser o órgão central do Governo Federal para a implementação da política de crédito rural, o que se deve ao fato de, já naquele tempo, possuir agências espalhadas por todo o Brasil, facilitando o acesso dos pequenos e médios produtores.
Acumulados anos seguidos de experiência pelo Governo, a doutrina é praticamente unânime em afirmar que a institucionalização do crédito rural no país se deu por meio da Lei nº 4.829/1965, editada como resultado da previsão expressa contida no artigo 73, VI, do Estatuto da Terra, que elencava entre as diretrizes da política de desenvolvimento rural a assistência financeira e creditícia ao produtor.
De acordo com o artigo 2º da Lei nº 4.829/1965:
Considera-se crédito rural o suprimento de recursos financeiros por entidades públicas e estabelecimentos de crédito particulares a produtores rurais ou a suas cooperativas para aplicação exclusiva em atividades que se enquadrem nos objetivos indicados na legislação em vigor.
Como deixa entrever o excerto acima colacionado, o crédito rural, inicialmente, tinha como beneficiários os produtores rurais e suas cooperativas. Mais tarde, entretanto, com o advento do Decreto Lei nº 784/1969, este instrumento foi estendido outras atividades de grande importância à atividade agrícola, consoante se infere da redação do seu artigo 3º, in verbis:
Os benefícios previstos para o crédito rural pela Lei nº 4.829, de 5 de novembro de 1965, ficam extensivos às pessoas físicas ou jurídicas que, embora não conceituadas como "produtor rural", se dedicam à pesquisa e à produção de sementes e mudas melhoradas ou à prestação em imóveis rurais, de serviços mecanizados de natureza agrícola, inclusive de proteção do solo.
Definidos os sujeitos contemplados pela Lei nº 4.829/1965, importa agora traçar os objetivos específicos conferidos ao crédito rural, os quais se encontram elencados de maneira expressa no artigo 3º, ao longo dos quatro incisos que o compõem:
I - estimular o incremento ordenado dos investimentos rurais, inclusive para armazenamento, beneficiamento e industrialização dos produtos agropecuários, quando efetuado por cooperativas ou pelo produtor na sua propriedade rural;
II - favorecer o custeio oportuno e adequado da produção e a comercialização de produtos agropecuários;
III - possibilitar o fortalecimento econômico dos produtores rurais, notadamente pequenos e médios;
IV - incentivar a introdução de métodos racionais de produção, visando ao aumento da produtividade e à melhoria do padrão de vida das populações rurais, e à adequada defesa do solo;
Os mesmos objetivos foram reproduzidos, ainda que com pequenas alterações pelo artigo 48 da Lei de Política Agrária (Lei nº 8.171/1991). Além disso, foram adicionados a ele outros dois incisos, que incluíram entre os objetivos do crédito em comento a aquisição e a regularização de terras pelos pequenos produtores, posseiros e trabalhadores rurais, bem como o desenvolvimento de atividades florestais e pesqueiras.
A partir dos objetivos definidos pela legislação, foram estabelecidas as linhas de crédito rural, que, nos dizeres de Benedito Ferreira Marques, são basicamente as seguintes:
Custeio: se destina à cobertura das despesas normais de um ou mais períodos de produção, seja agrícola seja pecuária, compreendendo estas despesas todos os encargos, desde o preparo da terra até o beneficiamento primário da produção e seu armazenamento, bem como a extração de produtos espontâneos, de natureza vegetal, e seu preparo primário e, ainda, aquisição de mudas, sementes, adubos, corretivos do solo e defensivos. Isso, no caso do custeio agrícola. No de custeio pecuário, essas despesas normais compreendem a aquisição de sal, arame, forragens, rações, concentrados minerais, sêmen, hormônios, produtos de uso veterinário, corretivos do solo, defensivos, adubos, sendo certo que o custeio pecuário pode ser também para a piscicultura, apicultura, sericicultura, limpeza e restauração de pastagens, fenação, silagem, formação de capineiras e de outras culturas forrageiras. No campo do beneficiamento, essas despesas normais custeáveis abrangem a mão de obra, a manutenção e a conservação do equipamento, a aquisição de materiais secundários, sacaria, embalagem, segura, preservação, impostos, fretes e carretos;
Investimento: destinado à formação de capital fixo e semifixo, compreendendo, o primeiro, a inversão para a fundação de culturas permanentes, inclusive pastagens, florestamento e reflorestamento, construção, reforma e ampliação de benfeitorias e instalação permanentes, eletrificação rural, obras de irrigação e drenagem; enquanto o segundo – capital semifixo – corresponde à inversão na aquisição de animais de grade, médio e pequeno porte, destinados à criação, recriação, engorda e serviço; na aquisição de máquinas e respectivos implementos, veículos, equipamentos e instalações de desgastes;
Comercialização: se destina a facilitar aos produtores rurais a colocação de seus produtos colhidos, compreendendo até mesmo o armazenamento, o seguro, a manipulação, a preservação, o acondicionamento, os impostos, os fretes a as carretas. Essa linha de crédito é também utilizada na negociação de títulos decorrentes da venda da produção ou mediante operações para garantia de preços mínimos fixados pelo governo federal, nas épocas próprias.[9]
Nos termos do artigo 10 da Lei nº 4.829, é indispensável a verificação da idoneidade do beneficiário, a qual deve vir acompanhada de orçamento de aplicação dos recurso nas atividades específicas, bem como a fiscalização da aplicação destes por parte da instituição financiadora.
Também é necessária a apresentação de garantias para a obtenção do financiamento, sendo livremente pactuadas entre o financiado e o financiador, que devem ajustá-las de acordo com a natureza e o prazo do crédito, podendo ser utilizado para este fim o penhor agrícola, pecuário, mercantil e industrial, o bilhete de mercadoria, a hipoteca, as warrants, a caução ou outros que o Conselho Monetário Nacional admitir, nos termos do disposto no artigo 25 da Lei nº 4.829/1965. Ademais, ainda que não tenha sido expressamente previsto na redação do artigo, admite-se entre as garantias reais a alienação fidejussórias, modalidade que foi regulamentada pelo Decreto-Lei nº 911/1969.
Quanto à forma de liberação, Alberto André Barreto Martins ensina que:
O crédito rural pode ser liberado de uma só vez ou em parcelas, em dinheiro ou em conta de depósito, de acordo com as necessidades do empreendimento, devendo sua utilização obedecer ao cronograma de aquisições e serviços, e pode ser pago também de uma só vez ou em parcelas, segundo os ciclos das explorações financiadas, sendo o prazo e o cronograma de reembolsos estabelecidos em função da capacidade de pagamento do tomador, de forma que os vencimentos coincidam com as épocas normais de obtenção dos rendimentos da atividade assistida.[10]
Na posse dos recursos, o produtor rural deve submeter-se à fiscalização da instituição financeira credora, de modo que a aplicação correta seja garantida.
A esse respeito, oportunas mais uma vez as palavras do procurador do Banco Central Alberto André Barreto Martins, acima referido:
A fiscalização, com relação ao crédito de custeio agrícola, deve ser feita pelo menos uma vez no curso da operação antes da época prevista para liberação da última parcela ou até sessenta dias após a utilização do crédito, no caso de liberação de parcela única; quando se tratar de Empréstimo do Governo Federal (EGF), segundo previsto no Manual de Operações de Preços Mínimos; e nos demais financiamentos, até sessenta dias após cada utilização, para comprovar a realização das obras, serviços ou aquisições, cabendo ao fiscal verificar a correta aplicação dos recursos orçamentários, o desenvolvimento das atividades financiadas e a situação das garantias, se houver.[11]
No que concerne ao instrumento de formalização do crédito rural, a legislação prevê um extenso rol de instrumento, facilitando a sua a aquisição por diversos meios. Nesse sentido, o Decreto-Lei nº 167, de 14 de fevereiro de 1967, ao longo de seus oitenta artigos, cuidou dos títulos por meios dos quais poderia ser firmado o crédito rural. Embora existam outros, a rigor, os chamados títulos de crédito rural hoje se agrupam em três modalidades: cédulas de crédito rural (cédula rural pignoratícia, cédula rural hipotecária, cédula rural pignoratícia e hipotecária e nota de crédito rural), nota promissória rural e duplicata rural.
Além dessas hipóteses, o crédito rural pode ser formalizado por contrato, ante a existência de eventuais peculiaridades da atividade a ser financiada, que pode não se adequar aos títulos supra referidos.
Segundo o magistério de Benedito Ferreira Marques:
Os títulos de crédito rural continuam absorvendo as normas de Direito Cambial (art. 60, Decreto-lei 167/67), mas dispensam o protesto para constituição dos devedores em mora. Além disso, são isentos de responsabilidade cambial os primeiros endossantes e seus respectivos avalistas, nas operações celebradas com notas promissórias rurais e duplicatas rurais, mercê da Lei nº 6.754, de 17.12.79. Também o aval nesses dois títulos é considerado nulo, quando por pessoas físicas, participantes da empresa emitente, ou por pessoas jurídicas.[12]
Superada a questão concernente à formalização do crédito rural, importa, por fim, tratar dos encargos financeiros que acompanham este instrumento de política agrícola, dando ênfase especialmente aos temas sobre os quais pairam controvérsias na doutrina e na jurisprudência.
O artigo 5º do Decreto-Lei nº 167/1967 dispõe o seguinte:
As importâncias fornecidas pelo financiador vencerão juros às taxas que o Conselho Monetário Nacional fixar e serão exigíveis em 30 de junho e 31 de dezembro ou no vencimento das prestações, se assim acordado entre as partes; no vencimento do título e na liquidação, ou por outra forma que vier a ser determinada por aquele Conselho, podendo o financiador, nas datas previstas, capitalizar tais encargos na conta vinculada à operação.
Desta feita, extrai-se do aludido enunciado a previsão expressa no ordenamento brasileiro quanto à cobrança de juros remuneratórios nas operações bancárias atinentes ao crédito rural. Embora seja incontroversa a cobrança de juros, o mesmo não ocorre em relação à sua capitalização. Tal situação decorria da redação da Súmula nº 121 do STF, que, amparada no Decreto nº 22.626/1933 (Lei de Usura), veda a capitalização de juros, ainda que expressamente convencionada.
Entretanto, o debate perdeu força com a edição das Súmulas nº 596 do STF e nº 93 do STJ, assim expressas:
Súmula nº 596/STF: As disposições do Decreto 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições financeiras públicas ou privadas, que integram o sistema financeiro nacional.
Súmula nº 93/STJ: A legislação sobre cédulas de crédito rural, comercial e industrial admite o pacto de capitalização de juros.
Outra controvérsia relativamente solucionada diz respeito à correção monetária incidente sobre as operações de crédito rural. Isso se deve ao fato de que ela não foi prevista pela lei institucionalizadora do instrumento (Lei nº 4.829/1965), havendo os defensores de que a correção não se aplicaria, ante o caráter eminentemente social dessa linha especializada de crédito.
Entretanto, com a edição da Súmula nº 16 do STF compatibilizou-se a correção monetária com o crédito rural, consoante demonstra a sua redação:
A legislação ordinária sobre crédito rural não veda a incidência de correção monetária.
Como se nota, a temática atinente ao crédito rural refoge à proposta do presente artigo, que tem por objetivo dissertar sobre os aspectos jurídicos da política agrícola brasileira, tratando, para isso, de seu instrumento de maior importância, consoante já afirmado nos parágrafos anteriores. Nesse sentido, buscou-se traçar os contornos gerais do instituto, de modo a evidenciar a sua importância e destaque no ordenamento nacional.
3. Conclusão
Não há dúvidas de que à política agrícola são atribuídas as qualidades de um importantíssimo instrumento jurídico da efetividade dos fundamentos e objetivos do Estado Democrático de Direito consagrado por nossa Carta Maior.
Realmente, de nada adiantará garantir ao cidadão o acesso à terra – por meio da reforma agrária, por exemplo – se não colocados à sua disposição meios que lhe permitam o regular desenvolvimento.
Como afirmado nos parágrafos anteriores, a mera distribuição fundiária jamais será suficiente para resolver o secular problema agrário brasileiro, o qual remonta ao próprio descobrimento do país. Nesse momento é que entra em cena uma política agrícola bem estruturada, capaz de fazer com que a terra seja bem utilizada, garantindo assim o sustento e a preservação da vida, portanto.
Apenas assim é que será atendida a função social da propriedade, nos termos preconizados pelo texto constitucional.
4. Referências Bibliográficas
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BURNIER, Augusto. História do Direito Agrário. Disponível em: < http://augustoburnier.blogspot.com.br/2010/06/historia-do-direito-agrario_21.html>. Acesso em: 02.09.2012.
MARQUES, Benedito Ferreira. Direito Agrário Brasileiro. São Paulo: Atlas, 2011.
MARTINS, Alberto André Barreto. Crédito rural – Evolução histórica, aspectos jurídicos e papel do conselho monetário nacional e do banco central do Brasil. Disponível em: < http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7156> Acesso em: 02.09.2012
OPITZ, Oswaldo; OPITZ, Silvia Carlinda Barsosa. Curso Completo de Direito Agrário. São Paulo: Saraiva, 2010.
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[1] Direito Agrário Brasileiro. São Paulo: Atlas, 2011. p. 21.
[2] ANGELO,Vitor Amorim de. Lei de Terras. Disponível em: <http://educacao.uol.com.br/historia-brasil/lei-de-terras.jhtm>. Acesso em: 02.09.2012.
[3] Idem, p. 25.
[4] BURNIER, Augusto. História do Direito Agrário. Disponível em: < http://augustoburnier.blogspot.com.br/2010/06/historia-do-direito-agrario_21.html>. Acesso em: 02.09.2012.
[5] Idem, p. 129.
[6] Reforma Agrária em Terras Públicas. in Revista de Direito Constitucional e Internacional. Vol. 40. Jul/2002. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 282.
[7] Curso Completo de Direito Agrário. Leme: CL EDIJUR, 2016. p. 258.
[8] MARQUES, Benedito Ferreira.Direito Agrário Brasileiro. São Paulo: Atlas, 2011. p. 153.
[9] Direito Agrário Brasileiro. São Paulo: Atlas, 2011. p. 155.
[10] Crédito rural – Evolução histórica, aspectos jurídicos e papel do conselho monetário nacional e do Banco Central do Brasil. Disponível em: < http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7156 >. Acesso em: 05.10.2012
[11] Idem
[12] Direito Agrário Brasileiro. São Paulo: Atlas, 2011. p. 158.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, Hugo Fellipe Martins de. Aspectos jurídicos da política agrícola brasileira Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 maio 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46738/aspectos-juridicos-da-politica-agricola-brasileira. Acesso em: 23 dez 2024.
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