RESUMO: O objetivo desse trabalho é analisar as implicações da aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas, especificamente, como se dá a relação com a autonomia privada. Para tanto foi preciso estudar o conceito de direitos fundamentais, principalmente, o princípio da dignidade da pessoa humana. Ainda no que tange à análise dos direitos fundamentais, foi realizada uma análise histórica do tema. Foi necessário também vergastar a atual concepção de autonomia privada. Após apreensão desses dois sustentáculos principais do tema em comento, passou-se ao discorrer sobre as formas de eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, bem como a investigar a posição da doutrina e jurisprudência sobre o tema e também como a ponderação pode compatibilizar os postulados.
Palavras-chave: 1. Direitos fundamentais; 2. Evolução histórica; 3. Aplicação aos particulares.
1. INTRODUÇÃO
Dentre os efeitos da nova ordem constitucional, inaugurada pela Constituição de 1988, exsurgiu a denominada constitucionalização do direito civil ou direito civil constitucional. Esse movimento doutrinário e jurisprudencial que visa a imprimir uma reinterpretação do Código Civil, em consonância com a Constituição Federal. Assim, relativiza-se o princípio da autonomia privada para abarcar outros princípios superiores, a saber, dignidade da pessoa humana, eficácia horizontal dos direito fundamentais, função social da propriedade, dentre outros.
Com essa nova ótica, a aplicação dos Direitos Fundamentais inicialmente pautada na defesa do cidadão contra o abuso estatal acabou por irradiar-se em diversos ramos do Direito. Nos denominados Estados de Direito essa característica acabou por ser ressaltada em virtude da existência de uma Constituição que serve de alicerce para toda legislação.
Ocorre que essa relativização da autonomia privada não foi realizada sem grandes percalços. Houve e, ainda há, críticas ou incertezas acerca da profundidade dessa abordagem.
Há décadas que se discute a relação que os particulares teriam com os direitos fundamentais, inclusive, em muitos Estados, como é o caso do Brasil, já se vislumbra uma posição sedimentada no sentido da sua aplicabilidade, no entanto, a questão não se esgotou. Apesar de ser majoritária a aplicabilidade direta dos direitos fundamentais na seara privada ainda existem muitos aspectos discutidos, tais quais: a delimitação dessa incidência tratada especificamente dentro das gerações dos direitos fundamentais; o papel dos Poderes Judiciário e Legislativo na aplicação de tais direitos; a posição da sociedade, mormente nos direitos transindividuais; a ponderação de princípios travada dentro da moldura axiológica da constituição; e – notadamente – o embate com a autonomia privada.
Portanto, a despeito de já estar sendo debatida há alguns anos tanto na jurisprudência quanto na doutrina de vários ordenamentos jurídicos, o tema ainda possui muitas questões um tanto quanto cinzentas, que anseiam por maiores discussões.
Esse é o objeto do nosso estudo. Friso que não ambicionamos se imiscuir em todos os detalhes, sobretudo pela limitação física existente em um trabalho desta espécie. Cingir-nos-emos a questões elementares, procurando entender, dentro do contexto histórico, as conjunturas políticas, sociais e econômicas que confluíram para o surgimento dos conceitos basilares da questão.
2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
2.1. Direitos Fundamentais e o Estado Liberal
Com a desenvoltura do comércio ultramarino e a expansão das fronteiras comerciais, a burguesia erigiu-se à condição de classe social triufante. O Estado Liberal que floresceu durante o século XVIII, influenciado pelas ideias iluministas e pelas aspirações dessa classe burguesa consistiu na sua expressão. Tivemos o surgimento de Constituições que contemplavam direitos e garantias aos cidadãos, reavivando, destarte, os ditames do jusnaturalismo.
O Iluminismo surgiu no intento de se contrapor ao Absolutismo Monárquico e para contestar o conceito estamental de classes que concedia inúmeros privilégios à nobreza. Todo esse contexto político-social convergiu para o conceito jurídico de Estado Liberal. Sobre isso assevera com propriedade Daniel Sarmento[1]:
Durante o iluminismo, foram construídos os pilares do conceito moderno de direitos do homem. A idéia de que o homem é dotado de direitos inatos, que precedem o Estado e a comunidade política, e que têm de ser respeitados e garantidos pelo Poder Público é uma idéia essencialmente Iluminista, que encontrou a sua expressão mais eloqüente no constitucionalismo, movimento que traduziu, no âmbito jurídico, as idéias dos filósofos da Ilustração.
Por força de sua associação ao movimento contrário aos abusos do Poder Estatal, o liberalismo consolidou-se sobre o apanágio da limitação da autoridade e da divisão da autoridade.
Com efeito, as ideias Iluministas influenciaram na construção de um constitucionalismo voltado para os direitos fundamentais do homem. As arbitrariedades perpetradas pelos monarcas absolutistas necessitavam ser combatidas com postulados que valorizassem os direitos mais elementares do ser humano. Nesse diapasão eclodiram movimentos ao redor do mundo, como a Revolução Francesa, movimento que melhor traduziu todo esse conjunto de ideias, e a Independência e consequente fundação do Estado norte-americano. Nesse sentido disserta Ingo Wolfgang Sarlet[2]:
A contribuição francesa, no entanto, foi decisiva para o processo de constitucionalização e reconhecimento de direitos e liberdades fundamentais nas Constituições do século XIX. Cabe citar aqui a lição de Martin Kriele, que, de forma sintética e marcante, traduz a relevância de ambas as declarações para a consagração dos direitos fundamentais, afirmando que, enquanto os americanos tinham apenas direitos fundamentais, a França legou ao mundo os direitos humanos. Atente-se, ainda, para a circunstância de que a evolução no campo da positivação dos direitos fundamentais, recém-traçada de forma sumária, culminou com a afirmação (ainda que não em caráter definitivo) do Estado de Direito, na sua concepção liberal-burguesa, por sua vez determinante para a concepção clássica dos direitos fundamentais que caracteriza a assim denominada primeira dimensão (geração destes direitos).
Sem embargo, as ideias dos pensadores iluministas permearam dois grandes eventos do final do século XVIII, que foram absolutamente decisivos para a consolidação dos direitos do homem: a Revolução Francesa e o movimento que culminou na Independência e na fundação do Estado norte-americano.
Estes episódios seminais da história da humanidade marcaram o início de uma nova era. Basta lembrar que os ideais da Revolução Francesa – igualdade, liberdade e fraternidade – são ainda hoje a fonte axiológica de onde promanam, como de um manancial inesgotável, os direitos fundamentais, modelados por novas exigências impostas pela consciência ética dos povos, que a história vai tratando de incorporar ao patrimônio jurídico da humanidade.
Foi durante estes movimentos revolucionários que vimos surgir conceitos basilares do constitucionalismo ocidental. Dentro do contexto do estado liberal-burguês, ao surgimento dos primeiros direitos fundamentais, quais sejam, os direitos de primeira geração ou dimensão, como pugnam alguns.
Como vimos, a sociedade do século XVIII, ansiava por direitos e garantias que protegessem os cidadãos de um poder quase que ilimitado do Estado. A classe burguesa, que se tornava cada vez mais forte, pois auferira riqueza com as práticas mercantilistas, necessitava de um cenário mais propício ao desenvolvimento comercial.
Foi a partir desses anseios que o constitucionalismo da época concebeu os direitos fundamentais de primeira geração. São os direitos civis e políticos, oponíveis frente ao estado, como garantia de um individualismo natural do homem, baseado em um núcleo mínimo existencial de direitos inerentes à pessoa humana que deveriam permanecer intocados pelo Poder do Estado. Possui um cunho eminentemente negativo, pois se trata de um dever de abstenção do Estado frente à autonomia privada. Cumpre destacarmos, pela sua lucidez e propriedade, novamente o ensinamento de Ingo Sarlet[3]:
Os direitos fundamentais, ao menos no âmbito de seu reconhecimento nas primeiras Constituições escritas, são o produto peculiar (ressalvado certo conteúdo social característico do constitucionalismo francês), do pensamento liberal-burguês do século XVIII, de marcado cunho individualista, surgindo e afirmando-se como direitos do indivíduo frente ao Estado, mais especificamente como direitos de defesa, demarcando uma zona de não-intervenção do Estado e uma esfera de autonomia individual em face de seu poder. São, por este motivo, apresentados como direitos de cunho “negativo”, uma vez que dirigidos a uma abstenção, e não a uma conduta positiva por parte dos poderes públicos, sendo, nesse sentido, “direitos de resistência ou de oposição perante o Estado”. Assumem particular relevo no rol desses direitos, especialmente pela sua notória inspiração jusnaturalista, os direitos à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade perante a lei. São, posteriormente, complementados por um leque de liberdades, incluindo as assim denominadas liberdades de expressão coletiva (liberdades de expressão, imprensa, manifestação, reunião, associação, etc.) e pelos direitos de participação política, tais como o direito de voto e a capacidade eleitoral passiva, revelando, de tal sorte, a íntima correlação entre os direitos fundamentais e a democracia. Também o direito de igualdade, entendido como igualdade formal (perante a lei) e algumas garantias processuais (devido processo legal, habeas corpus, direito de petição) se enquadram nessa categoria.[...].
O núcleo de direitos fundamentais elencado nos textos constitucionais equaciona a relação entre o Estado e o cidadão. No conceito liberal-burguês o papel do Estado limitava-se a não molestar os seus súditos em seus direitos mais fundamentais, dentro os quais, destaca-se direito à liberdade e o direito à igualdade.
No entanto, no decorrer dos anos, essa ampla liberdade acabou por gerar consequências desagradáveis. A burguesia acabou traída por suas próprias convicções ao acreditar que a incondicional proteção da liberdade acalmaria as classes mais desfavorecidas e lhe asseguraria uma ampla estabilidade política.
Diante da excessiva ausência de intervenção do poder estatal, as relações contratuais passaram a ser travadas em manifesta desigualdade de condições. Em razão disso os abusos que até então eram cometidos pelo Estado, passaram a ser cometidos pelos cidadãos em suas relações sociais.
Tal posicionamento do Estado, quedando-se inerte diante das crescentes desigualdades sociais que advinham, sobretudo, do processo de industrialização, colocou em crise o Estado Liberal. A excessiva distância existente entre Estado e Sociedade, decorrente do dever de não intervenção do Estado na autonomia privada, começou por desenfrear um processo de enfraquecimento da liberdade individual, visto que as relações jurídicas estabelecidas entre os particulares passagem a sofrer com a prevalência do poderia econômico.
Ou seja, a tão almejada liberdade acabou por mitigar o próprio princípio da igualdade ao possibilitar que a natural desigualdade existente entre os cidadão passasse a não ter limites em virtude da liberdade que cada um tinha de dispor sobre seus direitos. Nesse sentido, Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco[4]:
O descaso para com os problemas sociais, que veio a caracterizar o État Gendarme, associado às pressões decorrentes da industrialização em marcha, o impacto do crescimento demográfico e o agravamento das disparidades no interior da sociedade, tudo isso gerou novas reivindicações, impondo ao Estado um papel ativo na realização da justiça social. O ideal absenteísta do Estado liberal não respondia, satisfatoriamente, às exigências do momento. Uma nova compreensão do relacionamento Estado/sociedade levou os poderes públicos a assumir o dever de operar para que a sociedade lograsse superar as suas angústias estruturais. Daí o progressivo estabelecimento pelos Estados de seguros sociais variados, importando intervenção intensa na vida econômica e a orientação das ações estatais por objetivos de justiça social.
Além dessa natural depreciação das relações privadas causada pela adoção da estrita igualdade formal, outra grande mudança ocorreu: a emergência das duas grandes guerras mundias no início do século XX. Principalmente, com o fim da segunda guerra, ganharam força ideias como: a socialização do Direito, com a consequente relativização do dogma da autonomia privada, a mudança da base subjetiva dos negócios jurídicos, a ampliação do poder de intervenção do Estado na economia e nas relações entre particulares, concedendo ao direito privado uma nova roupagem.
Essa socialização do direito e as desigualdes oriundas do exacerbamento do princípio da liberdade culminaram numa nova vertente do direito de liberdade que, em face dos preceitos de equidade, função social, boa-fé objetiva, equilíbrio obrigacional, eticidade acarretou numa nova concepção de autonomia privada e liberdade contratual. Sobre essa nova visão dos contratos impende trazer a lição de Cláudia Lima Marques[5]:
Esta renovação do contrato à procura de equidade, da boa-fé e da segurança nas relações contratuais vai ser aqui chamada de socialização da teoria contratual. É importante notar que esta socialização, na prática, se fará sentir em um poderoso intevencionismo do Estado na vida dos contratos e na mudança dos paradigmas, impondo-se o princípio da boa-fé objetiva na formação e na execução das obrigações. A reação do direito virá através de ingerências legislativas cada vez maiores nos campos antes reservados para a autonomia da vontade, tudo de modo a assegurar justiça e o equilíbrio contratual na nova sociedade de consumo.
2.2. As modificações ocasionadas pelo estado social
Consoante mencionamos, o ideário Social não surgiu de forma abrupta. Foi algo construído ao longo dos anos, várias correntes foram surgindo e se contrapondo aos postulados liberais, entre as quais, o marxismo. Karl Max discordava veementemente do modelo de governo defendido pela burguesia. Asseverava que o Estado não poderia ficar como mero expectador diante do patente desequilíbrio existente entre o poderio econômico da burguesia e a desprotegida classe proletária.
Foi na virada do século XIX para o século XX, que começou a ganhar forma o conceito de Estado do Bem Estar Social, o Welfare State. Na verdade, esse novo estado representa uma mutação do antigo Estado liberal, tanto é que alguns aspectos deste último ainda poderá ser identificados naquele, especialmente no que concerne à ordem capitalista.
A derrocada do estado liberal não correspondeu a uma mitigação da liberdade, mas sim numa nova leitura, mais condizente e hamorniosa com o princípio da igualdade. O estado passa a se destacar pela efetiva realização dos direitos fundamentais. A proteção, que até então restringia-se à não interferência no âmbito de liberdade dos indivíduos, desdobra-se, por sua vez, em um novo atributo dos direitos fundamentais: o dever de proteção em relação não apenas ao próprio Estado, mas sobretudo em face dos particulares.
Do ponto de vista jurídico, foi de grande importância o surgimento dessa dimensão objetiva dos direitos fundamentais. Pois, a partir de então, passou-se a conceber os direitos fundamentais não mais como apenas um conjunto de direitos subjetivos titularizados pelos cidadãos que refreavam o excesso de poder estatal, mas sim em conjunto de valores que se incrusta por todo o ordenamento jurídico. Estes princípios passam a ser interpretados como norteadores da atividade estatal no afã de proporcionar uma verdadeira concreção desses direitos. O Estado passa a possuir uma atuação positiva frente aos cidadãos.
Surgiu assim, um conjunto de direitos sociais prestacionais, como o direito à saúde, à educação, ao trabalho e etc, isto é, direitos que possuem um cunho econômico, social e cultural. A doutrina os denomina de Direitos fundamentais de segunda geração ou dimensão.
A partir dessa nova concepção, tivemos uma nova diretriz na relação entre o Estado e os cidadãos. Aquele adquiriu mais obrigações perante estes. Não basta, tão somente, que o poder público se abstenha de interferir em determinados setores da vida privada, incumbe, outrossim, que diligencie para efetivar os direitos e garantias fundamentais elencados a nível constitucional.
Esse novo paradigma foi por demais importante para o surgimento da discussão em torno da aplicabilidade dos direitos fundamentais nas relações travadas entre os particulares. O contrato e a autonomia privada, por imperativo de adequação ao processo histórico e dialético, percorrem um caminho de restruturação, no qual a função social e o equilíbrio contratual, caracterizados como elementos imanentes ao Estado Social, foram os principais responsáveis pela condução de numa nova concepção de contrato.
Com essa nova postura, o Estado passa a possuir um caráter mais paternalista. Esse dirigismo estatal fortalece sobremaneira o Poder Executivo, pois proporciona-lhe um maior poder de intervenção, sobretudo na regulação de setores econômicos. Essa atividade inteventiva fora crucial para uma nova interpretação da autonomia privada.
Nessa nova visão, o negócio jurídico perdeu sua base essencialmente subjetivista pautado pela livre pactuação entres as partes e passou a ter um caráter mais objetivo caracterizado pela existência de “cláusulas gerais”, de “conceitos indeterminados” e de “preceitos de ordem pública”. Esses mecanismos também acabaram por limitar o princípio do pact sunt servanda.
Esse intervencionismo no intuito de equilibrar as relações acabou culminando numa nova visão de igualdade. Nesse sentido vale destacar o magistério de Thiago Sombra[6]:
O Estado Social, enquanto resultado da reestruturação histórico-dialética do Estado Liberal, destaca-se, pois, pela atuação nas duas vertentes de maior descaso por parte deste último: a concretização do princípio da igualdade material e a extensão da eficácia dos direitos fundamentais às relações entre particulares.
O Estado Social, enquanto resultado da reestruturação histórico-dialética do Estado Liberal, destaca-se, pois, pela atuação nas duas vertentes de maior descaso por parte deste último: a concretização do princípio da igualdade material e a extensão da eficácia dos direitos fundamentais às relações entre particulares.
Por conseguinte, é com esse novo Estado Social que a teoria da eficácia dos direitos fundamentais entre particulares ganhará contornos substancialmente precisos. A antiga separação estanque entre o público e privado passa a ficar confusa. Ainda dentro dessa nova visão de Estado, exsurge a noção de Constituição como representação da ordem jurídica da sociedade e não apenas da organização do poder político estatal.
Essa nova visão de Constituição em que os valores por ela dispostos passam a incidir na relação de direito privado decorre também por influência do pós-guerra. Nesse âmbito destaca-se a primazia do Princípio da dignidade da pessoa humana mediante o qual o indíviduo perde a conotação de ser patrimonializado para ocupar a posição de ser personalizado.
Assim não se coaduna mais com essa nova realidade, a existência de contratos que desqualifiquem a condição de ser humano, pode-se dizer que o contrato passa também a ser um instrumento de realização dos direitos fundamentais.
Não obstante tais modificações, com a chegada da crise do petróleo na década de 70, o Estado do Bem Estar Social passa a ser contestado e novas ideias vão surgindo, que posteriormente ganham força com a chegada da globalização. As duas crises do petróleo dos anos 70 refrearam o crescimento econômico de muitos países. A partir de então, iniciou-se uma estagnação econômica que perdurou durante a década de 80. Esse cenário contribuiu para o surgimento de políticas neoliberais e consequentemente o início do processo de globalização.
A questão é que, o dirigismo estatal do Welfare State proporcionou uma hipertrofia do Estado, sobrecarregado com políticas públicas intervencionistas. No intento de traçar novas diretrizes, em 1989, foi realizado o denominado Consenso de Washington, evento que ilustra a nova ordem mundial que exsurge.
Podemos concluir que o processo de globalização trouxe consigo políticas neoliberais que se contrapõem às ideias consignadas no modelo social de Estado. As ideias fomentadas, notadamente nos anos 90, de privatizações, com a conseqüente instituição de agências reguladoras, flexibilização de leis trabalhistas, livre comércio, enfim, toda a política do Estado mínimo, que procura regular a economia através da mão invisível do mercado, colocaram em xeque o modelo do Estado do Bem Estar Social.
Tal conjuntura dá azo à discussão em torno do dirigismo estatal, do paternalismo das constituições sociais. A despeito de estarmos vivenciando uma crise do Welfare State, não podemos olvidar que a história foi testemunha do quão árduo e insensível são as leis mercantis para com as classes menos favorecidas.
3. APLICAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS
Fixadas o substrato teórico e histórico sob o qual repousam os direitos fundamentais, passamos agora a adentraremos no cerne do problema, ou seja, a partir desse momento trataremos especificamente das teorias de aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas.
Depois de traçarmos sinteticamente as principais premissas teóricas que dão suporte ao tema, procuraremos discutir, dentro do limite físico que nos impõe um trabalho monográfico dessa espécie, obviamente, a problemática da eficácia e da ineficácia da dimensão horizontal dos direitos fundamentais.
Neste capítulo, nos valeremos do direito comparado para dar um maior suporte ao tema, dado que, diversos países tratam o tratam de forma peculiar e adotam teorias diversas.
Além das principais teorias (ineficácia, eficácia mediata e eficácia imediata) abordaremos também de forma sucinta outras teorias que ou perfilham posição intermediária ou tentam misturar alguns conceitos das principais.
Por fim, assinalamos que quando nos reportarmos à teoria adotada pelo nosso ordenamento jurídico, não nos aprofundaremos no exemplo brasileiro, pois dedicaremos capítulo próprio para essa temática.
3.1. A ineficácia horizontal dos direitos fundamentais
Inicialmente, analisaremos a posição daqueles que negam a aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas. É denominada de teoria da ineficácia horizontal dos direitos fundamentais. Há quem entenda que esta teoria seja incongruente com os princípios informadores de um Estado Democrático de Direito.
Entretanto, em verdade, existem países democráticos que negam a aplicação dos direitos fundamentas nas relações travadas entre particulares. O exemplo mais ilustrativo disso é o caso dos Estados Unidos da América e a doutrina do State Action que aborda a questão de uma forma bem peculiar.
Os defensores desta teoria utilizam-se do argumento liberal que concebe os direitos fundamentais com o exclusivo intuito de proteger os particulares somente em face dos abusos do Poder estatal. Esta corrente concebe, em termos gerais, o Estado como o único possível ofensor dos direitos e garantias individuais.
Não se vislumbra a possibilidade de eventuais litígios entre particulares serem disciplinados mediante a aplicação direta dos princípios fundamentais elencados no texto constitucional.
Nesse tópico é imprescindível nos valermos do direito comparado para traçar algumas considerações sobre a doutrina do State Action que vigora do ordenamento jurídico norte-americano.
Para que possamos entender essa doutrina, não podemos olvidar de algumas peculiaridades do ordenamento jurídico dos Estados Unidos. No sistema romano-germânico impera a aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas. Alguns adotam a aplicação mediata e outros a imediata, estabelecendo algumas nuances quanto a delimitação dessa incidência. Por outro lado, é consabido que os EUA adotam o sistema da Common Law, fato que fortalece o papel dos tribunais, sobretudo das Cortes Constitucionais.
Outro ponto que merece destaque no sistema norte-americano é a forma como foi concebido o federalismo americano. Sabemos que desde a época das 13 colônias cada ente da federação possui uma considerável autonomia. Em razão dessa característica, alguns defensores da teoria do State Action asseveram que, para o ordenamento jurídico estadunidense, esta doutrina é a mais compatível, pois preserva a autonomia dos entes federados, já que, caso se vislumbrasse a aplicação direta dos princípios fundamentais constitucionais aos particulares, seria necessária uma maior atuação e consequente intervenção da Suprema Corte nos Estados-membros.
Virgílio Afonso da Silva[7], discorrendo sobre o tema, assim se refere a essa teoria:
[...] direitos fundamentais são aplicáveis somente nas relações entre Estado e particulares. Mas a construção jurisprudencial da state action tem por objetivo justamente romper com essa limitação e, para alcançar esse objetivo, tenta definir – ainda que de forma assistemática e casuística – quando uma ação privada é equiparável a uma ação pública. Sempre que essa equiparação for possível, e como se verá adiante, na maioria das vezes essa equiparação é artificial e feita já com o intuito de coibir o ato privado violador de direitos fundamentais, as relações entre particulares estarão vinculadas às disposições dos direitos fundamentais.
Esta doutrina começou a surgir na Suprema Corte norte-americana por volta de 1885, quando o Congresso norte-americano editou o Civil Rights Act. Este diploma previa punições contra a discriminação racial. Ocorreu que, na análise de alguns casos concretos que chegaram à Suprema Corte, esta pontificou que a Constituição concebeu competência para a União editar normas protetivas contra discriminações praticadas pelos próprios Estados, mas não contra as praticadas por particulares.
Vê-se que a construção histórica dos Estados Unidos levou a uma situação que tal era a liberdade individual que os cidadãos poderiam estabelecer diferenças entre si sem que houvesse qualquer interferência estatal acerca disso. São notórios os casos em que estabelecimentos comercial recusavam-se a atender pessoas negras sem que houvesse qualquer implicação.
Sobre essa pecualidade impende destacar a lição de Joaquim Benedito Barbosa Gomes[8]:
Essa é uma questão que permeia praticamente todo o direito Constitucional dos EUA: autonomia privada versus intervenção do Estado. Dela decorrem inúmeras questões. (...) Esse entendimento traz em si, implícita, a ideia de que em certas esferas do comportamento humano o indivíduo seria inteiramente livre para discriminar, eis que circunscrito a zonas vedadas à interferência estatal. Exemplos de tais zonas de permissividade discriminatória seriam as atinentes à liberdade de associação, ao domínio estritamente íntimo de cada um etc.
Por conseguinte, para aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas seria essencial observar a quem pode ser imputada a agressão aos direitos e garantias individuais. Ainda sobre o tema, Daniel Sarmento assinala[9]:
Nestes julgamentos, ficaram assentadas as seguintes premissas: (a) os direitos fundamentais estabelecidos na Constituição americana vinculam apenas os Poderes Públicos e não os particulares; e (b) o Congresso Nacional não tem poderes para editar normas protegendo os direitos fundamentais nas relações privadas, pois a competência para disciplinas estas relações é exclusiva do legislador estadual. A primeira das premissas permanece até hoje inalterada, conquanto tenha se sujeitado, com o passar do tempo, a certas atenuações, como se verá a seguir. Mas a segunda já foi revista pela jurisprudência, que admite atualmente a competência da União para legislar sobre direitos humanos mesmo quando nenhum ator estatal esteja envolvido, o que ocorreu com a promulgação de diversos diplomas na década de 60, na fase áurea do movimento em prol dos direitos civis nos EUA, dentre os quais destaca-se o Civil Rights Act de 1964.
Com o decorrer dos anos, a doutrina do State Action, foi sofrendo algumas mitigações, construídas pela jurisprudência norte-americana, sobretudo da Suprema Corte. A despeito das nuances que cada caso imprime, podemos asseverar que se estabeleceu um paradigma. Uma forma que se encontrou para temperar essa questão foi a determinação da natureza da atividade exercida pelo particular. Nessa senda, aquele particular que exercesse atividade tipicamente estatal, estaria vinculado aos princípios fundamentais. Foi o que se denominou de public function theory.
Segundo a mesma, a Corte de Justiça deveria, primordialmente, identificar se o particular que causou dano a outrem estava atuando em conformidade com a lei de sua jurisdição. Numa segunda etapa, observará se as ações do particular podem ser definidas como equivalentes às ações desempenhadas por um ente público. Juan Ubillos aborda o assunto da seguinte forma[10]:
As suposições dos que tem aplicado esta doutrina jurisprudencial podem classificar-se, apesar da sua disparidade tipológica, em dois grandes grupos: por um lado, os relacionados com atividades que envolvem materialmente o exercício de uma “função pública”, e por outro, aqueles em que se detecta uma “conexão” ou “implicação” estatal significativa na ação impugnada pelo demandante.
Contudo, impende frisar que este posicionamento da Corte Suprema sofreu várias oscilações no decorrer dos anos, não possibilitando a adoção de uma visão sedimentada a respeito do tema em comento.
Vale acrescentar que vários doutrinadores criticam a doutrina do State Action, por entenderem que ela não se coaduna com os modernos princípios informadores da Teoria dos Direitos Fundamentais, não proporcionando uma efetiva proteção aos particulares. A proposição vertical da eficácia dos direitos fundamentais denota as fortes raízes liberalistas que influenciam o direito norte-americano. Não podemos olvidar que, no atual contexto social em que vivemos, várias são as situações em que os particulares quedam-se em situações de hipossuficiência, não só econômica, mas também jurídica e tais questões não podem prescindir da tutela estatal.
Para melhor ilustrar o que discorremos supra, é impende mencionarmos um salutar trecho da brilhante conclusão de Daniel Sarmento a respeito da teoria do State Action[11]:
Enfim, parece-nos que a doutrina da state action, apesar dos erráticos temperamentos que a jurisprudência lhe introduziu, não proporciona um tratamento adequado aos direitos fundamentais, diante do fato de que os maiores perigos e ameaças a estes não provêm apenas do Estado, mas também de grupos, pessoas e organizações privadas. Ademais, ela não foi capaz de construir standards minimamente seguros e confiáveis na jurisdição constitucional norte-americana. Tal teoria está profundamente associada ao radical individualismo que caracteriza a Constituição e a cultura jurídica em geral dos Estados Unidos [...].
Todavia, a crítica com a qual mais concordamos a respeito dos defeitos da teoria da state action é a de Thiago Sombra que com a maestria que lhe é peculiar assim disserta sobre a teoria da ineficácia[12]:
Ao invés de reconhecer a eficácia dos direitos fundamentais entre particulares, os norte-americanos preferem adotar o caminho mais complexo: ampliar a conotação pública de determinadas atividades designadamente privadas. O contrassenso deste posicionamento está em ampliar, diante de um Estado de conotação liberal (mínimo), aquilo que deve ser entendido por ação governamental ou estatal.
Enfim, a teoria da ineficácia horizontal dos direitos fundamentais, temperada pela teoria do state action, consoante abalizada doutrina, não tem logrado êxito em sistematizar seus princípios, nem tão pouco se coadunar com os princípios informadores de uma Constituição dirigente – pilar de um Estado Democrático de Direito.
Constata-se, na verdade, que diante da complexidade da sociedade contemporânea, a ineficácia é apenas nominal, pois inúmeras atividades e empreendimentos que, a primeira vista, seriam de natureza privada passaram a ser considerados públicos ou de interesse público. Dessa forma, em última análise, disposições atinentes a direitos fundamentais acabam sendo aplicadas sobre essas relações.
3.2. A teoria da eficácia mediata dos direitos fundamentais nas relações privadas
A segunda corrente é uma posição intermediária, é conhecida como teoria da eficácia indireta ou mediata dos direitos fundamentais. O maior exemplo que temos de sua aplicação é na doutrina germânica. Foi na Alemanha em meados dos anos 50, especialmente por meio dos ensinamentos de Günter Dürig, que essa concepção surgiu e desenvolveu-se nos últimos anos, sendo adotada pela Corte Constitucional daquele País.
Dentro dessa posição, qualquer obra que se proponha a discuti-la, deve impreterivelmente mencionar o caso Lüth. Esta foi demanda julgada pela Corte Constitucional da Alemanha e tornou-se emblemático na discussão da eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Na oportunidade, este egrégio tribunal aplicou a teoria da eficácia mediata dos direitos fundamentais.
Pelo valor histórico e doutrinário do vetusto causo, colacionamos aqui um breve trecho do voto da relatora, Ministra Ellen Gracie, proferido nos autos do RE 201819/RJ em que é feita uma apertada síntese do decisum[13]:
(1) Em 1950, o Presidente do Clube de Imprensa de Hamburgo, Erich Lüth, defendeu um boicote contra o filme 'Unsterbliche Geliebte', de Veit Harlan, diretor do filme 'Jud Süs', produzido durante o 3. Reich. Harlan logrou decisão do Tribunal estadual de Hamburgo no sentido de determinar que Lüth se abstivesse de conclamar o boicote contra o referido filme com base no § 826 do Código Civil (BGB). Contra essa decisão foi interposto recurso constitucional (Verfassungsbeschwerde) perante o Bundesverfassungsgericht. A Corte Constitucional deu pela procedência do recurso, enfatizando que decisões de tribunais civis, com base em leis gerais de natureza privada, podem lesar o direito de livre manifestação de opinião consagrado no art. 5, 1, da Lei Fundamental. Os tribunais ordinários estariam obrigados a levar em consideração o significado dos direitos fundamentais em face dos bens juridicamente tutelados pelas leis gerais (juízo de ponderação). Na espécie, entendeu a Corte que, ao apreciar a conduta do recorrente, o Tribunal estadual teria desconsiderado (verkannt) o especial significado que se atribui ao direito de livre manifestação de opinião também nos casos em que ele se confronta com interesses privados.
Depreende-se do caso acima que esta teoria intermedeia a que nega por completo a aplicação dos direitos fundamentais na esfera privada e a que propõe a sua aplicação direta. Explicamos. A teoria da eficácia mediata reconhece a Constituição, notadamente os direitos fundamentais nela contidos, como uma ordem de valores que devem informar todo o ordenamento jurídico e, neste diapasão, o legislador infraconstitucional deve nortear-se por essa ordem axiológica.
Essa ordem de valores que se irradia por todo o ordenamento jurídico acaba necessitando de mecanismos de intermediação para uma efetiva aplicação. Isto é, é o legislador ordinário e os próprios juízes quem acabam propiciando a aplicação das normas jusfundamentais ao direito privado.
Para os seus defensores, por meio de mecanismos de intermediação e suavização, a serem vertidos inicialmente pela atividade legislativa e, em segundo plano, pela atividade judicial, através da concretização do conteúdo normativo por meio das cláusulas gerais e dos conceitos indeterminados, os direitos fundamentais teriam uma penetração menos conflituosa e sacrificante no sistema formado pelo Direito Privado.
Ocorre que despeito de a teoria da eficácia mediata reconhecer esse quadro axiológico constitucional, ela se defronta com o mesmo empecilho que tantas outras teorias também esbarram: a questão da preservação da autonomia privada.
Ademais, a adoção dessa posição acaba por minorar o atributo da fundamentalidade e aplicabilidade direta dos direitos fundamentais. Pela sua adoção, segundo explica Inocêncio Mártires Coelho et alli[14]: “Os direitos fundamentais cumpririam, à sua maneira, a tarefa de meros instrumentos de interpretação das normas de Direito Civil e de controle do ambito de extensão da autonomia privada.”
Ademais, argumenta-se que, a aplicação imediata dos princípios fundamentais às relações privadas colocaria em risco o princípio da segurança jurídica. Agregado a isso, existiria ainda, a preocupação em destinar uma parcela muito grande de poder ao Judiciário, dado que este poderia emitir decisões fundamentadas unicamente em princípios constitucionais o que poderia criar um alto e indesejável grau de indeterminismo.
Diante desse quadro, o que podemos concluir é que a teoria da eficácia mediata dos direitos fundamentais reconhece o quadro de princípios em que se funda uma Constituição de um Estado Democrático de Direito e concorda, outrossim, que esse quadro valorativo, fundado sobretudo, no princípio da dignidade da pessoa humana se irradia por todo o ordenamento jurídico.
A questão peculiar é que esses princípios não podem ser aplicados diretamente pelo Estado-juiz quando da prestação da tutela jurisdicional. A sua eficácia resume-se a servir como um paradigma a ser seguido pelo legislador infraconstitucional quando da elaboração da norma. Além do que o próprio direito privado que irá tutelar esses princípios, na medida em que deve ser interpretado ao lume destes.
Nesta perspectiva, dentre as várias soluções possíveis no conflito entre direitos fundamentais e autonomia privada, competiria à lei a tarefa de fixar o grau de cedência recíproca entre cada um dos bens jurídicos confrontantes.
Esta primazia do legislador em detrimento do juiz na conformação dos direitos fundamentais no âmbito privado conferiria, por um lado, maior segurança jurídica ao tráfico jurídico, e, por outro, conciliar-se-ia melhor com os princípios da democracia e da separação de poderes.
Ao Judiciário caberia o papel de preencher as cláusulas indeterminadas criadas pelo legislador, levando em consideração os direitos fundamentais, bem como o de rejeitar, por inconstitucionalidade, a aplicação das normas privadas incompatíveis com tais direitos – tarefa confiada com exclusividade às Cortes Constitucionais nos países onde o controle de constitucionalidade é concentrado.
Assim sendo, é fácil percebermos, que esta teoria preocupou-se sobremaneira em não desvencilhar o legislador da prerrogativa de efetivar os princípios fundamentais. Nesta esteira, o papel do Judiciário também é afetado, pois somente poderá preencher lacunas em casos excepcionais de indeterminação deixada pelo legislador.
Ainda dentro dessa perspectiva, ficam as Cortes Constitucionais responsáveis pelo controle de constitucionalidade das normas de direito privado. Tomando como paradigma o caso da Alemanha, esse controle é do tipo concentrado, podendo ser aplicado na análise em abstrato de normas supostamente inconstitucionais.
Por outro lado, os críticos dessa teoria afirmam que condicionar aplicação dos direitos fundamentais à ação do legislador ordinário e privar o Judiciário de aplicá-lo diretamente aos casos sob sua tutela, não proporciona a efetividade necessária para se poder coibir os inúmeros desrespeitos que se verificam nos mais variados setores do seio social.
Nesse sentido é a posição de Thiago Sombra[15]:
Ainda que exaurida a atividade legislativa, não subsiste razão para refutar a eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações jurídico-privadas. Mesmo que não se esteja ante um caso de omissão legal, não pairam argumentos robustos para sujeitar a eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares à atuação do legislador, visto que as normas fundamentais possuem aplicabilidade direta, nos termos em que preconiza o art. 5ª, §1ª da Constituição Federal de 1988.
Enfim, a teoria da eficácia mediata dos direitos fundamentais na relação privada, reconhece na a Constituição como uma ordem de valores, informadora de todo o ordenamento jurídico, em especial o direito privado. Entretanto, tal concepção não é suficiente para que se vislumbre uma eficácia satisfatória dos direitos fundamentais nas mais variadas relações privadas haja vista no ordenamento jurídico pátrio teria que afastar os conceitos de fundamentalidade e aplicabilidade direta.
3.3. A teoria da eficácia imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas
Esta última teoria também surgiu na Alemanha durante a década de 50, tendo sido defendida inicialmente na Alemanha por Hans Carl Nipperdey, no entanto, não obteve sucesso naquele país sendo melhor recepcionada em países como Portugal, Espanha, Itália e até mesmo o Brasil.
Nesse sentido leciona Uadi Lammêgo Bulos[16]:
A teoria da eficácia horizontal dos direitos e garantias fundamentais, também chamada de teoria da eficácia privada, teoria da eficácia externa, teoria da eficácia entre particulares ou, ainda, teoria da eficácia em relação a terceiros, surgiu na Alemanha sob o rótulo Drittwirkung, desenvolvendo-se de 1955 a 1960, como um aprimoramento da state action da Suprema Corte norte-americana.
Nos termos desta concepção, a incidência dos direitos fundamentais deve ser estendida às relações entre particulares, independentemente de qualquer intermediação legislativa, ainda que não se negue a existência de certas especificidades nesta aplicação, bem como a necessidade de ponderação dos direitos fundamentais com a autonomia individual.
Preceitua-se que os princípios fundamentais elencados no texto constitucional podem ser aplicados diretamente pelo Poder Judiciário quando da análise do caso concreto. Aqui, mais uma vez, a relação entre o legislador e o Estado-juiz é afetada, pois este, é dotado de uma maior discricionariedade podendo, inclusive, em determinados casos, colmatar lacunas deixadas pelo legislador ordinário, utilizando-se diretamente do conjunto axiológico consignado no Texto Maior.
De acordo com os teóricos da eficácia imediata, os direitos fundamentais são aplicáveis diretamente em relação aos particulares. Aos que defendem a teoria da eficácia direta das normas de direitos fundamentais entre os particulares, havendo ou não normas infraconstitucionais numa decisão, as normas constitucionais devem ser aplicadas como razões primárias e justificadoras, contudo não necessariamente como as únicas, mas como normas de comportamento aptas para incidir no conteúdo das relações particulares.
A existência de uma regra legal que reitere expressamente norma ou princípio constitucional não seria óbice para a aplicação direta da norma constitucional, uma vez que a função do legislador não é constitutiva, mas sim declarativa.
Impende acrescentar ainda que, segundo seus defensores, as normas fundamentais não careceriam de qualquer mecanismo de adaptação para que pudessem gozar de plena eficácia direta no âmbito das relações privadas, vez que a fundamentalidade a aplicabilidade direta lhes assegurariam todo o aparato necessário para a realização de suas funções de proteção constitucional.
Os adeptos dessa teoria afirmam que, o particular não está suscetível apenas às arbitrariedades estatais. Existem também, inúmeras situações dentro do seio social, em relações horizontais polarizadas por particulares, que merecem ser tuteladas pelo Estado de uma forma mais contundente. Em muitos destes casos existe uma enorme discrepância de poderes e prerrogativas.
Tal conjuntura, que favorece sobremaneira um dos pólos da relação, contribui para que os direitos fundamentais sejam descaradamente desrespeitados. Exemplo disto é a tutela dada ao consumidor pelo ordenamento brasileiro, onde as leis consumeiristas reconhecem expressamente a hipossuficiência do consumidor neste tipo de relação e, neste diapasão, estabelecem normas protetivas que se coadunam com os ditames da nossa Carta Magna.
Contudo, essa corrente também sofre críticas da doutrina, especialmente, quanto
à mitigação da autonomia privada. Entretanto, é preciso ter mente que a própria autonomia privada, não só a sua limitação, é uma garantia fundamental.
Todavia, para os seus defensores com os concordamos, não se prega a desconsideração da liberdade individual no tráfico jurídico-privado, mas antes impõe que seja devidamente sopesada na análise de cada situação concreta. Inclusive, a maior parte dos adeptos desta teoria reconhece que, diante da existência de lei disciplinando a questão subjacente ao conflito privado, deve o Judiciário aplicar a norma vigente – e não dar ao caso a resposta que pareça mais justa a cada magistrado –, podendo afastar-se da solução preconizada pelo legislador tão somente quando concluir que esta se afigura incompatível com a Constituição
Ainda para os que a defendem a fim de evitar o subjetivismo judicial, o casuísmo desmedido e, por consequência, a insegurança jurídica, deve haver a preocupação em estabelecer parâmetros específicos de aplicação desses direitos às relações entre particulares para que a liberdade individual não seja subjugada.
Sobre tais críticas, é interessante registrarmos a brilhante lição do ilustríssimo autor português J. J. Gomes Canotilho, que se inclina pela aplicação direta dos direitos fundamentais às relações particulares, contudo, defende algumas ponderações[17]:
A ordem jurídica privada não está, é certo, divorciada da Constituição. Não é um espaço livre de direitos fundamentais. Todavia, o direito privado perderá a sua irredutível autonomia quando as regulações civilísticas – legais ou contratuais – vêem o seu conteúdo substancialmente alterado pela eficácia directa dos direitos fundamentais na ordem jurídica privada. A Constituição, por sua vez, é convocada para as salas diárias dos tribunais com a conseqüência de inevitável banalização constitucional. Se o direito privado deve recolher os princípios básicos dos direitos e garantias fundamentais, também os direitos fundamentais deve reconhecer um especo de auto-regulação civil, evitando transformar-se em “direito de não-liberdade” do direito privado. A nosso ver, o problema não está apenas nos perigos que espreitam as duas ordens – constitucional e civil – quando se insiste na conformação estrita e igualitarizante das relações jurídicas privadas pelas normas constitucionais. Em causa está também o problema de saber se o apego a Drittwirkung não transporta um pathos ético e jurídico profundamente desconhecedor das rupturas pós-modernas.
Acrescento que outros autores portugueses de renome, como Ana Prata, também pugnam pela teoria da aplicação direta. No entanto, impende destacar que, diferentemente da nossa, a Corte Constitucional portuguesa ainda não se manifestou em favor de nenhuma delas.
Observamos, outrossim, que a doutrina da eficácia imediata prevalece em outros países importantes como a Itália e a Argentina, tendo nesta já se manifestado nesse sentido através da sua Suprema Corte desde a década de 50.
No Brasil, é a tese que tem prevalecido. A teoria da aplicação imediata dos direitos fundamentais encontra amparo nas lições de Daniel Sarmento, Ingo Wolfgang Sarlet, Luís Roberto Barroso, Gustavo Tepedino, Wilson Steinmetz, Thiago Sombra e Jane Reis Gonçalves Pereira, bem como pronunciamento do STF e de alguns Tribunais inferiores.
4. CONCLUSÃO
No decorrer do estudo, percebemos que, a despeito de sua discussão remontar aos idos de 1950, ainda exitem questões acerca da problemática da eficácia horizontal dos direitos fundamentais que merecem ser amadurecidas, notadamente, no tocante a formulação de paradigmas de aplicação dos direitos fundamentais aos casos concretos.
Tecidas as explanações restou evidenciado que a aplicação dos direitos é um assunto extremamente rico e complexo. Neste estudo, procuramos apresentar apenas alguns possíveis parâmetros para que a solução dos casos concretos não ficasse ao simples alvedrio dos aplicador. Entendemos também pertinente definirmos um foco, no caso, optamos pela conformidade entre a autonomia privada e os direitos fundamentais.
Essa preocupação com a fixação destes parâmetros justifica-se pelo temor do decisionismo judicial, que acarreta insegurança jurídica, compromete a democracia e acabar por vulnerar os contratos. Embora os critérios não tragam soluções definitivas, eles podem auxiliar o intérprete na sua busca em cada caso, além de permitirem um maior controle intersubjetivo das decisões judiciais, tornando-as menos dependentes das pré-compreensões e idiossincrasias de cada magistrado.
Para chegarmos aos critérios adequados para tanto, procuramos – inicialmente – analisar a concepção de direito fundamental, bem como a forma pelo qual a mesma modificou-se. Após, indagamos sobre a noção de autonomia privada dentro de uma concepção finalística.
Por fim, estabelecidos ambos os conceitos, buscamos analisar as formas pela qual os mesmo se compatibilizam através de lições da doutrina e da jurisprudência.
Ressaltamos que não foi pretensão desse estudo, sobretudo pela limitação física que um trabalho desse natureza impõe, esgotar tão vasto tema, mas sim, tão somente, demonstrar, de uma forma geral, como que a questão da eficácia horizontal dos direitos fundamentais surgiu e vem sendo tratada no Brasil e em alguns países que adotam algumas peculiaridades interessantes.
No caso de nosso país, restou evidenciado que tanto a doutrina como a Suprema Corte vem se consolidando no sentido da aplicabilidade imediata.
REFERÊNCIAS
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[1] SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumens Júris, 2006, p. 6.
[2] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 52.
[3] SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 54.
[4] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. ver. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 156.
[5] MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 154-155.
[6] SOMBRA. Op. cit., p. 24.
[7] SILVA, Virgílio Afonso da. A Constitucionalização do Direito. São Paulo: Malheiros 2005, p. 100.
[8] GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa princípio constitucional da igualdade: o direito como instrumento de transformação social – a experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 81.
[9] SARMENTO. Op. cit., p. 190.
[10] UBILLOS, Juan María Bilbao. ¿En qué medida vinculan a los particulares los derechos privados? – Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Organizador: Ingo Wolfgang Sarlet. 2. ed. Rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2006, p.320.
[11] SARMENTO. Op. cit., p. 195.
[12] SOMBRA. Op. cit., p. 95.
[13] STF. Informativo STF. Brasília, 10 a 14 de outubro de 2005 - Nº 405. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo405.htm#transcricao1>. Acesso em: 20 out. 2014.
[14] COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 174.
[15] SOMBRA. Op. cit., p. 81.
[16] BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 531.
[17] CANOTILHO, Joaquim José Gomes. “Civilização do direito constitucional ou constitucionalização do direito civil? A eficácia dos direitos fundamentais na ordem jurídico-civl no contexto do direito pós-moderno”. In: GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Willis Santiago (Orgs.) Direito Constitucional: Estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 115.
Analista Judiciário na Justiça Federal do Maranhão, graduado em direito na Universidade Federal da Paraíba - UFPB, pós-graduado em Direito Civil junto à Faculdade Damásio de Jesus, bem como em Direito Constitucional junto à Faculdade Internacional Signorelli.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ROCHA, Diego Pederneiras Moraes. Da eficácia horizontal dos direitos fundamentais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 jul 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47066/da-eficacia-horizontal-dos-direitos-fundamentais. Acesso em: 23 dez 2024.
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