RESUMO: O Estado brasileiro tem o direito de tributar grandes fortunas, é o que dispõe o artigo 153, VII da Constituição Federal. O imposto, no Estado – providência, serve para limitar o poder econômico e financiar políticas públicas de redução de desigualdades na sociedade, que é um dos fundamentos de nossa República. O objetivo deste artigo é fazer breves considerações acerca da tributação sobre grandes fortunas dentro de um escopo constitucional na sociedade de mercado do século XXI.
PALAVRAS-CHAVE: Direito Constitucional; Imposto sobre grandes fortunas; Estado de bem-estar social.
ABSTRACT: The Brazilian state has the right to tax large fortunes, is what to article 153, VII of the Federal Constitution. The tax in the State - providence, serves to limit the economic power and public finance policies inequalities reduction in society, which is one of the foundations of our Republic. The purpose of this article is to make brief comments on the taxation on large fortunes within a constitutional scope in the market society of XXI century.
KEYWORDS: Constitutional Law; Wealth tax; Welfare State.
SUMÁRIO: Introdução; 1 considerações iniciais acerca do conceito e propósito do imposto; 1.1 Tributo e imposto; 1.2 Estado e o tributo: breves considerações sobre a evolução do imposto no Estado liberal e no Estado providência; 2 Imposto sobre grandes fortunas (IGF), a Constituição de 1988 e as experiências internacionais; 2.1 O que se entende por “grandes fortunas”?; 2.2 Lei complementar: conceito e propósito; 2.3 A ideologia da Constituição cidadã; 3. Justiça social sobre a égide do IGF; 3.1 A antítese neoliberal e a falácia da “fuga do capital estrangeiro”; Conclusão.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Desde a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 que, em seu bojo, autoriza o Estado brasileiro a tributar grandes fortunas, o tema se tornou motivo de debate nos âmbitos econômicos, políticos e jurídicos. Dentre as prováveis benfeitorias, alegadas pelos intelectuais de cunho socialista ou intervencionista e os possíveis danos econômicos que tal tributação traria para o mercado brasileiro, defendida pelos liberais e neoliberais, o imposto sobre grandes fortunas ganha grande notoriedade em tempos de crise e de eleição. Alguns países do mundo, como a França e a Holanda, obtiveram sucesso em tal tributação, outros, no entanto, não a possuem explicitamente, mas tributam os mais ricos para fazer distribuição de riquezas e justiça social, como é o caso dos Estados Unidos da América, símbolo para a doutrina neoliberal.
Recentemente, um grupo de milionários nova iorquinos (EUA) fizeram um pedido formal ao governador do Estado, para que ele aumente os tributos para fortunas superiores 2 milhões de dólares americanos, o chamado “1% plan for fairness”.[1] Interessante notar que alguns “magnatas Yankees” defendem a ideia de redistribuição de riquezas pelo aumento do imposto para os mais ricos, como o fundador da Microsoft, Bill Gates. No Brasil, após a promulgação da Constituição, alguns projetos de lei complementar foram propostos no congresso nacional para regular tal imposto, mas sem êxito.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS ACERCA DO CONCEITO E PROPÓSITO DO IMPOSTO
Todo tributo é imposto, visto que são obrigatórios. Imposto é uma espécie de tributo, juntamente com a taxa, a contribuição de melhoria e as contribuições sociais, como bem especifica a Constituição da República, em seu artigo 145.
O Código Tributário Nacional, no caput do artigo 3°, nos traz uma definição de tributo:
“Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada. ”
O imposto, portanto, é uma espécie do tributo, cuja origem é do termo latino imponere, significando “impor” ou “fazer”, tem como finalidade (contemporaneamente) de, não só a sobrevivência do Estado, como também no sentido de desenvolvimento econômico e mecanismo de distribuição de riquezas, como bem salienta Bernardo Ribeiro de Moraes (pag. XX)
Segundo Maria Helena Diniz (pag. 851)[2], imposto é um tributo cobrado pela autoridade e destinado a atender as despesas alusivas às necessidades gerais da administração pública, sem, todavia, assegurar ao contribuinte, qualquer vantagem direta em contraprestação ao seu pagamento.
No moderno Direito Tributário, o imposto continua (ainda) com a conotação de imposição do poder Estatal, mas com uma concepção de realizar o bem comum. Nesta ordem, o imposto é requisito intrínseco para o funcionamento da República, cuja sua obrigação se finda, dentre outras, na erradicação da marginalização e da miséria, conforme estabelece o Artigo 3°, parágrafo III da Constituição Federal, fortalecendo a ideia da dicotomia “Imposto e diminuição da miséria e o progresso da sociedade”.
Nesta ordem, Roque Antônio Carrazza afirma que, a ciência das finanças destaca que os impostos são os tributos economicamente mais importantes.[3]
1.1 O ESTADO E O TRIBUTO: BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A EVOLUÇÃO DO IMPOSTO NO ESTADO LIBERAL E NO ESTADO PROVIDÊNCIA
“O Estado, em sua origem, é sempre uma sociedade natural. A causa originária da sociedade política está na natureza humana racional dos indivíduos que a constituem. Esta causa natural é uma tendência ou inclinação
Instintiva, porém insuficiente para, por si mesmo, coagir os homens a constituírem uma sociedade. É necessário que está inclinação instintiva atue pela ação e está – embora instintiva – depende da vontade dos homens, pois estes são animais sociais racionais. A natureza leva os homens a criarem a sociedade política, mas é a vontade dos homens que realiza esta criação”. (DABLIN, J. apud BECKER. Pag. 155). [4]
A própria História, a única ciência na visão de Karl Marx, confunde-se ao tentar diferenciar o surgimento do tributo com o da sociedade politicamente organizada. Originalmente, os tributos não tinham caráter permanente, mas apenas para custear determinadas ações da sociedade, como nas Guerras, como bem salienta Regina Helena Costa (2014, pag. 29.). [5]
O tributo, antes de tudo, serve para custear os gastos da máquina pública que, constitucionalmente, tem, dentre várias obrigações, a de erradicar a pobreza e a marginalização, criando, assim, uma sociedade mais igualitária, justa e fraterna.
Durante a vigência da doutrina liberal (Laissez – faire), o Estado limitava-se a garantir os direitos fundamentais defendidos por tal ideologia, a vida, as liberdades individuais, a segurança e a propriedade privada, sendo impedido, tanto legalmente, como politicamente, de interferir na economia, pelo argumento que o “free market” conseguiria regular-se.
Na transição para o welfare-state (Estado de Bem-Estar Social), a tributação aumentaria significativamente, com o propósito de garantir direitos de ordem social e econômica, redistribuição de riquezas e, de certa forma, uma limitação ao poder econômico.
“O Estado do bem-estar (welfare state) ou Estado assistencial, pode ser definido, à primeira análise, como Estado que garante ‘tipos mínimos de renda, alimentação, saúde, habitação, educação, assegurados a todo cidadão, não como caridade, mas como direito político” (WILESNKY apud BOBBIO, MATTEUCCI, PASQUINO. Pag, 416, 1991). [6]
A partir dos anos 1930 (período de grande instabilidade econômica proveniente, principalmente, pela crise de 1929), cresce a influência do poder Estatal, no qual este começaria a organizar a economia, trazendo para si, a responsabilidade da promoção e defesa social. Os países europeus foram os primeiros a aderirem tal ideologia, incorporado, principalmente, pelos partidos sociais – democratas.
O intervencionismo keynesiano, foi um grande marco teórico para tal pensamento político não só nos Estados Unidos, como no mundo. Não negava o livre mercado ou o capitalismo, apenas defendia a ideia de o Estado garantir condições e proteções às classes menos favorecidas e ao proletariado. Seria a “mão invisível do Estado” corrigindo as imperfeições e desigualdades inerentes à uma economia de mercado.
As constituições do século XX possuem, em regra, forte apelo pela intervenção do Estado na sociedade e na economia, são as chamadas “Constituições Dirigentes” ou “Programáticas”, sendo a Constituição Brasileira de 1988, um dos maiores exemplos.
Marcelo Novelino, nesta ordem, dispõe:
“A Constituição programática (diretiva ou dirigente) se caracteriza por conter normas definidoras de tarefas e programas de ação a serem concretizados pelos poderes públicos”. [7]
Bem como Uadi Lammêgo:
“A ideia de constituição dirigente, muito própria dos juristas de inspiração socialista, portanto, diverge daquela visão tradicional de constituição, que a concebe como lei processual ou instrumento de governo, definidora de competências e reguladora de processos”. [8]
As constituições dirigentes possuem, em sua essência, grande bagagem da ideologia marxista – socialista, pois obrigam o Estado a garantir as condições mínimas de existência, como saúde, educação, acesso à justiça e, de certa forma, uma tutela especial à classe dominada. Seria, portanto, uma nova “roupagem” do Estado contemporâneo, no qual limitaria o poder econômico em face ao bem-estar coletivo e a dignidade da pessoa humana, dois dos fundamentos da República brasileira.
1.2 O IMPOSTO SOBRE GRANDES FORTUNAS (IGF), A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E AS EXPERIÊNCIAS INTERNACIONAIS
O imposto sobre grandes fortunas, como o próprio nome diz, seria uma tributação sobre um número exacerbado de patrimônio, assim, não seria aplicado à maior parte da população, mas sim a um número minúsculo de pessoas que detém grandes fortunas em seu patrimônio.
Constitucionalmente, é um direito do Estado criar tal imposto, de acordo com o artigo 153, VII da Constituição da República, no qual estabelece o imposto sobre grandes fortunas, na forma de lei complementar. Todavia, até hoje não fora criado tal imposto, por inúmeros motivos, desde a ideologia conservadora e classista da sociedade brasileira representada no Congresso Nacional, seja pelo “fantasma” da ideologia neoliberal que afirma que tal medida “afugentaria” investidores estrangeiros, tese que iremos confrontar ao decorrer do artigo.
“O imposto sobre grandes fortunas (IGF) foi uma conquista da Assembleia Nacional Constituinte, eis que incluído na Constituição Federal de 1988 após uma série de grandes debates liderados pelo, até então, Deputado Federal Plínio de Arruda Sampaio, sob um forte movimento contrário. ” (PEIXOTO JUNIOR, Valter Peixoto da Silva Júnior, 2015). [9]
O IGF é uma inovação da Constituição de 1988, apoiando a corrente neoconstitucionalista, obrigando o Estado a amenizar as diferenças sociais intrínsecas à um sistema capitalista, em face ao bem-estar do ser humano. Não é novidade dizer que no Brasil existe uma alta concentração de riquezas, tornando-o um dos países mais desiguais do planeta, como aponta um estudo feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).[10]
Infelizmente a classe dominante em terrae brasillis continua a acreditar no velho pensamento liberal de que eles são os criadores da riqueza, não se importando com a distribuição de renda e diminuição de desigualdades que, diretamente, influenciaria (pra melhor) sua produção, de modo que proporcionaria uma sociedade com maior capacitação e estimulo e menor criminalidade.
O PLP 257/2012 fora a mais recente tentativa de institucionalizar o imposto sobre grandes fortunas no Brasil, principalmente defendida pelos parlamentares do partido dos trabalhadores, como Luiz Paulo Teixeira Ferreira (PT/SP), todavia o projeto estagnado desde o ano de sua propositura.
Grande parte dos países que possuem os mais altos IDHs do mundo (índice de desenvolvimento humano), possuem, em suas legislações, o imposto sobre grandes fortunas. No velho continente, podemos citar a Holanda, a França, Noruega (este com o mais alto IDH do mundo), Suíça, etc. Nos Estado Unidos, símbolo para os neoliberais, não existe um imposto exclusivo para grandes fortunas, pois é inconstitucional, mas um imposto sobre herança, que pode chegar a 50%. Vale salientar que uma parte significativa dos bilionários americanos defendem a ideia de uma tributação especifica para grandes patrimônios, como Warren Buffett e Bill Gates. Recentemente, um grupo de milionários americanos fizeram um pedido oficial ao governador de Nova Iorque, para que eleve os impostos dos mais ricos, projeto chamado “1% plan for fairness”.
Segundo o projeto, o imposto subiria a 9.35% para quem ganha entre 2 milhões e 10 milhões de dólares americanos; 9.85% para a faixa entre 10 milhões e 100 milhões e, finalmente, 9.99% para aqueles acima de 100 milhões.
1.4 O QUE SE ENTENDE POR GRANDES FORTUNAS?
Sem dúvida, uma das questões preliminares quando discutimos o IGF é o que é classificado como “grandes fortunas”?
A priori, a fortuna é relativa, podendo ter uma disparidade ao redor do mundo. Defendemos a tese de que a classificação de grande fortuna seja para àquele patrimônio que é totalmente incompatível com a realidade nacional. O PLP n° 277 de 2008, que também tentou tornar tal dispositivo constitucional (IGF) uma realidade, estipulava uma taxa cobrada anualmente à patrimônios acima de 2 milhões de reais.
Ives Gandra Martins, apesar de seu pensamento contrário à criação de tal imposto, atenta a uma questão de hermenêutica:
“O tributo é de difícil cobrança e configuração, mas, no Brasil, pelo próprio texto constitucional, o ‘imposto sobre grandes fortunas’ não pode incidir nem sobre os ricos (‘riqueza’ é menos que ‘fortuna’), nem sobre os milionários (‘fortuna’ é menos que ‘grande fortuna’). Apenas sobre os bilionários - ou seja, os detentores de fortunas grandes - que na economia brasileira são muitos poucos. ” (MARTINS, Ives Gandra. Apud COSTA, Francisco José Santos da. Pag. 3, revista eletrônica jusnavigandi). [11]
Todavia, ousamos discordar do tributarista paulista, pois, ao nosso ver, a Constituição estabeleceu o tempo “grande” para as fortunas que significam o “absurdo”, por conta de seu tamanho. Algo completamente fora da realidade, entretanto, a proposta da PLP n° 277 não está, totalmente de acordo com o dispositivo da Lex mater, visto que 2 milhões de reais, apesar de fora veracidade da maior parte da população brasileira, não configura um patrimônio (tão) exacerbado assim.
“Note-se que a definição de grande fortuna é um tema absolutamente controverso em um país altamente desigual como o Brasil, visto que qualquer patrimônio um pouco superior a média de miserabilidade que vigora em nosso país poderia ser considerada ‘fortuna’ e do mesmo modo integrantes da classe média alta poderia ser considerados como ricos, em comparação com outros compatriotas menos afortunados”. (CANOTILHO, Et al. Pag. 1702, 2014). [12]
2. LEI COMPLEMENTAR: CONCEITO E PROPÓSITO
A Constituição da República, ao autorizar a união a tributar grandes fortunas, exige que seja feita por lei complementar que, em outras palavras, é um tipo especial de ato normativo legislativo que tem por objetivo complementar algum dispositivo constitucional, como a criação de novos Estados – membros e o IGF.
A matéria da lei complementar é diferente da lei ordinária, visto que é necessária a taxatividade de sua exigência. Far-se-á por lei complementar quando a Carta Política exigir e por lei ordinária quando for omissa.
Outra diferença entre a lei complementar e a lei ordinária é no que tange o quórum. Segundo o artigo 69 da CRFB, para aprovar uma lei complementar deverá ter maioria absoluta, enquanto a lei ordinária precisa de uma maioria simples, de acordo com o artigo 47 da CF/88.
A doutrina jurídica diverge sobre uma possível hierarquia entre os dois tipos de atos normativos. Há aqueles, como Manoel Gonçalves Ferreira Filho[13], que defendem uma hierarquia superior da lei complementar, visto a necessidade de maioria absoluta para sua aprovação, bem como a intrínseca exigência constitucional.
2.1 A IDEOLOGIA DA CONSTITUIÇÃO CIDADÃ
É notório, como já dito, que a Constituição de 1988 tem uma forte influência marxista no âmbito político e o intervencionismo do welfate state na ordem econômica. Mesmo sendo um pais capitalista, segundo o caput artigo 170, a República tem, como obrigação, interferir no mercado para amenizar o contaste de diferenças sociais.
O próprio preâmbulo da constituição que, apesar de não possuir força normativa (segundo o Supremo Tribunal Federal), expressa o “espírito” e os princípios da constituição, dentre eles: o exercício dos direitos sociais, o Bem-Estar e a igualdade.
O documento da justiça social, nas palavras do presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimaraes, em seu discurso de promulgação da referida Carta em outubro de 1988, possui um perfil ideológico tão marcante, que na disciplina da Ordem Econômica, estabelece, como já dito, uma economia de mercado, mas também exige, do Estado, a defesa do consumidor, a função social da propriedade, a proteção do meio-ambiente, a redução das desigualdades e o tratamento especial para as empresas de pequeno porte. A constituição quase que despreza, completamente, a ideologia neoliberal e do mercado anárquico.
“É importante notar que, em relação a esses direitos, em primazia, são situados os direitos sociais. Com efeito, o homem do nosso tempo não é um ser abstrato, como o imaginou a burguesia na Revolução Francesa. O homem de hoje requer educação, saúde, trabalho. Está aqui o objetivo supremo, a inspiração normativa do decidido intervencionismo estatal, a fim de que o poder cumpra seus deveres para com a sociedade e, assim, seja possível a plena realização dos direitos e liberdades. ” (ARAÚJO, 1999, pag. 6. Revista de informação legislativa). [14]
Em teoria da constituição, dentre tantas classificações possíveis, existe aquela que, justamente, tenta enquadrar o texto constitucional em parâmetros científicos da ideologia.
Elas podem ser dividias em dois grupos: Ortodoxa, que é formada por uma só ideologia, como as constituições da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (1924, 1936, 1977). Ou ecléticas, como a nossa atual Lex Mater de 1988, na qual, mesmo estabelecendo a economia de mercado como modo de produção, também defende a intervenção estatal, o bem – coletivo e uma forte carga de princípios socialistas.
2.2 JUSTIÇA SOCIAL SOBRE A ÉGIDE DO IGF
Nas palavras de Maria Helena Diniz (2008, pag. 44):
“É aquela em que as partes da sociedade, isto é, governantes e governados, indivíduos e grupos sociais, dão à comunidade o bem que lhe é devido, observando uma igualdade proporcional. Os membros da coletividade dão a esta sua contribuição para o bem comum, que é o fim da sociedade e da lei, proporcionalmente à função e responsabilidade na vida social. ”
Justiça social é intrinsecamente ligada ao Estado de bem-estar social, visto que é errôneo acreditar que o progresso de uma sociedade está ligado, exclusivamente, ao desenvolvimento econômico. Todavia, importante salientar que a justiça social se diferencia da função jurisdicional tradicional, que nos remete a figura de um juiz togada e sua imparcialidade ou à deusa romana justitia, erguendo sua balança e espada, a justiça social tem uma proposta de reformular o judiciário e o pensamento jurídico indo, até, na mudança de paradigma do Estado e do pensamento coletivo, em face à erradicação (ou, pelo menos, na diminuição) da desigualdade social utilizando de políticas públicas para seu feito. Tem grande influência do filósofo e teólogo do século XIII, Tomás de Aquino, cujo pensamento, em linhas gerais, a justiça é uma das quatro virtudes cardiais que significa a vontade de dar, a cada homem, aquilo que é seu. Aquino acredita em ser humano aristotélico, isto é, um animal social e político, desprezando, outrossim, a justiça individualista. Não podemos, portanto, utilizar o pensamento do provérbio latino Fiat iustitia et pereat mundus , que significa “Faça a justiça mesmo que o mundo pereça” (tradução nossa), sob a égide do pensamento tomista.
As cotas raciais, por exemplo, são um dos maiores exemplos de justiça social contemporânea. Apesar de grande polêmica acerca deste tema, não podemos falar em liberdade e justiça, se grande parte da população de uma nação não possui condição mínima de sobrevivência, como é o caso do Brasil.
3. ANTÍTESE NEOLIBERAL DA “FULGA DO CAPITAL ESTRANGEIRO”
O neoliberalismo, em linhas gerais, é uma corrente política e econômica que defende a não intervenção do Estado na economia, permitindo assim “total liberdade” no mercado, de modo que isto ocasionaria em maior desenvolvimento e progresso nacional [sic].
Sob esta égide, o neoliberalismo é antagônico a maioria das políticas públicas oferecidas pelo Estado, visto que qualquer tipo de assistencialismo é “contraproducente à vida em sociedade” e que a mesma deve aderir a falácia da meritocracia. Teve grande repercussão a partir dos anos 1970, nos governos de Ronald Reagan, nos Estados Unidos (1981 – 1989), Margaret Thatcher, na Inglaterra (1979 – 1990), bem como no governo autoritário de Augusto Pinochet, no Chile (1973 – 1990).
A escola austríaca foi a grande percursora teórica de tal pensamento econômico, cujos grandes teóricos são Friedrich Hayek e Ludwing Von Mises, além da Escola de Chicaco, que hoje é considerada o “coração do neoliberalismo”, no qual podemos citar nomes como Milton Frieman e Murray Rothbard, este, vale dizer, com ideias tão extremistas ao ponto de defender uma sociedade, com o livre mercado ilimitado, com a completa extinção do Estado, o que ele chamava de Anarquismo de mercado [sic], ou “anarcocapitalismo”. Não cabe, a este artigo, adentrar no mérito infantil e bizarro desta teoria. Nesta ordem, o próprio Hayek se posicionou muito favorável a ditadura chilena de Pinochet, pelo fato de que, neste período, fora aplicada (ou imposta) a teoria neoliberal.[15]
Coloca, evidentemente, em cheque a tal “liberdade” a qual o neoliberalismo e a escola austríaca defendem, pois usa tal expressão no mesmo contexto de “ditadura”, lembra-nos, inclusive, a frase escrita no portão de Auschwitz: Arbeit macht frei (“o trabalho liberta.“ Tradução nossa).
Sob a égide dos direitos sociais, o neoliberalismo, constempoâneamente é a sua maior ameaça, defendendo uma política de total abstenção de quaisquer assistências estatais de ordem a reduzir a desigualdade.
“[...] Já que a versão neoliberal dos direitos humanos em vigor nos últimos trinta anos veio a repor a doutrina liberal com maior extremismo e com maior hostilidade em relação à promoção de direitos sociais e econômicos por parte do Estado. ” (SANTOS; Chaui, pag. 67, 2013).[16]
Uma das diversas antíteses utilizadas pelos pensadores contrários à criação do IGF é que o capital estrangeiro iria fugir. Amir Khair (2011, pag. 1)[17] nos presenteia com uma perfeita refutação à esta tese:
“Nenhuma dessas alegações procede. Em vez de afugentar, deve atrair mais o capital ao permitir a desoneração do fluxo econômico, gerando maior consumo, produção e lucros. Não teria nenhum conflito com os impostos existentes, pois sua base tributária é o valor total dos bens. ”
Outro ponto que podemos citar é o mercado. É certo que o Brasil vive uma crise político – econômica, mas o mercado brasileiro não é uma parcela que as grandes empresas perderiam. A França, por exemplo, possui o IGF e, apesar dos “esperneio” dos “gurus” da economia, não afugentou o investimento estrangeiro.
A arrecadação deste imposto poderia, muito bem, injetado em questões como segurança pública, educação, saúde, entre outros pontos do Estado social, pelo princípio da solidariedade, como bem salienta M. Barbosa e P. Freitas (2015, pag. 221).[18]
Neste sentido, a corrente contrária à criação do IGF ainda defende que, em alguns países como Canadá, Inglaterra, Japão, entre outros, tal tributo não deu certo, obrigando estas nações a aboli-lo. É verdade, mas o Brasil tem uma velha característica, a desigualdade social. O estudo do IPEA, “A década inclusiva” já devidamente citado neste artigo, confirma que o Brasil continua como um dos países mais desiguais do planeta, com uma astronômica concentração de riquezas, o que indica a provável eficácia de tal imposto, torando real um dispositivo constitucional para reduzir a desigualdade e a marginalização, um dos fundamentos da República do Brasil.
3.1 TEORIA DO MÍNIMO EXISTENCIAL
O mínimo existencial são as condições básicas de sobrevivência que qualquer cidadão tem direito, não precisando, no entanto, da criação de legislação infraconstitucional para sua efetivação, de modo que está vinculada a própria constituição.
Dentre os diretos fundamentais que compõe o mínimo existencial, podemos citar a saúde, a educação, o salário mínimo, alimentação, habitação. Ana Paula de Barcellos (2011)[19] cita, ainda o acesso à justiça como condição mínima de existência.
Percebemos, portanto, que o mínimo existencial é fruto da nova roupagem dos Estados modernos, com uma maior preocupação com o bem-estar do homem e menor desigualdade (fruto do sistema capitalista) e políticas públicas voltadas a classe dominada, que, vale dizer, incompatível com a ideologia neoliberal.
“Como já se fez menção, esses quatro conteúdos do mínimo existencial não correspondem a uma escolha aleatória, ou exclusivamente normativista (considerando-se o texto da Carta de 1988); ao contrário, eles integram uma estrutura lógica de fácil demonstração. Com efeito, educação e saúde formam um primeiro momento da dignidade humana, no qual se procuram assegurar condições iniciais tais que o indivíduo seja capaz de construir, a partir delas, sua própria dignidade autonomamente. ”. [20]
Evidentemente que nenhuma dessas políticas e obrigações (impostas ao Estado pela Constituição) foram, totalmente, eficazes. Além do período neoliberal que dilapidou o patrimônio público nacional, o custo de tais intervenções é alto, o que leva a um velho fantasma da ideologia neoliberal a assombrar os direitos humanos no brasil, o princípio da reserva do possível, tema do próximo tópico.
3.2 IGF E A RESERVA DO POSSÍVEL
Um dos “fantasmas” da ideologia neoliberal no âmbito jurídico – constitucional é o princípio da reserva do possível.
Tem origem alemã, no famoso caso “numerus clausus”, julgado pelo Tribunal Constitucional Federal alemão (Bundesverfassungsgericht), versando sobre o acesso ao número de vagas do curso de Medicina daquele país. Neste contexto, a reserva do possível foi, de certo ponto, justa e imparcial, visto que o Estado alemão não pode (como foi alegado) disponibilizar infinitas vagas de medicina, todavia o princípio foi importado para o Brasil com uma interpretação que só prejudicaria (ainda mais) a classe dominada, como salienta Andreas Krell (2002, apud RAMOS, Mariana Barbabela de Castro, 2014):
“Devemos nos lembrar que os integrantes do sistema jurídico alemão não desenvolveram seus posicionamentos para com os direitos sociais num Estado de permanente crise social e milhões de cidadãos socialmente excluídos. Na Alemanha – como nos países centrais – não há um grande contingente de pessoas que não acham vagas nos hospitais mal equipados da rede pública; não há necessidade de organizar a produção e distribuição da alimentação básica a milhões de indivíduos para evitar sua subnutrição ou morte; não há altos números de crianças e jovens fora da escola; não há pessoas que não conseguem sobreviver fisicamente com o montante pecuniário de assistência social que recebem, etc.”[21]
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, é notório que o imposto sobre grandes fortunas é uma necessidade para a sociedade brasileira, para o efetivo cumprimento da ideologia da Constituição e dos fundamentos da República. Diferente do pensamento liberal, acreditamos que tal medida não afugentará investidores e capital estrangeiro, mas diminuirá o abismo social nacional, reduzindo a concentração de renda e deixando o mercado mais dinâmico e humano. O mundo não é o mercado, as sociedades complexas necessitam mais do que desenvolvimento econômico para progredir, e para isso, é necessária a consolidação da justiça social e do Estado providência.
Os índices de progresso social estão intrinsecamente ligados a questão de igualdade de oportunidade e dignidade humana. Com menor taxa de desigualdade, a taxa de criminalidade diminui significativamente, bem como uma vertiginosa crescida nos índices de produtividade.
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[9] PEIXOTO JUNIOR, Valter Peixoto da Silva Júnior. Regulamentação do imposto sobre grandes fortunas: viabilidade. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 20, n. 4409, 28 jul. 2015. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/41021>. Acesso em: 17 abr. 2016
[10] Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. A década Inclusiva (2001 – 2011): Desigualdade, pobreza e políticas de Renda. N. 155, 2012. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/comunicado/120925_comunicadodoipea155_v5.pdf
[11] COSTA, Francisco José Santos da. Imposto sobre grandes fortunas: um estudo crítico. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2665, 18 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17656 Acesso em: 17 abr. 2016.
[12] CANOTILHO, et al. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2014.
[13] FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2014.
[14] ARAÚJO, Sérgio Luiz Souza. O preâmbulo da Constituição brasileira de 1988 e sua ideologia. Revista de informação legislativa: Brasília, vol. 36, n. 143. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/498/r143-01.PDF?sequence=4 Acesso em: 17 abr. 2016.
[15] MONBIOT, Geroge. Para compreender o Neoliberalismo além dos clichês. Outras Palavras. São Paulo. 23 abril. 2016. Disponível em: http://outraspalavras.net/destaques/para-compreender-o-neoliberalismo-alem-dos-cliches Acesso: 26 de abril de 2016.
[16] SANTOS, Boaventura de; CHAUI, Marilena. Direitos humanos, democracia e desenvolvimento. São Paulo: Cortez, 2013.
[17] KHAIR, Amir. "Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF)." Instituto de Economia da UFRJ. S/d Disponível em: http://www.ie.ufrj.br/aparte/pdfs/akhair190308_2.pdf
Acessado em 04 de abril de 2016.
[18] BARBOSA, M.F.S ; FREITAS, P.M.B. Imposto sobre grandes fortunas. Revista Intervenção, Estado e Sociedade: Ourinhos, vol. 3, n. 1, p. 207 – 203, 2015
[19] BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. Recife: Renovar, 2011.
[20] BARCELLOS, Ana Paula. Op., cit., p. 302.
[21] RAMOS, Mariana Barbabela de Castro. Clausula da reserva do possível: a origem da expressão alemã e sua utilização no direito brasileiro. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 18 jul. 2014. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.49058&seo=1>. Acesso em: 04 de abril de 2016.
Acadêmico do Centro Universitário de Votuporanga. Monitor de Prática Processual Civil (2016-1) no Centro Universitário de Votuporanga, colunista da Associação Brasileira de Educação a Distância - Portal Educação- e pesquisador voluntário do projeto de Iniciação Científica na UNIFEV, na linha de pesquisa: (DES) elitização e democratização do Poder Judiciário (2016-1) e O dirigismo e o totalitarismo constitucional: elementos de submissão do Estado (2016-2).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARVALHO, João Eduardo de Lima. Justiça social em face à redistribuição de riquezas: uma visão constitucionalista acerca do imposto sobre grandes fortunas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 jun 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46930/justica-social-em-face-a-redistribuicao-de-riquezas-uma-visao-constitucionalista-acerca-do-imposto-sobre-grandes-fortunas. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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