O presente trabalho científico tem o intuito de estudar a intervenção do Poder Judiciário nas escolhas das funções Executiva e Legislativa para a efetivação do direito social à saúde, já que, como direito fundamental, este possui aplicabilidade direta e imediata, sendo judicialmente exigível. Com esta atuação, acaba o Judiciário interferindo consideravelmente na harmonia e independência entre os órgãos de poder do Estado, colocando em risco o princípio da separação dos poderes.
Trata-se de um tema interdisciplinar (âmbito social, jurídico, político e econômico) e que precisa ser ponderado, pois é preciso reconhecer a existência de medidas públicas pré-estabelecidas e a insuficiência de recursos públicos para o acolhimento de todas as demandas e buscar medidas e regras racionais e legais para que o equilíbrio econômico-financeiro do Estado e a efetivação do direto à saúde não sejam comprometidos.
Com o fim de cumprir o objetivo do presente trabalho científico, qual seja, estudar os limites da intervenção do Poder Judiciário na implementação do direito social à saúde, se faz necessário, primeiro, percorrer sob conceitos ligados ao Estado Democrático de Direito, o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, a aplicabilidade direta e imediata do direito à saúde, o princípio da separação dos poderes e a necessidade do equilíbrio econômico financeiro das contas públicas.
O objetivo é analisar os critérios que devem orientar o Poder Judiciário em relação às decisões judiciais proferidas em matéria de direito à saúde, considerando o princípio da separação dos poderes, a reserva do possível, ao mínimo existencial e a possibilidade da concreta efetivação do direito social à saúde, no contexto de uma justiça distributiva.
Nesta perspectiva, tenta-se deliberar se é viável e pertinente a subordinação deste direito fundamental à saúde à reserva do possível, à necessidade do equilíbrio econômico financeiro das contas públicas para limitar a sua efetivação, levando em consideração a importância da teoria do mínimo existencial neste contexto. Demonstrar que o Poder Judiciário deve ter limites bem delineados ao alocar recursos financeiros para determinada demanda da área da saúde para não comprometer o equilíbrio econômico-financeiro do Estado e macular a função precípua deste poder.
Quanto à metodologia, registra-se que se utilizou tanto a documental quanto a bibliográfica, a partir do método dedutivo de pesquisa.
A criação do Estado surge da vontade e da necessidade social de um poder cujo objetivo traduzisse a organização e o equilíbrio entre interesses individuais e interesses coletivos. No momento em que este poder se legitima através de uma Constituição que exprime a vontade e a soberania popular e tem como base e fundamento os direitos, liberdades e garantias fundamentais do cidadão, todas as demais normas jurídicas direcionam-se para o alcance desse objetivo que, antes de se transformar em direito de cada um dos administrados, foi visto, originalmente, como interesse comum de todos os integrantes de uma sociedade.
Brêtas de Carvalho Dias afirma que o povo é sujeito constitucional, substrato humano da comunidade política do Estado e complementa: o povo representa “pessoas livres, dotadas de direitos subjetivos umas em face de outras e perante o próprio Estado, fazendo parte do povo tanto os governados como os governantes, pois estes são provenientes do povo, sejam quais forem suas condições sociais”.(DIAS, 2012, p. 124).
O Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Interesse Particular dentro do Estado Democrático de Direito existe para fundamentar a prevalência do interesse público quando tem como finalidade efetivar os direitos fundamentais dos cidadãos - base de toda construção constitucional de 1988 – no âmbito de sua coletividade.
Vários princípios jurídicos, constitucionais ou infraconstitucionais, explícitos ou implícitos têm seu significado ou aplicação modificados ou transformados de acordo com a realidade histórica, social e política em que são empregados. Isto significa que o conteúdo de um conceito depende das referências de tempo, lugar, ordenamento jurídico, regime político ou, até mesmo, forma de governo adotados por uma sociedade em determinando momento.
Ao analisar a Constituição da República Federativa do Brasil – CF/88 - é perceptível o pluralismo de ideias, princípios e objetivos firmados como fundamentais no sistema brasileiro. Contudo, diante da história brasileira de supressão de direitos, autoritarismo, excesso e abuso de poder do Estado sobre o administrado, fica claro que o cidadão é o ponto basilar de toda estrutura constitucional.
Diante desse contexto, busca-se a idéia passada por Celso Antônio Bandeira de Mello (2006) de que o Estado, ao administrar a “coisa pública”, representa o titular do poder (o povo) e por isso deve cumprir deveres para atingir o interesse deste. Para que desempenhe sua função lhe são dados instrumentos, aqui denominados poderes – que não se confundem com liberdade ou autonomia de vontade – pois esses poderes estão vinculados a um objetivo específico, legalmente instituído.
A ideia do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado tem origem em uma sociedade democrática que vê a supremacia do interesse público como supremacia da vontade popular. Ao realizar o interesse público estaremos priorizando a vontade do povo, que, quando deixa de ser visada, afronta a ordem jurídica, frauda o dever de servir a sociedade, incorre em ilegalidade juntamente com ilegitimidade. (FROTA, 2005, p. 53).
Destarte, esclarece Celso Antônio Bandeira de Mello:
quem exerce ‘função administrativa’ está adstrito a satisfazer interesses públicos, ou seja, interesses de outrem: a coletividade. Por isso, o uso das prerrogativas da Administração é legítimo se, quando e na medida indispensável ao atendimento dos interesses públicos; vale dizer do povo, porquanto nos Estados Democráticos o poder emana do povo e em seu proveito terá de ser exercido. (MELLO, 2006, p. 68).
Os direitos fundamentais previstos na Constituição da República Federativa do Brasil direcionam toda uma interpretação a respeito das demais disposições constitucionais. A proteção do homem e de suas relações sociais, sua soberania popular e demais direitos previstos constitucionalmente demonstram que todos os demais recursos e instrumentos delegados ao Estado pelo povo devem ser utilizados para satisfazer os interesses das pessoas e da sociedade. Se partirmos sempre da idéia que o poder emana do povo e o beneficia, o princípio da supremacia do interesse público torna-se uma consequência lógica de um sistema criado para o bem-estar comum.
A função administrativa foi criada para determinada finalidade: satisfazer os interesses da coletividade, garantindo a defesa de seus direitos fundamentais e da ordem social. Ainda que vários conceitos necessitem de melhor definição ou ainda de serem reformulados diante das transformações ocorridas em cada momento histórico, a direção a se tomar é apenas uma, qual seja, a proteção do povo. Isto não significa que deveres, obrigações, restrição de liberdade ou direitos não ocorrerão.
O que se pretende é que, ainda quando ocorram, sejam feitas dentro dos limites do que impõe a lei, de forma transparente e principalmente participativa, para que o cidadão acompanhe todo o processo e compreenda que a restrição de um direito individual tem uma razão maior, que transcende a individualidade.
O princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado não é absoluto nem pode ser utilizado irrestritamente. Aliás, a própria ideia de imutabilidade é incompatível com os princípios que regem o Estado Democrático, com suas insurgentes relações cada vez mais complexas e inovadoras. Na medida em que o Direito cria suas regras, ele também cria instrumentos que flexibilizam e otimizam sua utilização, possibilitando maior adequabilidade das normas aos casos concretos, como os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Neste sentido, Daniel Sarmento:
Talvez a mais séria objeção dogmática ao princípio da supremacia do interesse público sobre o particular seja a de que ele não é compatível com o princípio da proporcionalidade, que constitui importantíssimo parâmetro para aferição da constitucionalidade das restrições aos direitos fundamentais. Com efeito, o princípio da proporcionalidade, cuja vigência no ordenamento brasileiro é hoje reconhecida, em uníssono pela doutrina e jurisprudência, estabelece critérios intersubjetivamente controláveis para resolução de colisões envolvendo interesses constitucionais. (SARMENTO, 2007, p.48).
O equilíbrio só é alcançado quando os princípios são utilizados, cada um em sua medida, de acordo com o que requer o caso concreto. Sem respostas antecipadas, sem imposições ou coações. Num determinado momento a melhor forma de preservar o interesse público pode ser protegendo um interesse particular. O princípio da supremacia do interesse público não proíbe que isso aconteça. Apenas garante à Administração que, se houver conflitos, ela tem deveres-poderes de fazer prevalecer a vontade do todo.
A Constituição Federal de 1988 prestigiou a proteção dos interesses individuais e interesses públicos. Dúvidas não há de que, em alguns momentos, o interesse individual se aproxima ou até mesmo se confunde com o interesse público. Mas no exercício diário da atuação administrativa, em ações estritamente vinculadas pela lei ou naquelas dotadas de discricionariedade, a Administração Pública se depara com um conflito de interesses, pois para realizar o interesse de todos, pode ocorrer a restrição parcial ou total de interesses individuais.
Note-se, porém, dois pontos importantes: como cidadãos, os membros de uma sociedade possuem, de uma forma geral, dois tipos de interesses. O primeiro é o individual, limitado à satisfação de uma vontade própria, singular; enquanto o segundo é como membro de uma sociedade, interessado em manter a ordem social, em construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, III, CF/88). Para manter essa harmonia social o indivíduo não pode prevalecer sobre o todo, esta é a lógica da sociedade.
O segundo ponto é que, em nenhum momento, o cidadão será privado ou suprimido de todos os seus direitos. Primeiro porque o interesse público, ainda que em outra dimensão, também é um interesse seu e, segundo, porque “quando o interesse individual é alijado ou substituído pela natural predominância do interesse público, deve ser compensado pela perda de seus direitos e interesses mediante sua equitativa conversão em outro valor equivalente”. (BORGES, 2006, p. 37).
Interesses públicos e privados devem sempre, na medida do possível, se harmonizarem e até mesmo se complementarem (OSÓRIO, 2000, p. 148), porém como bem explicita Celso Antônio Bandeira de Mello:
existe de um lado, o interesse individual, particular, atinentes à conveniência de cada um no que concerne aos assuntos de sua vida particular – interesse, este, que é o da pessoa ou do grupo de pessoas singularmente consideradas –, e que, de par com isto, existe também o interesse pessoal destas mesmas pessoas ou grupos, mas que comparecem enquanto partícipes de uma coletividade maior na qual estão inseridos (...). Então, dito interesse, o público – só se justifica na medida em que se constitui em veículo de realização dos interesses das partes que o integram no presente e das que o integrarão no futuro (MELLO, 2006, p. 58).
Diante desta ideia de interesse público como uma “dimensão dos interesses das individuais” (MELLO, 2006, p. 57) não se pode concluir pela semelhança dos dois. A abrangência do interesse público não engloba apenas os interesses individuais, mas existe, neste conceito, uma dimensão de sociedade, de utilidade de ordem social e existencial. O ideal é que ambos sejam atingidos sem restrições, mas é plenamente possível que, em algumas situações, existam divergências.
Ainda que não definido pela doutrina com clareza, o conceito exato de interesse público, toda a estrutura da definição se fundamenta na realização dos direitos fundamentais estabelecidos na Constituição Federal de 1988 direta ou indiretamente, isto é, decorrente de toda interpretação sistemática do ordenamento jurídico. Todos os princípios jurídicos estão vinculados e subordinados a eles.
A busca pela concretização dos direitos fundamentais e a aplicação do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular ocorrem apenas após a análise das circunstâncias de cada conflito de interesses que surge na atuação administrativa.
Para cada situação, a lei é uma referência, um ponto de partida. Sua aplicação requer a análise do contexto fático e o sopesamento das normas e princípios envolvidos. A maioria das perguntas só possui respostas a serem construídas, pois as leis não têm abrangência em todas as possíveis relações sociais.
Em relação ao princípio da supremacia do interesse público sobre o particular o Supremo Tribunal Federal já decidiu que:
“não há, no sistema constitucional brasileiro, direito e garantias que revistam de caráter absoluto, mesmo porque as razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas, individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas – e considerado o substrato ético que as informa – permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros” (MS n. 23.452, Relator o Ministro Celso de Mello, DJ de 12.05.00).
O princípio da supremacia do interesse público sobre o particular precisa se contextualizar com as prerrogativas do Estado Democrático de Direito:
“no Brasil, é certo, não há norma específica consagrando o interesse público como princípio geral da Administração Pública na Constituição Federal, mas tal princípio ostenta status constitucional, na medida em que consagra uma finalidade indisponível e imperativa da Administração Pública e, por conseguinte, de seus agentes, revelando-se imanente ao sistema” (OSÓRIO, 2000, p. 89).
A Constituição da República de 1988 garantiu e consolidou os chamados direitos de segunda geração – econômicos, sociais e culturais – e adotou como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana (artigo 1°, III), o que significa importante alteração no ordenamento jurídico brasileiro e no tratamento concedido pelo Estado ao direito à saúde. Consagrou uma nova era político-institucional no país ao adotar legitimamente o Estado democrático e adotar uma política de proteção social ampla e abrangente.
A saúde foi reconhecida como direito social dos cidadãos e, a partir daí, se inseriu entre os objetivos principais de alcance do Poder Público e da sociedade, que passaram a agir com a finalidade de assegurar uma nova ordem social, com base no bem-estar e na justiça social. Desde a Constituição da República Federativa do Brasil, o Estado está compelido juridicamente a realizar ações e serviços de saúde com o intuito de construir uma nova ordem social.
A proteção à saúde foi reconhecida como direito fundamental pela Constituição da República de 1988, possuindo, portanto, eficácia plena e aplicabilidade imediata. Contudo, como é notório, a assistência à saúde no Brasil é precária e desigual e muito embora o direito à saúde preceitue o acesso universal e integral, deve-se ponderar que a implementação de políticas públicas vincula-se a prestações materiais submetidas à dotação orçamentária dos entes federativos, bem como deve-se propiciar mais eficácia às decisões políticas, salvaguardando, primeiramente, as necessidades coletivas. A análise do tema deve pautar- se no fato de que constitui um equívoco afirmar que a negativa de fornecimento de determinado serviço significa a negativa do próprio direito do cidadão à saúde (GONTIJO, 2010).
Não se pode assegurar a garantia de um direito fundamental com plena assistência individual se violar norma legal estabelecida m direito fundamental mediante violação de dispositivos legais e normativos estabelecidos para concretizar uma garantia feita a todos. A distribuição gratuita de medicamentos, em especial, deve realizar-se segundo diretrizes de saúde básica, com o fim de atender o maior número possível de pessoas, sendo, por isso, necessária a realização de planejamento econômico baseado na avaliação da assistência farmacêutica a ser empreendida. (GONTIJO, 2010).
A regulamentação da matéria constitucional voltada para a saúde foi originada pela Lei Orgânica da Saúde, que sistematizou o Sistema Único de Saúde – SUS, definido como conjunto de ações e serviços de saúde, proporcionados por órgãos e instituições públicos.
Contudo, resta claro a necessidade de uma regulamentação mais adequada, apropriada, que leve em consideração todos os parâmetros e vertentes e, principalmente, todos as envolvidas e as três funções do Estado, já que estas serão atingidas e estão envolvidas no processo de garantia dos direitos fundamentais previstos na Constituição da República Federativa do Brasil.
O planejamento econômico deve ser definido, bem estruturado e fundamentado para evitar que a função Jurisdicional tenha uma abrangência dentro do Estado maior que a prevista quando se estabeleceu o princípio da separação dos poderes na República Federativa do Brasil e acabe desempenhando um papel que não lhe cabe, ao se tornar a única via possível de ter o direito à saúde efetivado.
Outro fator relevante deve ser mencionado, como, mais uma vez, ressaltou Guilherme Dias Gontijo no artigo “A Judicialização da Saúde”, qual seja, inibir a atual restrição do direito à saúde à mera oferta de tratamentos paliativos, que desconsidera o essencial caráter de promoção e prevenção de doenças e agravos e prejudica o atendimento em consonância com os princípios do SUS.
As decisões devem ser pautadas sob a possibilidade ou não das medidas assecuratórias do direito à saúde causar prejuízos ao bom andamento do serviço público da saúde e do equilíbrio econômico-financeiro do Estado, de forma que a garantia de todos os direitos fundamentais não fique prejudicada. Ainda que o oferecimento dos serviços de saúde à toda população não seja de qualidade, é fundamental a análise crítica da regulamentação de tais serviços que estão se tornando motivo de incontáveis demandas no Judiciário. Deve-se criar parâmetros e critérios bem específicos de controle das políticas públicas, de forma que a Justiça não acabe gerando mais desigualdades que aquelas já existentes no sistema brasileiro.
Segundo Luis Roberto Barroso (2008), judicialização significa que algumas questões de larga repercussão política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso Nacional e o Poder Executivo — em cujo âmbito se encontram o presidente da República, seus ministérios e a administração pública em geral. Como intuitivo, a judicialização envolve uma transferência de poder para juízes e tribunais, com alterações significativas na linguagem, na argumentação e no modo de participação da sociedade.
O artigo 196 da CF/88 dispõe que a “saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. O fato é que nem sempre, as políticas públicas são capazes de cumprir o estabelecido e, com isso, os cidadãos passam a cobrar e exigir do Estado a cobertura de procedimentos e medicação não incluídos no sistema.
Sob o entendimento de que a saúde é um direito fundamental, e como tal, com aplicabilidade direta e imediata, cria-se o entendimento que o Estado deve subsidiar o acesso integral e irrestrito da população a todos os procedimentos ligados à preservação da vida e da saúde, seja no sentido da prevenção como no tratamento de doenças.
Na procura, portanto, de exercer sua cidadania, o povo brasileiro tem acionado cada dia mais o Poder Judiciário, o que demonstra um amadurecimento da população em relação aos conceitos de democracia e participação popular, contudo, este incremento na demanda pode afetar conceitos basilares da República Federativa do Brasil, como o princípio da separação dos poderes e desequilibrar a administração do país e causar um impacto significativo em suas contas públicas.
Há uma posição majoritária dos tribunais superiores no sentido de repudiar regras da administração que restringem a prestação completa e irrestrita das demandas ligadas à garantia do direito à saúde. Neste sentido, cabe citar parte da decisão do Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal: Entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado a todos pela própria Constituição da República (art. 5°, “caput” e art. 196), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo – uma vez configurado esse dilema – que razões de ética-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: aquela que privilegia o respeito indeclinável à vida e saúde humanas.
É fundamental que se leve em consideração que a prestação indiscriminada de atendimentos ligados à saúde pode abalar o equilíbrio orçamentário de forma a comprometer o bom andamento do próprio Estado, mais do que isso, comprometer a viabilidade do exercício da administração pública.
Há um conflito de interesses e de direitos que deve ser ponderado e analisado cuidadosamente. Discute-se o direito à vida e à saúde no âmbito individual e coletivo, embora esta divisão não seja tão nítida e precisa quando se fala em garantias fundamentais que devem ser prestadas pelo Estado, já que ambas estão previstas na Constituição da República Federativa do Brasil e, para a satisfação e cumprimento das necessidades ditas coletivas, necessariamente, passamos pela esfera individual.
Outro aspecto deve, ainda, ser levado em consideração. A questão de que não são todos os cidadão brasileiros que têm acesso ao Poder Judiciário, razão pela qual, judicializar a saúde pode se tornar mais uma forma de gerar desigualdades em país um país já padecido neste dilema. Segundo Daniel Wang, professor de Direitos Humanos da London School of Economics, na conclusão extraída do trabalho “Tribunais como decisores de políticas de saúde”, o litígio de saúde no Brasil está fazendo o sistema público de saúde menos justo e racional.
Os tribunais estão criando um sistema público de saúde de dois níveis - um para aqueles que podem recorrer e ter acesso a qualquer tipo de tratamento, independentemente dos custos, e outro para o resto da população, que não tem acesso a cuidados restritos. A forma como o Judiciário decide tem também obrigado o Estado a fornecer drogas e serviços baseados em evidências científicas pobres e, às vezes, sem considerar a relação custo-efetividade ou as prioridades da saúde pública.
A judicialização da saúde, de forma indiscriminada e desprovida de critérios técnicos, pode gerar no próprio sistema e em toda a sociedade que dele depende consequências que ainda são incomensuráveis. A tripartição das funções delimita o uso de poder do estado. Cria-se um risco muito grande e uma insegurança generalizada ao permitir que uma destas funções interceda indiscriminadamente nas demais. Ao fundamentar esta intervenção em direitos fundamentais previstos na Constituição, o Judiciário tenta deixar de lado qualquer crítica ou contra-argumento, que se torna estéril diante da necessidade urgente de garantir o direito à saúde.
No momento em que a demanda pela garantia do direito à saúde chega aos Tribunais, não se trata mais de um direito geral e indeterminado, mas de um problema iminente que precisa de uma solução célere e eficaz. Com isso, o fato do Judiciário estar diante da obrigatoriedade de se ter uma resposta cogente e imperativa não pode lhe dar o poder de tomar decisões desconsiderando toda a instituição estatal e sua divisão de funções.
O Judiciário deveria, portanto, constar se existem políticas públicas capazes de suprir a demanda pretendida e quais os critérios exigidos pelo Estado para a sua concessão. Se existem uma norma para regulamentar determinada situação, a mesma deve ser seguida. Se não existe uma política pública previamente estabelecida, o Judiciário deve averiguar se as propostas e prioridades estabelecidas pelo Estado estão atendendo aos investimentos mínimos referidos pela Constituição da República.
O chamado mínimo existencial está relacionado às necessidades básicas do ser humano, ao conjunto de ações feitas pelo estado para garantia dos princípios e fundamentos que permitem o acesso de todos para se ter uma vida digna. Estão relacionados com os direitos sociais, econômicos e culturais, conhecidos como direitos de 2ª geração, entre eles, o direito à saúde.
Em relação à Teoria do Mínimo existencial, segundo Marmelstein (2009, p. 315), uma das vantagens da teoria é que os direitos sociais possuem eficácia jurídica, são reconhecidos de forma explícita e, dentro dessa dimensão, é possível a intervenção judicial para efetivar o direito.
Cabe ressaltar que as demandas feitas para efetivação do direito à saúde não podem ser julgadas sem dar a devida relevância para o aspecto econômico, o que significa analisar a possibilidade financeira do Estado para efetivação do pedido. È a reserva do possível, isto é, a disponibilidade do orçamento do estado para concretizar os direitos dos cidadãos.
Para que se possa alegar o princípio da reserva do possível, conforme ensina Cesar Pereira (2008, P. 319), necessário se faz que haja uma conjugação entre o binômio: a razoabilidade da pretensão do particular deduzida em face do Poder Público, de um lado; e a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetiva a prestação dele reclamada. Assim, os componentes do mencionado binômio (razoabilidade da pretensão + disponibilidade financeira do Estado) devem configurar-se de modo afirmativo e em situação de cumulativa ocorrência, pois, ausente qualquer desses elementos, descaracterizada estará a possibilidade estatal de efetivação do direito à saúde.
Neste entendimento, está claro o princípio da reserva do possível existe para fundamentar os limites do estado no prestação dos serviços da saúde por questão lógica, recursos financeiros.
Para melhor entender tais questões, cabe analisar a ADPF 45/DF, julgado pelo Ministro Celso de Mello.
EMENTA:
ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA "RESERVA DO POSSÍVEL". NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO "MÍNIMO EXISTENCIAL". VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO).
Nesta arguição de descumprimento de preceito fundamental, não foi julgado um pedido de tratamento de saúde específico, mas foram feitas valiosas análises e considerações sobre as limitações dos recursos do estado.
A decisão afirma que a formulação e a implementação de políticas públicas não se incluem, ordinariamente, no âmbito da função institucional do Poder Judiciário, mas que quando houver a omissão dos órgãos políticos competentes de modo a comprometer a eficácia e a integralidade dos direitos fundamentais, neste caso, excepcionalmente, esta competência pode ser atribuída ao Poder Judiciário.
Ainda sobre a ADPF 45/DF, julgado pelo Ministro Celso de Mello, esta assevera que que “a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais” - direitos fundamentais de segunda geração caracterizam-se pela forma gradual de seu processo de concretização e dependem, em grande medida, “de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado” e deixa claro que “a limitação de recursos existe e é uma contingência que não se pode ignorar”.
A partir deste ponto, a decisão analisa a “cláusula da reserva do possível” e ressalta que “comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política”.
Contudo, em contraposição, o Ministro observa que a referida cláusula, “não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais” e explica que a “reserva do possível” impõe condicionamentos à concretização de direitos de segunda geração, “de implantação sempre onerosa”, e que podem ser traduzidos no binômio: “(1) razoabilidade da pretensão em face do poder público e (2) existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetiva as prestações positivas dele reclamadas” .
Os direitos fundamentais previstos na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 deixaram de ser apenas normas formais, direitos positivados e alcançaram o patamar direitos subjetivos, com aplicabilidade direta e imediata pelos Tribunais do país.
A atuação do judiciário brasileiro na garantia de políticas públicas a quem as pleiteia concreta e casuisticamente tem a importância de permitir o acesso da população aos programas sociais definidos pelo Poder Público Executivo. O papel jurisdicional na garantia de políticas públicas assume extrema importância no caso da proteção específica do direito fundamental à saúde que está estritamente ligado ao direito à vida e o princípio da dignidade da pessoa humana.
Dispõe o art. 197 da Constituição da República de 1988: “São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público, dispor, nos termos da lei, sobre a sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado”.
Porém, essa tutela jurisdicional do direito à saúde acaba atingindo o princípio da Separação dos Poderes, também garantido na Constituição Federal de 1988, pois intervém na independência do Poder Executivo ou do Poder Legislativo ao analisar sobre o mérito administrativo e pode afetar o equilíbrio econômico-financeiro do Estado.
A questão central do debate é como a proteção do direito à saúde pode se harmonizar com os princípios constitucionais da separação dos poderes, da eficiência e da economicidade, da reserva do possível e do direito de todos ao equilíbrio econômico-financeiro do Estado.
Diante deste debate vem à tona o princípio da reserva do possível, conceito que vinculado à ideia de limite de recursos do Estado para prestação dos direitos sociais, de forma razoável, que tem origem alemã e sua construção teórica remonta à década de 70.
Neste contexto, o Estado deve demonstrar a existência de políticas públicas de saúde e que realização do tratamento não causa prejuízo a outras pretensões constitucionalmente protegidas. Trata-se muitas vezes de escolhas políticas que devem ser consideradas também sob este prisma.
Por esta razão, é fundamental o respeito às políticas e decisões estabelecidas por meio da legislação específica, pois a falta de bases normativas muitas vezes geram decisões judiciais sem a aplicação de um critério coerente e lega dos recursos públicos.
Muito embora a saúde pública do Brasil seja vergonhosa e suas políticas públicas sejam ineficientes e corrompidas, sem qualquer tipo de efetividade dos programas sociais para promoção de melhor qualidade no acesso à saúde, ao legitimar o Poder Judiciário à uma intervenção cada vez maior no sentido de tentar garantir o direito em comento, tal proteção está sujeita à críticas e também a novos modelos que surgem com o prática constante. Uma delas está na falta de padronização nas decisões judiciais, e mais do que isso, ao fato de que a função judicial ainda não alcançar grande parte da população nacional.
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TJRS. AI nº 70019001916. Julgado em 26/04/2007, Relatora Desembargadora Maria Isabel de Azevedo Souza.
Analista do Ministério Público de Minas Gerais e Professora na Fundação Pedro Leopoldo. Formação Administração de Empresas e Direito.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RIBEIRO, Luciana Fernandes. Os limites da intervenção do Poder Judicário na implementação do direito social à saúde Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 jul 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47039/os-limites-da-intervencao-do-poder-judicario-na-implementacao-do-direito-social-a-saude. Acesso em: 23 dez 2024.
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