Introdução
O presente texto visa a abordar o desempenho da função de defensor legis pelo Advogado-Geral da União no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade de leis e atos normativos pelo Supremo Tribunal Federal, mais especificamente no procedimento da ADI. Atribuição esta prevista pelo art. 103, § 3º, da CF/88, bem como pelos arts. 4º, IV, da LC 73/93 e 8º da Lei 9.868/99.
Para além da simples previsão legal e constitucional, porém, pretende-se analisar de forma crítica a ideia da obrigatoriedade da defesa das normas impugnadas, máxime quando em confronto com outras atribuições igualmente conferidas ao AGU.
O Advogado-Geral da União no ordenamento pátrio:
Como todo produto da atuação do poder constituinte originário, a Carta de 1988 promoveu diversas reformas no aparelho do Estado brasileiro. Dentre elas, a criação da Advocacia-Geral da União, responsável, segundo o art. 131, por representar judicial ou extrajudicialmente a União, cabendo-lhe ainda as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo Federal.
No organograma da instituição, o papel de maior destaque é dado, pelo § 1º do mesmo dispositivo constitucional, ao Advogado-Geral da União. Figura, aliás, interessante, por guardar características que a tornam peça única no vigente arcabouço jurídico pátrio.
Tem status de Ministro de Estado, conferido pelo art. 25, parágrafo único, da Lei 10.683/2003, sendo de livre nomeação e exoneração pelo Presidente da República (art. 84, XVI, da CF/88). Como integrante do primeiro escalão do Executivo, também é julgado, em crimes comuns, pelo Supremo Tribunal Federal (art. 102, I, “c” da CF/88) e pode receber delegação de certas atribuições privativas do chefe do Executivo (art. 84, VI, XII e XXV).
Entretanto, não se trata de um ministro comum. A começar pelos pré-requisitos de nomeação exigidos pelo já citado § 1º do art. 131 da CRFB: idade mínima de 35 anos, além de notável saber jurídico e reputação ilibada. Outra peculiaridade é que, em se tratando de crimes de responsabilidade, a competência para julgá-lo será do Senado Federal, ainda que não os tenha cometido de forma conexa aos do presidente (art. 52, II, da CF).
Isso sem contar com a própria natureza da “pasta” por ele chefiada. Afinal, muito mais que um ministério, a Advocacia-Geral da União é órgão cumpridor de função essencial à Justiça, merecendo, por esse motivo, mais destaque na Carta Magna do que qualquer outro órgão diretamente subordinado à Presidência da República.
É também o único “ministério” regulado por uma lei complementar, a de número 73/1993, que ratifica o status de ministro do Advogado-Geral em seu art. 3º, caput e § 1º, recebendo deste último o posto de mais alto assessor jurídico do presidente.
Ao mesmo tempo em que não é um ministro comum, fica claro também que o AGU tampouco é um advogado da União qualquer. Não só por chefiar a instituição, mas principalmente por não fazer parte, necessariamente, da carreira, podendo o chefe do Executivo escolhê-lo dentre quaisquer juristas.
O papel de defensor legis em conflito com outras funções do AGU
Por ocupar cargo de confiança do Presidente e, ao mesmo tempo, chefiar a Advocacia-Geral da União, a maior parte das atribuições dadas pelo art. 4º da LC 73/93 ao Advogado-Geral têm relação com o assessoramento jurídico direto ao chefe do Executivo ou com o desempenho do mais alto cargo administrativo da AGU. Uma delas, contudo, torna-o ainda mais um personagem sui generis no ordenamento jurídico-constitucional pátrio: a de “defender, nas ações diretas de inconstitucionalidade, a norma legal ou ato normativo, objeto de impugnação” (inciso IV).
Trata-se da função de defensor legis, prevista, em primeiro plano, pelo art. 103, § 3º, da CF/88, devendo ser exercida, segundo o art. 8º da Lei 9.868/99 (que regulamenta o procedimento da ADI), no prazo de 15 dias, logo após a prestação de informações pelo órgão ou autoridade dos quais emanou a lei ou ato normativo impugnado, e antes da manifestação do Procurador-Geral da República.
Perceba-se que, neste mister, o AGU não atua como assessor do presidente, ou como chefe da Advocacia-Geral da União, mas como patrono da lei ou ato normativo. O que pode ocasionar algumas incongruências.
Primeiramente, vale uma leitura atenta do § 3º do art. 103:
“§ 3º Quando o Supremo Tribunal Federal apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, citará, previamente, o Advogado-Geral da União, que defenderá o ato ou texto impugnado”.
Note-se que, numa interpretação literal do dispositivo, o Advogado-Geral parece ter a obrigação de defender a norma impugnada, seja ela federal ou estadual (também atacável por ADI). Afinal, trata-se de uma redação imperativa (“defenderá”). Contudo, é necessário ir além do texto para compreender melhor referido papel por ele desempenhado.
É sabido que, diferentemente do que ocorre nos processos subjetivos, em que o Estado-juiz é instado a solucionar um conflito de interesses, a ADI não se presta a resolver uma lide. O objetivo último da ação direta é, em verdade, assegurar a força normativa da Constituição, extirpando do ordenamento uma norma que lhe é contrária, caso julgada procedente, ou dando à lei uma presunção absoluta de constitucionalidade, se for considerada improcedente pelo STF.
Logo, por se tratar de um processo no qual o “réu” é uma norma, não há, ao menos numa abordagem direta, direitos processuais subjetivos a serem resguardados no polo passivo da contenda. E não raras vezes, no mérito da questão, a lei atacada é eivada de inconstitucionalidade evidente. Nesses casos, corre-se o risco de, sendo o art. 103, § 3º, constitucional compreendido ao pé da letra, obrigar-se o Advogado-Geral a “defender o indefensável”.
Esse inconveniente fica ainda mais notório em ocasiões nas quais a tese versada na ADI já teve sua inconstitucionalidade declarada pelo Supremo Tribunal Federal, ainda que em sede de controle difuso.
Também é de se recordar que o Presidente da República, a quem o Advogado-Geral responde diretamente, é listado no inciso I do art. 103 da CF/88 como um dos legitimados a propor a Ação Direta de Inconstitucionalidade. Não se ignora que, para tanto, o chefe do Executivo é detentor de capacidade postulatória, não necessitando estar representado por advogado para ajuizá-la. Porém, o que ocorre na prática é que, nesse caso, a petição inicial é redigida e aviada pelo próprio AGU. Assim, careceria de qualquer sensatez obrigá-lo a atuar em defesa da norma por ele mesmo impugnada.
Ademais, como a ADI, segundo o art. 102, I, da CF/88, pode versar sobre leis estaduais, a inconstitucionalidade nelas apontada poderá ser de natureza formal orgânica, na qual um Estado-membro usurpa competência legislativa privativa da União listada no art. 21 da Carta. Em dada circunstância, como poderá o Advogado-Geral socorrer referido texto normativo sem entrar em conflito com seu papel de defensor-mor dos interesses do ente político central?
As hipóteses citadas, em verdade, são teratológicas, mas servem de ponto de partida para o que se defenderá no presente texto.
É de se ressaltar que o próprio Supremo é vacilante em relação ao tema. Conforme observa Pedro Lenza, em sua obra Direito Constitucional Esquematizado (14ª Edição, Editora Saraiva, 2014), em um primeiro momento a Corte, no julgamento das ADIs 72 (22/03/1990), 242 (20/10/1994), 3.522 (20/10/1994), 1.254-AgR (14/08/1996) e 1.434-MC (29/08/1996), posicionou-se pela obrigatoriedade da defesa da constitucionalidade da norma pelo AGU, “não lhe cabendo admitir a invalidez da norma impugnada” (pág. 968).
Dando um passo adiante, ao apreciar as ADIs 1.616 (24/05/2001), 2.101 (18/04/2001), 3.121 (17/03/2011) e 4.270 (14/03/2012), o Pretório Excelso passou a admitir que o Advogado-Geral da União não é obrigado a defender a norma, caso já haja precedente do STF pela sua inconstitucionalidade, ainda que exarado em controle difuso.
Por fim, em questão de ordem resolvida no bojo da ADI 3.916 (07/10/2009), ainda segundo Lenza, “com base em interpretação sistemática, o STF entendeu que o AGU tem o direito de manifestação, não necessariamente a favor da lei, mas na defesa da Constituição e, assim, dos interesses da União” (pág. 969). Em suma, para o Supremo, o Advogado-Geral exerceria o contraditório, no procedimento, em defesa da presunção de constitucionalidade do texto normativo editado pelos representantes do povo, mas apenas quando e nos trechos em que isso for possível.
Porém, nas ADIs 3.413, 2.376, 2.906 e 3.674, todas da relatoria do ministro Marco Aurélio e julgadas em 01/06/2011, o tribunal, num aparente retrocesso, voltou a se posicionar pela obrigatoriedade da atuação do AGU em defesa do texto impugnado.
É válido destacar que, embora o art. 103, § 3º, da CF seja imperativo quanto à defesa do ato normativo pelo Advogado-Geral, não se pode chegar ao extremo de constranger um homem do Direito, possuidor de notório saber jurídico, a atentar contra sua consciência e, o que é mais grave, contra a própria Constituição, ao defender a qualquer custo a permanência no ordenamento de uma norma que sabe ser inconstitucional.
Caso contrário, sob o argumento de se ressalvar a observância literal de um dispositivo da Constituição, estar-se-ia ferindo diversos outros, como o art. 131, § 1º, que atribui ao AGU o dever primordial defender os interesses da União, além do princípio da força normativa da Constituição, só para ficar nos mais evidentes.
Conclusão
Assim, conclui-se ser dever do Supremo Tribunal Federal reconhecer a ocorrência de mutação constitucional para, debruçando-se de maneira mais decisiva sobre a matéria, fincar, sob os olhos de sua atual composição, o posicionamento segundo o qual, em verdade, o Advogado-Geral da União, diferentemente de uma obrigação, tem o “direito de manifestação” no procedimento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (como, aliás, infere-se da leitura do art. 8º da Lei 9.868/99). Possui, portanto, a oportunidade, quando se lhe parecer correto, de pleitear a declaração de constitucionalidade da lei ou ato normativo objeto de controle concentrado, mas não a ponto de ser forçado a defender o indefensável.
Isto é, não feriria o texto magno o defensor legis que se abstivesse de socorrer norma antijurídica no procedimento da ADI, ou mesmo que opinasse pela sua extirpação do ordenamento. Ao contrário, estaria assegurando a prevalência dos preceitos constitucionais.
Referências
Direito Constitucional Esquematizado. Pedro Lenza. Editora Saraiva, 18ª Edição, 2014.
Advogado e jornalista. Formado, em ambos os casos, pela Universidade Católica de Pernambuco. Ex-editor-assistente de Brasil/Internacional do Jornal do Commercio. Atualmente exerce a advocacia.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ANDRADE, Clóvis dos Santos. Defensor legis a qualquer preço? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 jul 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47016/defensor-legis-a-qualquer-preco. Acesso em: 23 dez 2024.
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