RESUMO: O presente artigo trata inicialmente dos direitos fundamentais, fazendo uma breve análise do seu conteúdo e das suas gerações, para finalmente estudar a sua eficácia - sobretudo a horizontal. Verifica-se que os direitos fundamentais possuem uma eficácia horizontal, na medida em que são aplicados também nas relações privadas, não mais se esgotando no sentido de ser um dever imposto ao Estado, devendo também ser observador pelos particulares nas relações entre si.
Palavras-chave: Direitos fundamentais. Eficácia horizontal. Aplicação nas relações privadas.
1. INTRODUÇÃO: DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL
O tema da aplicação dos direitos fundamentais nas relações estritamente privadas surge como consequência lógica e natural da chamada constitucionalização do direito civil [1].
A constitucionalização do direito civil se insere no
âmbito da necessária releitura do direito civil, com a redefinição das categorias jurídicas civilistas por meio de fundamentos principiológicos que a Constituição assegura [2].
Dessa forma, a doutrina explica que
a constitucionalização do direito civil não implica (simplesmente) estabelecer limites externos à atividade privada. Não se trata apenas disso. É muito mais. A Constituição Federal de 1988 impôs uma releitura dos institutos fundamentais do direito civil, em razão de tê-los reformulado internamente, em seu conteúdo. Trata-se, pois, de uma alteração na estrutura intrínseca dos institutos e conceitos fundamentais de Direito Civil, reoxigenando-os e determinando a necessidade de uma redefinição de seus contornos, à luz da nova tabua valorativa determinada pela Constituição cidadã [3].
2. DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. NOÇÕES GERAIS
Os direitos fundamentais têm como sujeitos passivos, tradicionalmente, o Poder Público, que se configura como destinatário precípuo das obrigações decorrentes dos direitos fundamentais. Isso decorre do fato de que os direitos fundamentais foram concebidos como verdadeiros espaços de imunidade do indivíduo em face dos poderes do Estado [4].
Nesse ponto, é importante destacar que
Os direitos fundamentais assumem posição de definitivo realce na sociedade quando se inverte a tradicional relação entre Estado e indivíduo e se reconhece que o indivíduo tem, primeiro, direitos, e, depois, deveres perante o Estado, e que os direitos que o Estado tem em relação ao individuo se ordenam ao objetivo de melhor cuidar das necessidades dos cidadãos [5].
A doutrina costuma situar a evolução dos direitos fundamentais em 3 gerações. A primeira abrange a necessidade de se fixar uma esfera de autonomia pessoal refrataria as expansões do Poder. Tais direitos consubstanciam postulados de abstenção dos governantes, criando obrigações de não fazer, ou seja, de não intervir na esfera de cada indivíduo, tendo como marcos as Revoluções americana e francesa. São exemplos a liberdade de reunião e a inviolabilidade de domicílio [6].
Todavia, as crises sociais e econômicas do século XX tornaram necessário que ao Estado não mais fosse reservado o simples papel de vilão dos direitos individuais. Na segunda geração dos direitos fundamentais, ganha relevo o princípio da igualdade, surgindo a preocupação com direitos a prestações. Os direitos de segunda geração são também denominados de direitos sociais, por se relacionarem a reivindicações de justiça social [7].
Por fim, os direitos de terceira geração tem como característica a titularidade difusa ou coletiva, sendo concebidos para a proteção não do homem isoladamente, mas de coletividades ou grupos [8].
3. A APLICACAO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELACOES PRIVADAS
Conforme explica a doutrina, os direitos fundamentais são garantias constitucionais universais, e como tal, não podem ficar represadas nas relações de direito público, sobretudo sob pena de caracterizar o direito civil como um ramo da ciência jurídica imune à incidência da norma constitucional [9].
Para Dirley da Cunha Junior,
os direitos fundamentais não são direitos oponíveis apenas aos poderes públicos, irradiando efeitos também no âmbito das relações particulares, circunstância que autoriza o particular a sacar diretamente da Constituição um direito ou uma garantia fundamental para opô-lo a outro particular [10].
Como exemplo de eficácia horizontal dos direitos fundamentais, a doutrina aponta a exclusão da pessoa jurídica de um associado que pratique condutas inconvenientes e prejudiciais à associação. Cite-se também a aplicação de multa ao condômino dito antissocial, ou seja, que incomoda a paz coletiva de um condomínio. Em dadas situações, tais condutas devem ser precedidas de contraditório e ampla defesa, garantidos constitucionalmente no art. 5º, LV [11].
Como consequência da aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas, é possível mencionar a mitigação do princípio da autonomia da vontade, da liberdade de contratar, o qual sempre foi diretriz do direito civil [12].
Conforme explica Bernardo Gonçalves Fernandes, a formulação clássica dos direitos fundamentais parte de uma matriz eminentemente liberal. Isso porque os direitos fundamentais se consubstanciavam em limites ao exercício do poder estatal, ou seja, a sua incidência foi teorizada dentro da dicotomia Estado-Particular. Tal quadro teve que ser alterado diante da complexidade e desenvolvimento de novos paradigmas jurídicos [13].
Nesse contexto, a relação entre Estado e particular passa a ser denominada de eficácia vertical dos direitos fundamentais, a qual, é importante mencionar, continua a existir. No entanto, surge a necessidade de tutelar o particular na sua relação com outros particulares, falando-se, nesse ponto, em eficácia horizontal dos direitos fundamentais [14].
Conforme aponta a doutrina de Gilmar Mendes,
definir quando um direito fundamental incide numa relação entre particulares demanda exercício de ponderação entre o peso do mesmo direito fundamental e o principio da autonomia da vontade. Há de se efetuar essa ponderação à vista de casos concretos, reais ou ideados [15].
Conforme Daniel Sarmento,
O Estado e o Direito assuem novas funções promocionais e se consolida o entendimento de que os direitos fundamentais não devem limitar o seu raio de ação às relações políticas, entre governantes e governados, incidindo também em outros campos, como o mercado, as relações de trabalho e a família [16].
3.1 APLICAÇÃO DIRETA E INDIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Sobre a aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas, surgiram duas teses - uma aplicação direta e indireta.
A eficácia indireta e mediata dos direitos fundamentais significa que a proteção aos direitos fundamentais em relações privadas somente pode se dar a partir da edição de leis infraconstitucionais voltadas para referidas relações. Bernardo Gonçalves, citando Robert Alexy, explica que
a aplicação dos direitos fundamentais na relação entre particulares seria sempre mediada pela atuação do legislador (e sua produção normativa ordinária) ou mesmo pelo Juiz que deveria interpretar o direito infraconstitucional (privado) a luz das normas de direitos fundamentais [17].
Conforme aponta a doutrina,
a assunção de tal tese adota uma perspectiva hipertorfiada do que seja autonomia privada e fragiliza a si mesma, uma vez que passa a ser dependente da produção legislativa infraconstitucional (e da interpretação da mesma) [18].
Essa teoria pretende um maior resguardo ao principio da autonomia e do livre desenvolvimento da personalidade. Nesse contexto, ao recusar a incidência direta dos direitos fundamentais na esfera privada, alerta que
uma tal latitude dos direitos fundamentais redundaria num incremento do poder do Estado, que ganharia espaço para uma crescente ingerência na vida privada do individuo, a pretexto de fiscalizar o cumprimento dos deveres resultantes da incidência dos direitos fundamentais sobre as relações particulares [19].
A outra corrente entende que a eficácia dos direitos fundamentais e direta e imediata. Destarte,
Seus defensores afirmam que os direitos fundamentais, tal como previstos no texto constitucional, ja trazem condições de plena aplicabilidade nas relações entre particulares, dispensando qualquer tipo de mediação infraconstitucional, não necessitando, portanto, da atuação (sindicabilidade) do legislador nem mesmo da interpretação da legislação infraconstitucional à luz da Constituição. Nesse sentido, com base na perspectiva da máxima efetividade a Constituição (com seu rol de direitos fundamentais) deveria ser aplicada diretamente nas relações entre particulares [20].
A teoria da eficácia direta ou imediata
sustenta que os direitos fundamentais devem ter pronta aplicação sobre as decisões das entidades privadas que desfrutem de considerável poder social, ou em face de indivíduos que estejam, em relação a outros, numa situação de supremacia de fato ou de direito [21].
Segundo ensina Gilmar Mendes,
ambas as teorias - a primeira com o seu cuidado com a máxima efetividade dos direitos fundamentais e a outra com o seu desvelo pela autonomia individual e a segurança jurídica - baseiam-se em valores encarecidos pela ordem constitucional [22].
E possível afirmar que o STF vem aplicando de forma direta os direitos fundamentais nas relações privadas. Nesse sentido, é importante citar precedente da Suprema Corte:
EMENTA: SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais. III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃO-ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL.APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO. As associações privadas que exercem função predominante em determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, integram o que se pode denominar de espaço público, ainda que não-estatal. A União Brasileira de Compositores - UBC, sociedade civil sem fins lucrativos, integra a estrutura do ECAD e, portanto, assume posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus associados. A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de suas obras. A vedação das garantias constitucionais do devido processo legal acaba por restringir a própria liberdade de exercício profissional do sócio. O caráter público da atividade exercida pela sociedade e a dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88). IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO. grifos nossos
4. CONCLUSÃO
Diante do exposto, conclui-se que, inicialmente, os direitos fundamentais surgiram como uma forma de proteção do indivíduo em face da atuação estatal, ou seja, tais prerrogativas foram concebidas como uma forma de tutela, impondo um dever de abstenção ao Estado.
No entanto, verificou-se que não apenas o ente estatal deveria ser considerado sujeito passivo dos direitos fundamentais, mas também os particulares. Assim, mesmo nas relações privadas deve incidir a proteção dos direitos fundamentais do indivíduo, conforme se verifica inclusive pela análise da jurisprudência, que tem aplicado esse entendimento.
Referências:
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de direito constitucional. 2ª edição. Salvador: Juspodivm, 2008.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil. Volume I. 12ª edição. Salvador: Juspodivm, 2014.
FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de direito constitucional. 3ª edição. São Paulo: Lumen Juris, 2011.
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
NOTAS
[1] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil. Volume I. 12ª edição. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 68.
[2] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil. Volume I. 12ª edição. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 65.
[3] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil. Volume I. 12ª edição. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 63.
[4] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 374.
[5] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 298.
[6] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 299.
[7] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 300.
[8] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 300.
[9] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil. Volume I. 12ª edição. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 68.
[10] CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de direito constitucional. 2ª edição. Salvador: Juspodivm, 2008, p. 56.
[11] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil. Volume I. 12ª edição. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 68.
[12] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil. Volume I. 12ª edição. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 70.
[13] FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de direito constitucional. 3ª edição. São Paulo: Lumen Juris, 2011.p. 482
[14] FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de direito constitucional. 3ª edição. São Paulo: Lumen Juris, 2011.p. 483.
[15] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 301.
[16] SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 323.
[17] FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de direito constitucional. 3ª edição. São Paulo: Lumen Juris, 2011.p. 485.
[18] FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de direito constitucional. 3ª edição. São Paulo: Lumen Juris, 2011.p. 485.
[19] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 385.
[20] FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de direito constitucional. 3ª edição. São Paulo: Lumen Juris, 2011.p. 486.
[21] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 383.
[22] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 385.
Advogada. Graduada pela Universidade Católica de Pernambuco.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MONTEIRO, Clarissa Ferraz. A aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 jul 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47058/a-aplicacao-dos-direitos-fundamentais-nas-relacoes-privadas. Acesso em: 23 dez 2024.
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