RESUMO: O presente artigo trata da aplicação da Transação Penal – nos Juizados Especiais Criminais – como forma de aplicação imediata de uma pena restritiva de direitos, e sua relação com o princípio constitucional da presunção de inocência, insculpido no inciso LVII do art. 5º da CF/88, sob a ótica da imposição de uma sanção antes de sentença condenatória transitada em julgado.
PALAVRAS-CHAVE: Transação Penal. Princípio da Presunção da Inocência. Lei nº. 9.099/95.
1. INTRODUÇÃO
Será analisado o instituto da transação penal (artigo 76 da Lei n° 9.099/1995), no que tange à aplicação imediata de uma pena restritiva de direitos face ao princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal de 1988, o qual veda, num primeiro momento, a aplicação de pena antes mesmo da prolação de sentença condenatória e seu trânsito em julgado.
Demonstrar-se-á, com a análise supramencionada, que a Transação Penal não contraria o Princípio da Presunção de Inocência (também conhecido como Princípio do Estado de Inocência), mas, pelo contrário, traz punição na medida adequada àquele que praticou algum tipo de ilícito penal de menor potencial ofensivo, isto é, contravenções penais e crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa (art. 61 da Lei 9.099/95).
Atualmente, a transação penal vem sendo apontada como uma das mais importantes formas de despenalização, seja porque, com ela, o Poder Estatal busca a reparação de danos e prejuízos sofridos pela vítima, seja porque tende a desafogar o Judiciário. Entretanto, o referido instituto sofre várias críticas por parte de doutrinadores e de aplicadores do Direito, os quais entendem que a aplicação imediata da pena, através da transação penal, estaria ferindo princípios consagrados na Carta Magna.
Diante desse contexto é que verificaremos que a aplicação imediata da pena – maneira como a Lei 9.099/95 denomina a Transação Penal – permitiu a mitigação da obrigatoriedade da ação penal, primando-se mais pela solução dos conflitos do que por uma decisão meramente formalista. Em outras palavras, a implantação do referido instituto buscou impedir a imposição de pena privativa de liberdade, sem, contudo, deixar de constituir a devida sanção penal, mas sem violar o princípio constitucional da presunção da inocência, consagrado em nossa Carta Magna: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (artigo 5º, inciso LVII, da CF/88).
2. A TRANSAÇÃO PENAL À LUZ DO PRINCÍPIO DO ESTADO DE INOCÊNCIA
Questão de grande relevância é saber se o instituto da transação penal, disposto no art. 76 da Lei nº 9.099/95, fere ou não princípio do estado de inocência, consagrado no art. 5°, inc. LVII, da Constituição Federal?
A resposta não é tão simples, o que é bastante normal do mundo jurídico, pois existem divergências doutrinárias e jurisprudenciais sobre a possibilidade ou não de tal transgressão, conforme demonstrado a seguir.
Antes, porém, cabe ressaltar que, na prática, a aceitação da transação penal pelo autor do fato não significa o reconhecimento de culpa. Tanto é verdade, que o autor do fato permanece primário em seus antecedentes criminais, sendo as anotações no registro criminal feitas apenas com o condão de impedir nova transação no prazo de cinco anos. Prova disso, é o fato de a sentença não gerar efeitos na área cível, conforme estabelecido no § 6º do art. 76 da Lei nº 9.099/95.
A transação penal, prevista no art. 76 da Lei dos Juizados Especiais, não é sinônima do plea bargaining do direito norte-americano, pois, nos Estados Unidos, ocorre um acordo entre acusação e defesa, por meio do qual se obtém uma confissão de culpa em troca de acusação por crime menos grave, o que em hipótese nenhum ocorre na transação penal brasileira.
Conforme dito inicialmente, alguns doutrinadores entendem que a aceitação da transação penal, por parte do infrator, implica assunção da culpa.
O professor Cezar Roberto Bitencourt (1997) recomenda o abandono de preconceitos adquiridos através das décadas, com o uso do sexagenário Código de Processo Penal, afirmado que a Lei n° 9.099/95 mudou toda a sistemática, quando prescreve que o autor do fato, na transação penal, com sua autonomia de vontade e assistido por um defensor, apenas usa da possibilidade de dispensar o processo tradicional, ficando submisso à sanção punitiva aceita, com necessária assunção de culpa. Explica, ainda, que não é a lei em si mesma que presume a culpa e desfaz a presunção de inocência. Nesse sentido, a lecionou:
A Lei 9099/95 não está presumindo culpa (embora haja culpa jurídica, que fundamenta a aplicação de pena criminal, posto que não se trata de responsabilidade objetiva), não está suprimindo o direito de defesa, o direito ao contraditório ou simplesmente ignorando a presunção de inocência. Este diploma legal está, apenas, cumprindo mandamento constitucional, possibilitando ao autor do fato subtrair-se do processo tradicional, conservador, oneroso e desgastante, além de evitar uma eventual condenação com suas conseqüências naturais. A transação penal decorre da autonomia de vontade, e é produto do exercício da ampla defesa que, estrategicamente, pode preferir transigir ao invés de assumir o risco e o desgaste de um processo alongado, com resultado imprevisível após a instrução probatória. A aquiescência do autor do fato, livre e assistida por seu defensor, na solenidade da audiência (devido processo legal), é suficiente para destruir a presunção de inocência. Com efeito, a transação penal e a suspensão condicional do processo representam somente novos paradigmas na busca da solução dialética de parte dos conflitos sociais, através do consenso, assegurando-se sempre da primariedade do autor do fato, sem aplicar-lhe condenação (BITENCOURT, 1997).
Em outra obra Bitencourt (2002), afirma que, “sendo a voluntariedade uma característica da transação penal, o autor do fato abre mão do direito fundamental da presunção de inocência”. Salienta, também, que, com a aplicação desse instituto penal, substitui-se, com inegáveis vantagens, o conceito de verdade material pelo da verdade consensual, esclarecendo que a presunção de inocência insculpida na Constituição brasileira é juris tantun, cedendo quando houver prova em contrário, como ocorre com a aquiescência do autor do fato, na transação penal.
O art. 76 da Lei n° 9.099/95 não menciona explicitamente a culpa, mas a concepção da sanção transacionada como verdadeira pena, requer a afirmação de culpa pelo axioma nulla pena sine culpa. Desse ponto de vista, com a aceitação da transação penal estaria o autor do fato assumindo a culpa pelo ato.
A corrente favorável à conversão da transação penal em pena privativa de liberdade, quando do descumprimento do que foi transacionado, entende que a tal instituo é a própria assunção de culpa, não havendo desrespeito aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, vez que, ao aceitar a transação, o autor do fato renuncia a tais princípios. Não obstante a autoridade de Cezar Roberto Bitencourt, sua posição não é seguida pela maioria da doutrina e sofre críticas acirradas de outros renomados juristas.
Não parece prudente entender que a aceitação de proposta pelo autor do fato seja uma prova em contrário de sua inocência, haja vista que a confissão, há muito, deixou de ser considerada a rainha das provas. O valor relativo da confissão fica claro ao se efetuar a leitura dos arts. 197/200 do Código de Processo Penal pátrio.
Do mesmo modo, não parece correto afirmar que na transação penal se busca a verdade, pois esta, ali apresentada, é meramente a verdade consensual. Ao contrário, pode-se entender que a aceitação da proposta e a aplicação imediata da sanção cabível, tem a finalidade de evitar a busca da verdade real, tendo como objetivo a economia processual, a celeridade, a oralidade, questões de política criminal, a pacificação, dentre outros.
Ao contrário do que entende a corrente a assunção da culpa na transação penal, o fato de a Constituição Federal ter previsto a transação penal, em seu art. 98, inc. I, não pode significar que ela esteja chancelando a exterminação do estado de inocência. O fato de a transação penal ser prevista pela CF/88, não a torna, de pronto, constitucional, muito bem argumentado por Roberto Podval (2001): ”não parece razoável entender que a Constituição Cidadã tenha assinado um cheque em branco para que o legislador regulasse a transação penal como bem quisesse ou entendesse”.
Para a grande maioria da doutrina, não existe assunção de culpa quando o autor do fato aceita a transação penal.
Ada Pellegrini Grinover afirma que existe apenas uma semelhança entre a transação penal e o instituto do nollo contendere:
A segunda objeção, pela qual a transação penal seria inconstitucional, reside na eventual infringência ao princípio da presunção de inocência. Aqui a resposta surge instantânea: no sistema da Lei 9099/95, a aceitação da imposição imediata da pena não corresponde a qualquer reconhecimento de culpabilidade penal (e, aliás, nem mesmo de responsabilidade civil). Não estamos diante do guilty plea (declaração de culpa) ou da plea bargaining (barganha penal) do direito norte-americano, pois a aceitação da transação penal não tem efeitos penais ou civis. A figura que mais se aproxima do instituto pátrio é o do nollo contendere (não quero litigar), pelo qual o interessado simplesmente prefere a via do consenso à do conflito. Muito se tem escrito e discutido sobre essa dicotomia no direito penal (consenso ou conflito), e não é possível sustentar, em sã consciência, que a transação do direito brasileiro vulnera a presunção de inocência (GRINOVER, 1999).
Nesta linha de raciocínio, a figura do nollo contendere é, realmente, a que melhor se amolda ao teor da Lei n° 9.099/95, pois, ao aceitar a transação penal, o autor do fato não assume ou nega a culpa, apenas concorda em receber uma penalidade em troca de o Estado abster-se da contenda. Entretanto, é importante não confundir esta permuta entre o Estado e o autor do fato com o instituto do plea bargaining norte-americano. Neste último, a barganha é feita em relação à ação penal, com abrandamento da pena, existindo a possibilidade de escolha do local de seu cumprimento, dentre outros supostos benfícios, enquanto que, na transação penal do Juizado Especial, existe somente a desistência do litígio.
Importante mencionar que na transação penal não existe a substituição da verdade material pela verdade consensual a que se refere o eminente autor Cezar Roberto Bitencourt. Ao contrário, existe uma abstenção da busca pela verdade real, condicionada ao cumprimento de certas condições impostas ao autor do fato, que, em troca, recebe do Estado extinção da punibilidade pelo ato delituoso praticado. Essa permuta do conflito pelo consenso também tem função política e educativa.
Rogério Schietti Machado Cruz também vê as soluções consensuais como forma de pacificação social com a eliminação da contenda:
Outra importante realização nas reformas processuais dos países ocidentais tem sido a adoção da justiça de consenso, com maior ou menor extensão, a depender da política criminal estabelecida em cada Estado. Na medida em que a jurisdição, a par do seu escopo jurídico, não prescinde também da função social de pacificação dos conflitos, há que se buscar um resultado processual que não apenas decida a lide, mas que procure atingir uma efetiva solução para o litígio que preexistiu à relação processual.
Para tanto, soluções consensuadas – desde que, evidentemente, tomadas de maneira transparente, sob a fiscalização da autoridade judiciária competente, e com prévio conhecimento, pelo imputado, do alcance da medida e dos direitos renunciados – estimulam o bom relacionamento entre os protagonistas do crime, eliminando ou minimizando a frieza e a distância naturalmente ocorrentes. Outrossim, reforça-se o efeito pedagógico da sanção penal, que deixa de ser imposta e passa a ser aceita pelo infrator, com possibilidade, inclusive, da participação da vítima, esse personagem quase sempre esquecido no script do processo penal (CRUZ, 1997).
Essa participação da vítima, diferentemente do que ocorre na composição civil dos danos, não se verifica na transação penal, que fica a cargo do Ministério Público, embora exista a possibilidade de ela (a vítima) figurar como beneficiária da sanção. Esta exclusão da vítima se dá pelo fato de que o ius puniendi não lhe pertence, pois é atribuição exclusiva do Estado.
A abstenção da busca de um culpado para punir, muitas vezes, tem o condão de evitar decisões injustas, pois o Poder Judiciário, mesmo com sua cognição exauriente, pode dar rumos diferentes ao litígio, trazendo ao agente que cometeu o ilícito penal prejuízos irreparáveis. Outro valor aventado seria evitar discussões sobre fatos que os próprios envolvidos não querem mais discutir. É o que ocorre em infrações mais leves, nas quais a pessoa que comete o desvio penal passa a preferir não encarar o Judiciário, além de não querer, também, comprometer a sua reputação social.
A corrente majoritária nesse tema se posiciona no sentido de que a transação penal é uma sanção administrativa, imposta num sistema de jurisdição voluntária, como alternativa ao procedimento sumaríssimo, negando, portanto, a existência de assunção da culpa. Logo, para que não seja reconhecida a assunção da culpa quando da transação penal, é necessário não conceber a aceitação do benefício sob a égide tradicional da pena.
Conforme supramencionado, a Lei n° 9.099/95 não previu consequências para o descumprimento da transação penal, tornando-se relevante discutir se o instituto fere ou não o estado de inocência, bem como se, quando a “punição” ocorrida na transação penal é cumprida, ocorre a extinção da punibilidade do autor do fato, o que ocasiona o arquivamento do Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO), sem qualquer anotação no rol de culpados ou mácula no nome do infrator, ficando apenas o registro de que o benefício não pode ser concedido, novamente, no interstício temporal de cinco anos.
Contudo, da ocorrência de descumprimento da transação penal surge outra questão relevante. Qual deve ser a resposta do Estado? Ocorre que a resposta a essa indagação difere, de acordo com os entendimentos doutrinários anteriormente citados, no sentido de existir ou não a assunção da culpa pelo agente quando este aceita a transação penal.
A Lei n° 9.099/95, talvez por excesso de otimismo, não previu a hipótese do descumprimento da transação penal, entendendo seus elaboradores que, pelo tipo de punição, nunca o infrator deixaria de cumpri-la. Todavia, na realidade, não é o que acontece, pois, transações penais são descumpridas com bastante regularidade e, com isso, a doutrina e jurisprudência procuram suprir esta consequência danosa na aplicação do instituto.
Ressalte-se que a lacuna legal existente diploma legal em tela não autoriza pensar que o descumprimento da transação penal possa ser ignorado, sendo quase consenso que tal situação pode acarretar a conversão da pena alternativa transacionada em pena privativa de liberdade, tal como previsto no § 4º do art. 44, § 4º do Código Penal Brasileiro: “A pena restritiva de direitos converte-se em privativa de liberdade quando ocorrer o descumprimento injustificado da restrição imposta”. No entanto, há quem ressalte que tal dispositivo não pode ser aplicado em caso de lei especial, pois o próprio art. 44, em seu caput, afirma que as penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, nas condições especiais em que são enumeradas nos incisos subsequentes. Desse modo, inverter a interpretação do referido artigo é causar dano irreparável ao infrator, que goza do privilégio de não ter agravada a sanção imposta, além daquilo que foi estipulado. Nesse caso, o descumprimento da pena restritiva de direitos é um ato imposto ao condenado, tornando-o desmerecedor da substituição, trazendo, em consequência, a não autorização de retorno para pena primitiva imposta.
Ocorre que na transação penal, a sanção, que não pode ser chamada de pena, não está substituindo qualquer pena privativa de liberdade, portanto, não pode ser aceita a conversão da punição acordada por uma que sequer existiu. Ademais, entende-se, também, que o art. 76 da Lei n° 9.099/95, ao dispensar a análise da culpabilidade, autoriza somente a aplicação de pena restritiva de direitos ou multa, jamais a privativa de liberdade, consagrada pelo art. 33 e seguintes do Código Penal pátrio.
Cezar Roberto Bitencourt (2003), afirmando ser completamente deficiente tal instituto, explica que na tradição do ordenamento jurídico brasileiro, sempre que as partes transigem colocando fim à relação processual, a decisão judicial que legitima jurisdicionalmente essa convergência de vontades terá caráter homologatório e jamais condenatório.
Da mesma forma Ada Pellegrini Grinover (1998) entende que a decisão jurisdicional na transação penal é desprovida da natureza condenatória, mantendo-se apenas a homologatória.
Por sua vez, Júlio Fabrini Mirabete entende ser tal decisão condenatória e não homologatória, visto que declara e reconhece a situação do autor do fato, tornando-o certo e impondo sanção penal, produzindo, então, efeitos de coisa julgada material e formal (1996:90).
Todavia, por inexistir sentença de mérito, com observância do devido processo legal, culpabilidade e demais princípios constitucionais garantidores, parece mais razoáveis e abalizados o posicionamento de Grinover e Bitencourt, o qual foi acolhido perante o Supremo Tribunal Federal.
Cezar Roberto Bitencourt (2003:595) também defende que a pena transigida cria para o autor do fato uma obrigação de fazer que, quando descumprida, deve ser executada nos moldes do Código de Processo Civil brasileiro, podendo resolver-se em perdas e danos. Entretanto, acredita-se que o instituto da transação não gera este tipo de ramificação, até mesmo porque só se completa com o seu cumprimento.
Outros doutrinadores entendem que, se a pena alternativa não for cumprida espontaneamente, deve ser executada nos moldes dos art. 84, 85 e 86 da Lei n° 9.099/95, o que não parece ser razoável, vez que tal sanção não deve ser executada da mesma forma que a pena restritiva de direitos imposta ao réu ao término do procedimento sumaríssimo, estatuído nos arts. 77 a 83 da referida Lei, pois esta é oriunda de uma denúncia formalizada em audiência e aquela advém de um acordo firmado pelo Ministério Público e o autor do fato.
Em relação à multa no procedimento sumaríssimo, esta requer atenção especial, tendo em vista as mudanças ocorridas no art. 51 do Código Penal com o advento da Lei n° 9.268/96, que passou a determinar que para este tipo de penalidade não é mais possível a sua conversão em pena privativa de liberdade. Isto se deve ao fato de que, após a vigência desta lei, a multa passou a ser considerada como dívida de valor, devendo ser aplicadas as normas da legislação relativa à dívida ativa da Fazenda Pública. Portanto, restou prejudicado o conteúdo art. 85 da Lei nº 9.099/95 ante a impossibilidade de conversão da multa em pena privativa de liberdade, levanta-se, consequentemente, à expectativa no sentido de que a multa, imposta através de transação penal, possa ser executada como dívida de valor.
A execução de uma multa, oriunda de uma transação penal, continuará sendo um ato por demais gravoso ao autor do fato, pois através dela, o Estado retira do infrator um valor pecuniário que, em alguns casos, se torna mais aflitivo que a privação da liberdade.
Em uma análise mais minuciosa, a multa, pelo caráter patrimonial, equipara-se com a pena restritiva de direito, pois existe a perda de bens e de valores. Por isso, há quem defenda que a sanção da transação penal, quer seja pena restritiva de direitos quer seja multa, não pode ser executada em caso de descumprimento. Assim, executar uma sanção transigida, restritiva de direitos ou multa, ou ainda, a obrigação de fazer decorrente, é atribuir à transação um valor maior que ela tem, pois tal instituto deve ser visto como condição para que se operem os seus efeitos, dentre os quais se encontra a extinção da punibilidade.
Vislumbra-se, pois, que o caminho mais natural para o descumprimento da transação penal seria o oferecimento de denúncia por parte do Ministério Público.
Luiz Wanderley Gazoto, assim se pronunciou:
O descumprimento da transação penal não produzirá muitos efeitos penais, mas somente um, de natureza penal: a possibilidade de imediata instauração de ação penal. Tal postura não implica afirmar que a transação penal não tem valor algum, o que seria negar a força da própria Constituição Federal, que admite, expressamente, (art. 98, inc. I). Efetivamente, quero dizer que somente a transação penal cumprida é que produzirá efeitos penais (GAZOTO, 2003).
Manifesta-se contrariamente a essa hipótese, o professor Cezar Roberto Bitencourt (2003), sustentando-se em julgado no Superior Tribunal de Justiça, pelo qual a sentença homologatória que ocorre na transação penal, gera eficácia de coisa julgada material e formal, obstando a instauração de nova ação penal contra o autor do fato, se descumprido o acordo homologado.
Para demonstrar esse entendimento, transcreve-se:
A sentença homologatória da transação penal, por sua natureza, gera eficácia de coisa julgada formal e material, impedindo, mesmo ante o descumprimento do avençado pelo paciente, a instauração da ação penal. A decisão que determina o prosseguimento da ação penal e considera insubsistente a transação homologada configura constrangimento ilegal. Precedentes. Ordem concedida para obstar o início da ação penal. (HC 30212/MG, Relator: Ministro Jorge Scartezzini, DJ 28.06.2004, p. 00362).
Diante de tamanha divergência, a solução encontrada pelos aplicadores do direito, e que vem sendo usada em larga escala pelos juizes, é a de homologar a transação penal somente após o devido cumprimento da sanção proposta na audiência preliminar e aceita pelo infrator. Dessa forma, havendo o descumprimento daquilo que se transacionou e que ainda não foi homologado, torna-se perfeitamente cabível o oferecimento da denúncia por parte do Ministério Público, com fundamento na não existência de coisa julgada material ou formal.
Cezar Roberto Bitencourt (2003) afirma que tal hipótese seria uma arbitrariedade ardilosa e ineficaz. “Ardilosa porque buscaria afastar indevidamente a coisa julgada e ineficaz porque não teria o poder de retirar a imutabilidade inerente à sentença”. Tal crítica parece partir da equivocada compreensão da sanção do art. 76 da Lei n° 9.099/95, que deixa entender, como resultado da medida judicial aplicada, àquela que se impõe em qualquer sentença nos procedimentos da justiça comum, denominado de pena. A pena é uma condição da sentença condenatória, cujo cumprimento é necessário para que se complete a decisão. Ao contrário, vislumbra-se que, na transação penal, jamais poderá se falar em coisa julgada, pois nesta existirá apenas a homologação de um acordo firmado ente o Ministério Público e o autor do fato.
As obscuridades e lacunas encontradas na Lei n° 9.099/95 são muitas, valendo lembrar que nela não se previu ser a homologação da transação penal um ato autônomo, vez que a sentença que aplica a transação penal tem, na verdade, a característica homologatória, no sentido de reconhecer a concretização de um acordo e a disposição das partes em cumpri-lo. Essa sentença é perfeita, ainda que só possa gerar efeito de extinção da punibilidade do autor do fato após seu cumprimento.
A conversão em pena de prisão pelo descumprimento parece ser uma violência abominável, ante o desrespeito aos princípios constitucionais garantidores da ampla defesa, contraditório, devido processo legal. O Ministro Marco Aurélio de Mello, em decisão proferida no HC 79.572-GO, sustentou que:
[...] não há como aplicar, à espécie, a menos que sejam colocados em plano secundário princípios constitucionais, o disposto no art. 45 do Código Penal. Está-se diante de incompatibilidade reveladora de não ser o preceito nele contido fonte subsidiária no processo submetido ao juizado especial. Essa conclusão decorre do fato de a conversão das penas restritivas de direitos em penas restritivas do exercício da liberdade, tal como prevista no artigo 45 do Código Penal, pressupor, sempre, o regular processo, a regular tramitação da ação penal, a persecução criminal, viabilizando o direito de defesa, e a prolação de sentença condenatória, vindo a ocorrer, ai sim, em passo seguinte, a conversão. Alias, o princípio da razoabilidade, a razão de ser das coisas, cuja força é insuplantável, direciona no sentido de a conversão pressupor algo já existente, e isso diz respeito à pena privativa do exercício da liberdade.
Sem o devido processo legal, ampla defesa, contraditório e sentença penal condenatória, é incabível a conversão da transação penal em pena privativa de liberdade. Não fosse assim, se estaria a ferir o próprio espírito que norteou o trabalho legislativo, qual seja, a despenalização, mediante a aplicação de pena diversa do encarceramento.
A execução da medida transacionada, posicionamento sustentado por Bitencourt, consiste em proceder à execução forçada, exatamente como se executam as obrigações de fazer. Há decisão da lavra do Ministro Hamilton Carvalhido, do Superior Tribunal de Justiça, RHC 10.369/SP, a determinar a execução:
Recurso em Habeas Corpus. Transação Penal. Lei 9.099/95. Pena de Multa. Descumprimento. Oferecimento de Denúncia. Impossibilidade. Coisa Julgada Formal e Material. Ressalva de Entendimento Contrário. 1. "(...) 1 - A sentença homologatória da transação penal, por ter natureza condenatória, gera a eficácia de coisa julgada formal e material, impedindo, mesmo no caso de descumprimento do acordo pelo autor do fato, a instauração da ação penal. 2 - Não se apresentando o infrator para prestar serviços à comunidade, como pactuado na transação (art. 76, da Lei nº 9.099/05), cabe ao MP a execução da pena imposta, devendo prosseguir perante o Juízo competente, nos termos do art. 86 daquele diploma legal. Precedentes." (REsp 203.583/SP, in DJ 11/12/2000). 2. Ressalva de entendimento contrário do Relator. 3. Recurso provido.
Todavia, a prática tem mostrado que a execução da decisão não surte efeito algum, pois a esmagadora maioria dos autores de delitos de menor potencial que descumprem injustificadamente a medida são pobres, na acepção jurídica do termo. Há, então, ineficácia da tutela jurisdicional e, em última análise, ofensa ao princípio de proteção aos bens jurídicos, por não se alcançar a pacificação dos conflitos sociais e proteção desses bens.
Diante do exposto, resta, portanto, avaliar a viabilidade de propositura da ação penal pelo Ministério Público, haja vista o entendimento dos doutrinadores contrários a esta hipótese, que sustentam a impossibilidade do início da ação penal sob o argumento de que a natureza jurídica da decisão homologatória gera eficácia de coisa julgada material e formal, o que impede a propositura da ação.
No que pese tal entendimento, a maioria dos doutrinadores não vê coisa julgada material na decisão homologatória da transação penal e, sim, perda de sua eficácia pelo descumprimento do acordo.
Nesse sentido, oportuna é a brilhante lição do mestre Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda:
Se os efeitos da declaração de vontade dependem do adimplemento da contraprestação ou a declaração de vontade, prestada pelo Estado, não compôs o negócio jurídico, por ser necessário que outra declaração de vontade ou algum ato de credor seria emitido, ou a declaração de vontade só tem os efeitos obrigacionais ou reais após contraprestação. Esses pormenores não importam no que concerne à rescindibilidade da sentença que presta a declaração. Se, depois, de ser contraprestada a declaração que se fazia mister e o prazo para ser contraprestada precluiu, tudo se passa como a respeito da oferta a que se não seguiu aceitação: o negócio jurídico bilateral não se concluiu (PONTES de MIRANDA, 1975).
Veja que a perda da eficácia se dá pelo descumprimento total ou parcial do transacionado, já que somente o cumprimento integral significa adimplemento da obrigação e determina a extinção do poder de punir estatal.
Cabe, então, concluir que com a perda da eficácia da decisão homologatória, abre-se ao Ministério Público, titular da ação penal pública, a oportunidade de oferecimento de denúncia para início da ação e, eventual, condenação ao término do processo. Porém, importante atentar que o cumprimento parcial do transacionado e a posterior condenação pelo mesmo fato, ante o descumprimento injustificado da transação, pode levar ao bis in idem.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Princípio da Presunção de Inocência encontra-se enraizado em nosso ordenamento jurídico de forma ampla e irrestrita, sendo cada vez mais invocado nos diversos tribunais do país, a fim de limitar o exercício do mandato de coerção legitimada e exercer a proteção contra o arbítrio de se instruir a perseguição processual sob a ótica do agente e não da conduta praticada.
Apesar da existência de pontos controversos e obscuros apresentados pela Lei n° 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais), os quais levam a entendimentos, às vezes, contraditórios àqueles a que se dispôs o legislador – a desobstrução do Poder Judiciário em todas as esferas –, também existem pontos de convergência que, conforme acima exposto, leva à conclusão de que não existe incompatibilidade entre a Transação Penal e o Princípio do Estado de Inocência.
A pessoa/agente que cometeu o ilícito penal de menor potencial ofensivo, ao aceitar a proposta de transação penal apresentada pelo Ministério Público, não está reconhecendo sua culpa, apenas optando por meio mais cômodo de se livrar do confronto judicial (nollo contendere), quer seja por elementos subjetivos ou por elementos objetivos.
A aceitação da transação penal pelo autor do fato não significa o reconhecimento de culpa, apenas sua submissão a uma sanção diversa da que teria ao término da persecução penal, haja vista que, da aplicação da pena na transação penal, não deriva consequências desfavoráveis em relação à reincidência ou aos antecedentes criminais e a seus registros, pois permanece a primariedade do autor do fato. Além disso, a transação penal tem o efeito de obstar a concessão de novo benefício pelo prazo de cinco anos, vez que o legislador brasileiro não fez depender esse instituto do prévio reconhecimento da culpabilidade.
Diante do exposto, fica claro que o instituto da transação penal, previsto no art. 76 da Lei n° 9.099/95, não viola o Princípio da Presunção de Inocência, consagrado no art. 5°, inc. LVII, da Constituição Federal de 1988, vez que a aceitação da imposição imediata da pena não corresponde a qualquer reconhecimento da culpabilidade penal ou de responsabilidade civil.
4. REFERÊNCIAS
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______, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal: Parte Geral. 8ª ed. vol. I. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2003.
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BRASIL. Lei 9.099 de 26 de setembro de 1995. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4717.htm>. Acesso em: 18 de maio de 2016.
CRUZ, Rogério Schietti Machado. A Indisponibilidade da Ação Penal (Enfoque anterior e em face da Lei 9.099/95). Disponível em: < http://www.metajus.com.br/artigos/artigo11.html >. Acesso em: 02 de junho de 2016.
GOMES, Luiz Flávio. Juizados Criminais Federais e seus Reflexos nos Juizados Estaduais e outros estudos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
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MIRABETTE, Júlio Fabrini. Juizados Especiais Criminais: Comentários, Jurisprudência e Legislação. 5ª ed. ver. e atual. São Paulo: Atlas, 2002.
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SIRVINSKAS, Luís Paulo. A Autonomia Privada, A Transação Penal e Seus Efeitos Civis. Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos – Divisão Jurídica. Nº 31. Instituto Toledo de Ensino. 2001.
Oficial do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Graduado em Direito pela Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC. Pós-graduado em Direito Processual Civil, Direito Penal e Direito Ambiental.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, José Pinheiro. A aplicação da transação penal e o princípio da presunção de inocência Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 jul 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46996/a-aplicacao-da-transacao-penal-e-o-principio-da-presuncao-de-inocencia. Acesso em: 23 dez 2024.
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