RESUMO: Estuda o conceito e a natureza da eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Investiga as origens históricas da construção teórica referente à possibilidade de aplicação de direitos fundamentais nas relações privadas. Analisa a assimilação da teoria germânica na doutrina brasileira. Examina a aplicação da teoria no âmbito da jurisprudência dos tribunais superiores.
Palavras-chave: Direitos Fundamentais. Eficácia horizontal. Aplicação entre particulares.
1 INTRODUÇÃO
Como se sabe, a origem dos direitos fundamentais liga-se diretamente ao advento das constituições escritas e do Estado moderno, quando foram reconhecidos nos documentos constitucionais diversos direitos oponíveis pelos particulares ao Estado, a exemplo do que sucedera na Constituição dos Estados Unidos da América de 1787 e na Constituição Francesa de 1791.
A positivação desses direitos ocorreu no contexto da ascensão econômica e social da classe liberal-burguesa, quando se fez necessário o estabelecimento de garantias e de liberdades para que pudessem ser desenvolvidas com segurança as relações sociais e comerciais.
Num momento posterior, os documentos constitucionais passaram a reconhecer em maior amplitude direitos fundamentais de caráter prestacional e social, que se enquadram na alcunha de direitos fundamentais de segunda dimensão, agregando-se aos direitos fundamentais de primeira dimensão, precisamente aqueles direitos e liberdades básicos já mencionados. Os documentos constitucionais que constituem referência nesse processo são a Constituição do México de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919.
Em ambos os casos, os direitos são oponíveis aos entes estatais, quer para exigir um comportamento absenteísta (direitos fundamentais de primeira dimensão), quer para exigir uma atuação positiva em prol de seu titular (direitos fundamentais de segunda dimensão).
A doutrina, contudo, passou a controverter acerca da possibilidade de oposição dos direitos fundamentais não apenas aos entes estatais, senão também a outros particulares, também titulares destes direitos. É a tese da chamada eficácia horizontal dos direitos fundamentais, que advoga sua aplicação no âmbito de relações exclusivamente privadas.
Faz-se relevante, portanto, analisar as principais correntes a tratar do assunto, bem como o desenvolvimento da matéria no direito brasileiro, em âmbito doutrinário e jurisprudencial, com atenção ao leading case da matéria, que remota aos anos de 1950 e à jurisprudência alemã.
2 O LEADING CASE
A doutrina identifica o caso Lüth (Lüth-Urteil), julgado pelo Tribunal Federal Constitucional Alemão (Bundesverfassungsgericht), em 1958[1], como o primeiro julgado a tratar sobre a eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares (MENDES, BRANCO, 2015, p. 176).
No caso, o reclamante, Lüth, por ocasião da abertura da “Semana do Filme Alemão”, como representante do Clube de Imprensa de Hamburgo, proferiu discurso provocando a população a boicotar os filmes produzidos no período posterior ao término da Segunda Guerra Mundial pelo roteirista e diretor Veit Harlan, que foi um famoso cineasta na época do regime nazista. Por força dessa declaração, a firma Domnick, que contratou a produção de filme dirigido por Veit Harlan, sentindo-se prejudicada com o boicote, solicitou pronunciamento de Lüth acerca dos motivos que embasariam sua manifestação. Lüth redarguiu, afirmando que Veit Harlan teria sido o principal diretor de cinema do governo totalitário de Adolf Hitler, tendo produzido filme que poderia ser considerado um dos maiores expoentes do ódio nazista pelos judeus. Diante disso, as firmas que se sentiram prejudicadas (Domnick e Herzog) ajuizaram ação na corte estadual de Hamburgo (Landgericht Hamburg), pedindo liminar contra Lüth, para que lhe fosse vedado prosseguir no boicote. Tendo sido deferido o provimento, Lüth apelou para o tribunal regional superior (Oberlandesgericht), sendo que o recurso foi desprovido.
Ambos os órgãos judiciais identificaram abusividade no boicote levado a cabo por Lüth, invocando o disposto no parágrafo 826 do Código Civil Alemão[2] (Bürgerliches Gesetzbuch).
Frente a sua sucumbência, Lüth interpôs reclamação constitucional (Verfassungsbeschwerde) perante o Tribunal Constitucional Federal Alemão (Bundesverfassungsgericht), sustentando violação ao seu direito fundamental de liberdade de expressão (Meinungsäußerung), positivado na Lei Fundamental Alemã (Grundgesetz).
Antes de adentrar no mérito da controvérsia, a corte constitucional expressamente faz menção às divergências em torno da teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais: de um lado, uma das posições mais extremadas sustentava que os direitos fundamentais teriam aplicação restrita contra o Estado (“die Grundrechte ausschließlich gegen den Staat gerichtet seien”)[3]; outra das posições extremadas defendia que os direitos fundamentais também poderiam valer nas relações privadas (“auch im Privatrechtsverkehr gegen jedermann gälten”).
No que tange ao mérito, inicialmente, o tribunal reconheceu que, de fato, os direitos fundamentais, a princípio, são dirigidos contra o Estado, de modo a criar uma esfera de liberdade para os indivíduos, segurando-lhes contra o poder público. Isso decorreria da própria ideia que orientou o desenvolvimento histórico dos direitos fundamentais (geistesgeschichtlichen Entwicklung der Grundrechtsidee), bem como dos processos que orientaram a positivação desses direitos nas constituições estatais. Por outro lado, o tribunal reconheceu que a Lei Fundamental Alemão não almejaria a constituição de uma ordem jurídica axiologicamente neutra, de sorte que o constituinte teria erigido também uma ordem objetiva de valores (objektive Wertordnung) que reforçaria a força de eficácia dos direitos fundamentais. A construção dessa ordem de valores traduziria decisão constituinte fundamental, a influenciar todos os ramos da ordem jurídica, inclusive o Direito Civil, conjunto normativo regulador das relações privadas por excelência.
Sendo assim, os preceitos da legislação infraconstitucional civil não poderiam contrariar os ditames constitucionais, precisamente os direitos fundamentais e a ordem objetiva de valores que estes erigiram. Nessa linha, as normas de direitos fundamentais revelar-se-iam no Direito Civil na aplicação de normas de ordem pública (zwingendes Recht), especialmente das cláusulas gerais (Generalklauseln). Deveras, as cláusulas gerais seriam a porta de entrada dos direitos fundamentais no Direito Civil (“die Generalklauseln als die ‘Einbruchstellen’ der Grundrechte in das bürgerliche Recht”).
Nessa vertente, ao juiz seria imposto o dever de analisar, por ocasião da aplicação das cláusulas gerais, se a interpretação que pretenderia adotar seria consentânea com os direitos fundamentais e com o quadro axiológico imposto pela Constituição. Nas palavras do Tribunal Federal Constitucional Alemão, “a decisão deveria partir da análise da totalidade das noções de valores que o povo teria alcançado num determinado momento histórico e fixado em sua Constituição”[4].
Aquele órgão colegiado, então, entendeu que a decisão combatida não tinha sido acertada, porquanto impossibilitou o reclamante (Lüth) de influenciar a opinião da população para aderir ao boicote, restringindo, dessa forma, sua liberdade de expressão.
A corte constitucional alemã, portanto, assinalou que a decisão dos órgãos judiciários inferiores violou a Lei Fundamental Alemão, precisamente o dispositivo que garante o direito fundamental à liberdade de manifestação (Artigo 5º, parágrafo 1º).
A ementa restou assim redigida (tradução livre)[5]:
1. Os direitos fundamentais são, em primeira linha, direitos de defesa dos cidadãos contra o Estado; nos preceitos dos direitos fundamentais da Lei Fundamental toma corpo também uma ordem objetiva de valores, que vale como decisão fundamental constitucional para todos os campos do Direito;
2. No Direito Civil desenvolve-se o conteúdo jurídico dos direitos fundamentais mediatamente por intermédio dos preceitos de direito privado. Ele alcança principalmente previsões normativas de caráter obrigatório e é especialmente realizável pelo juiz através das cláusulas gerais.
3. O juiz civilista pode violar direitos fundamentais pelo seu julgado, quando ele ignora a atuação dos direitos fundamentais sobre o Direito Civil. O Tribunal Federal Constitucional Alemão analisa em julgamentos civis tais violações de direitos fundamentais, e não erros de julgamento em geral.
4. Preceitos de Direito Civil também podem ser considerados “leis gerais” no sentido do parágrafo 2º do artigo 5º da Lei Fundamental e dessa forma restringir o direito fundamental à liberdade de expressão.
5. “As “leis gerais” devem ser interpretadas na perspectiva do significado especial do direito fundamental à liberdade de expressão para o Estado Democrático de liberdade.
6. O direito fundamental do artigo 5º da Lei Fundamental não protege apenas a exteriorização da opinião como tal, senão também a atuação anímica que ocorre pela manifestação da opinião.
7. A manifestação de opinião que contém convite para o boicote não viola necessariamente os bons costumes, na forma do parágrafo 826 do Código Civil; ela pode ser justificada pela liberdade de expressão por força do sopesar das circunstâncias do caso.
Esse precedente figura como um dos mais relevantes da história na temática dos direitos fundamentais, porquanto nele foram pela primeira vez delineados os contornos do relacionamento das normas de direitos fundamentais com as normas do Direito Civil, bem como analisada a possibilidade de aplicação direta dos direitos fundamentais nas relações privadas.
O precedente foi citado inúmeras vezes em diversos outros julgados do Tribunal Federal Constitucional Alemão, dentre os quais podem ser citados os conhecidos “Caso Lebach” (BVerfGE 35,202), “Caso das Universidades” (BVerfGE 35,79) e o “Caso das Farmácias” (BVerfGE 7,377), este último no qual se desenvolveu a estrutura do princípio da proporcionalidade (Prinzip der Verhältnismäßigkeit).
3 A RECEPÇÃO DA TEORIA NA DOUTRINA BRASILEIRA E NA JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS SUPERIORES
Na literatura brasileira, identifica-se o Caso Lüth como o principal precedente a embasar o movimento jurídico de constitucionalização do direito.
De acordo com Luís Roberto Barroso (2005, p. 20):
Há razoável consenso de que o marco inicial do processo de constitucionalização do Direito foi estabelecido na Alemanha. Ali, sob o regime da Lei Fundamental de 1949 e consagrando desenvolvimentos doutrinários que já vinham de mais longe, o Tribunal Constitucional Federal assentou que os direitos fundamentais, além de sua dimensão subjetiva de proteção de situações individuais, desempenham uma outra função: a de instituir uma ordem objetiva de valores. O sistema jurídico deve proteger determinados direitos e valores, não apenas pelo eventual proveito que possam trazer a uma ou a algumas pessoas, mas pelo interesse geral da sociedade na sua satisfação. Tais normas constitucionais condicionam a interpretação de todos os ramos do Direito, público ou privado, e vinculam os Poderes estatais. O primeiro grande precedente na matéria foi o caso Lüth, julgado em 15 de janeiro de 1958.
Também MENDES e BRANCO (2015, p. 176), citando o caso Lüth, comentam acerca da constitucionalização do Direito e da aplicabilidade dos direitos fundamentais às relações privadas:
Ganhou alento a percepção de que os direitos fundamentais possuem uma feição objetiva, que não somente obrigada o Estado a respeitar os direitos fundamentais, mas que também o força a fazê-los respeitados pelos próprios indivíduos, nas suas relações entre si. Ao se desvendar o aspecto objetivo dos direitos fundamentais, abriu-se à inteligência predominante a noção de que esses direitos, na verdade, exprimem os valores básicos da ordem jurídica e social, que devem ser prestigiados em todos os setores da vida civil, que devem ser preservados e promovidos pelo Estado como princípios estruturantes da sociedade. O discurso majoritário adere, então, ao postulado de que “as normas sobre direitos fundamentais apresentam, ínsitas a elas mesmas, um comando de proteção, que obriga o Estado a impedir que tais direitos sejam vulnerados também nas relações privadas”. Tudo isso contribuiu para que se assentasse a doutrina de que também as pessoas privadas podem estar submetidas aos direitos fundamentais. A incidência das normas de direitos fundamentais no âmbito das relações privadas passou a ser conhecida, sobretudo a partir dos anos cinquenta, como o efeito externo, ou a eficácia horizontal, dos direitos fundamentais (a Drittwirkung do direito alemão).
Vê-se, portanto, que a doutrina brasileira assimilou definitivamente as razões jurídicas que embasaram a conclusão do acórdão proferido no Caso Lüth, reconhecendo a constitucionalização do Direito e a aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas.
Outrossim, é possível afirmar categoricamente que a jurisprudência dos tribunais superiores, precisamente do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, reconhece a aplicabilidade direta dos direitos fundamentais nas relações privadas.
No âmbito da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, podem ser citados quatro (04) principais precedentes: o Recurso Extraordinário nº 158.215, relator ministro Marco Aurélio, Segunda Turma, julgado em 30 de abril de 1996; o Recurso Extraordinário nº 161.243, relator ministro Carlos Velloso, Segunda Turma, julgado em 29 de outubro de 1996; o Recurso Extraordinário nº 175.161, relator ministro Marco Aurélio, Segunda Turma, julgado em 15 de dezembro de 1998; Recurso Extraordinário nº 201.819, relatora ministra Ellen Gracie, relator para acórdão ministro Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 11 de outubro 2005.
Neste primeiro precedente, o tribunal discutia a necessidade de observância do disposto no inciso LV do artigo 5º da Constituição Federal nos casos de exclusão de associado de cooperativa. No caso, embora sem explicitar a filiação à vertente teórica que pugna pela aplicação direta dos direitos fundamentais nas relações privadas, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu a necessidade de respeito ao devido processo legal na hipótese de exclusão de cooperado em decorrência de ato contrário aos preceitos do estatuto. Nesse caso, vê-se que preceito constitucional específico (inciso LV do artigo 5º da Constituição Federal) foi aplicado diretamente à lide civil, ocasionando a invalidação do ato de exclusão, sem que fosse invocado dispositivo de legislação infraconstitucional específico no precedente.
No segundo acórdão, discutia-se a possibilidade de tratamento diferenciado para empregados de uma mesma empresa, tendo por parâmetro a distinção de nacionalidade. No caso, a contratante, empresa francesa, conferia tratamento diferenciado a empregados franceses em detrimento de empregados brasileiros, restringindo a aplicação do Estatuto do Pessoal da Empresa apenas aos empregados franceses. Neste julgado, o Supremo Tribunal Federal entendeu pela ilegitimidade da discriminação de tratamento jurídico conferido aos empregados, assegurando ao empregado brasileiro o direito às vantagens previstas no Estatuto do Pessoal da Empresa, sob o correto argumento de que “a discriminação que se baseia em atributo, qualidade, nota intrínseca ou extrínseca do indivíduo, como o sexo, a raça, a nacionalidade, o credo religioso etc., é inconstitucional”. A lide foi dirimida com aplicação direta dos dispositivos constitucionais que positivam o direito fundamental à igualdade: caput do artigo 5º da Constituição Federal de 1988 e parágrafo 1º do artigo 153 da Constituição Federal de 1967.
No terceiro precedente, o Supremo Tribunal Federal entendeu pela necessidade de correção monetária das prestações pagas por consorciado desistente, não obstante a existência de cláusula no contrato de adesão dispondo acerca da devolução em valores nominais. O tribunal entendeu que o preceito contratual acarretaria violação aos princípios constitucionais implícitos da proporcionalidade e da razoabilidade, pelo que reputou inconstitucional a devolução em valores nominais. Vê-se, portanto, que neste caso a lide foi solucionada com base na aplicação direta, nua relação de particulares, dos princípios constitucionais implícitos da proporcionalidade e da razoabilidade.
No quarto precedente, discutia-se a possibilidade de exclusão de associado da União Brasileira de Compositores, associação civil, sem que lhe fosse dada oportunidade de manifestação prévia, em desobediência, portanto, aos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal (inciso LV, artigo 5º, Constituição Federal). O Supremo Tribunal Federal invalidou a exclusão, nesse caso com pronunciada adesão à teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Pela sua importância, transcrevem-se excertos da ementa do julgado:
As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. [...] O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais. [...]
Outrossim, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, podem ser citados os seguintes julgados: Habeas Corpus nº 12.547, relator ministro Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, julgado em 01 de junho de 2000; Recurso Especial nº 249.321, relator ministro Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, julgado em 14 de dezembro de 2000; Recursos Especiais nº 1.439.163 e nº 1.280.871, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, relator para acórdão Ministro Marco Buzzi, Segunda Seção, julgado em 11 de março de 2015.
No primeiro destes precedentes, o Superior Tribunal de Justiça entendeu ilegítima a decretação da prisão civil em razão do inadimplemento de contrato garantido por alienação fiduciária, nos casos em que a ação de busca e apreensão é convertida em ação de depósito. Aquele tribunal invocou expressamente os direitos fundamentais à igualdade e à liberdade, bem como o princípio da dignidade da pessoa humana, para sustentar sua deliberação, não obstante também tenha invocado preceitos infraconstitucionais, a exemplo dos artigos 5º e 17 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657, de 1942).
No segundo precedente mencionado, do Superior Tribunal de Justiça, discutia-se a possibilidade de tarifar a indenização devida ao consumidor no caso de responsabilidade civil do transportador aéreo. O tribunal entendeu pela impossibilidade da limitação, por força da necessidade de reparação integral, exigida pelo princípio da dignidade da pessoa humana (inciso III, artigo 1º, Constituição Federal). No corpo do julgado, invocou-se expressamente a doutrina de Dieter Grimm, juiz do Tribunal Constitucional Federal Alemão (Bundesverfassungsgericht), de acordo com quem os direitos fundamentais não se limitariam a proteger o cidadão contra o ente estatal, senão também criaria direitos de proteção em relação aos particulares em geral, produzindo, portanto, efeitos sobre terceiros (Drittwirkung). Tal aplicação entre particulares, que se encontram em posição horizontal (diferentemente da aplicação frente ao Estado, que ocorre no âmbito de uma relação de verticalidade de poder), ocorreria principalmente por intermédio das chamadas cláusulas gerais (Generalklauseln).
Por fim, nos dois últimos precedentes, julgados em conjunto, controvertia-se sobre a possibilidade de cobrança, dos não associados que não manifestaram anuência expressa, de taxa de manutenção de condomínio de fato criado por associações de moradores. Inicialmente, mencionou-se que haveria duas fontes de obrigações: a lei ou o contrato. Ato contínuo, salientou-se que, não obstante a legislação infraconstitucional proíba o enriquecimento sem causa (artigo 884, Código Civil de 2002), a Constituição Federal, diploma hierarquicamente superior, garantiria, por outro lado, o direito fundamental de livre associação, bem como garantiria o primado do princípio da legalidade. Sendo assim, entendeu-se que é inadmissível a instituição de deveres tácitos a terceiros não associados, por força das normas constitucionais aludidas. No Informativo de Jurisprudência nº 562, no qual o julgado foi noticiado, fez-se menção explícita à teoria da aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas, conforme excertos a seguir transcritos:
Nesse contexto, não há espaço para entender que o morador, ao gozar dos serviços organizados em condomínio de fato por associação de moradores, aceitou tacitamente participar de sua estrutura orgânica. Com efeito, na ausência de uma legislação que regule especificamente a matéria em análise, deve preponderar o exercício da autonomia da vontade - a ser manifestado pelo proprietário ou, inclusive, pelo comprador de boa-fé -, emanada da própria garantia constitucional da liberdade de associação e da legalidade, uma vez que ninguém pode ser compelido a fazer algo senão em virtude de lei. De igual modo, incabível o entendimento de que a vedação ao enriquecimento ilícito autorizaria a cobrança pelos serviços usufruídos ou postos à disposição do dono do imóvel inserto em loteamento, independentemente de ser ou não associado. Isso porque adotar esse posicionamento significaria esvaziar o sentido e a finalidade da garantia fundamental e constitucional da liberdade de associação, como bem delimitou o STF no julgamento do RE 432.106-RJ (DJe 4/11/2011), encontrando a matéria, inclusive, afetada ao rito da repercussão geral (RG no AI 745.831-SP, DJe 29/11/2011). [...] Ademais, cabe ressaltar que a associação de moradores é mera associação civil e, consequentemente, deve respeitar os direitos e garantias individuais, aplicando-se, na espécie, a teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais.
Portanto, vê-se que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça atualmente vem trilhando o mesmo entendimento predominante no Supremo Tribunal Federal, pelo que se conclui que, atualmente, é pacífica a aplicabilidade direta dos direitos fundamentais às relações privadas.
5 CONCLUSÕES
Acima se viu que a doutrina considera pacificamente que o pioneiro enfrentamento da controvérsia acerca da aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas ocorreu na jurisprudência alemã, mais precisamente no caso Lüth, julgado pelo Tribunal Federal Constitucional Alemão em 1958.
Verificou-se, igualmente, que a literatura brasileira já assimilou de forma definitiva as premissas invocadas naquele acórdão, das quais é possível extrair o embasamento das concepções de constitucionalização do Direito e de aplicabilidade dos direitos fundamentais às relações privadas, mediante a compreensão de que estes, demais de outorgarem uma situação ativa subjetiva a seus titulares, erigem uma ordem objetiva de valores, a influenciar a interpretação e aplicação da legislação infraconstitucional em todos os ramos do Direito, numa espécie de efeito irradiante (Ausstrahlungswirkung).
Viu-se também que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal passou a aplicar os direitos fundamentais diretamente para dirimir conflitos oriundos de relações privadas, embora, num primeiro momento, a corte não fizesse uma adesão explícita e pronunciada à construção teórica do direito germânico. Entretanto, em julgados posteriores, o Supremo Tribunal Federal passou a invocar diretamente a teoria alemã e os precedentes do Tribunal Federal Constitucional Alemão (Bundesverfassungsgericht), sedimentando a posição do órgão acerca da possibilidade de aplicação dos direitos fundamentais em relações travadas exclusivamente entre particulares, sem a presença do Estado.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, do mesmo modo, passou a reconhecer a aplicação direta de preceitos constitucionais consagradores de direitos fundamentais para reger relações firmadas entre particulares. Da mesma forma do que ocorrera no âmbito do Supremo Tribunal Federal, na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, inicialmente, os acórdãos não se embasavam na construção teórica específica da eficácia horizontal (Drittwirkung), de maneira que os preceitos constitucionais eram aplicados de forma simplista e superficial para solucionar a lide. Posteriormente, o Superior Tribunal de Justiça manifesta sua filiação teórica à teoria da aplicação direta dos direitos fundamentais nas relações privadas, passando a fundamentar seus julgados subsequentes nesse embasamento doutrinário.
Atualmente, portanto, conclui-se que é pacífica e consolidada a aplicação direta das normas consagradoras de direitos fundamentais para regular o desenvolvimento das relações firmadas entre particulares, mesmo sem aplicação concomitante de normas infraconstitucionais, havendo atualmente convergência na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça sobre a questão.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito: o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Revista de Direito Administrativo 240:1, 2005.
HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução da 20ª edição alemã de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998.
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 10ª edição. São Paulo: Saraiva, 2015.
PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Grundrechte: Staatsrecht II. 28 Auflage. C. F. Müller: 2012.
[1] Íntegra do julgado disponível em: http://www.servat.unibe.ch/dfr/bv007198.html. Acesso em: 23.07.2016.
[2] Tradução livre do dispositivo: “Quem, agindo de forma ofensiva e contra os bons costumes, causa intencionalmente prejuízo a outrem, fica obrigado a repará-lo”. No original: “ Wer in einer gegen die guten Sitten verstoßenden Weise einem anderen vorsätzlich Schaden zufügt, ist dem anderen zum Ersatz des Schadens verpflichtet“.
[3] Essa é a opinião de HESSE (1998, p. 282).
[4] Tradução livre do seguinte trecho: “ [...], muß in erster Linie von der Gesamtheit der Wertvorstellungen ausgegangen werden, die das Volk in einem bestimmten Zeitpunkt seiner geistig-kulturellen Entwicklung erreicht und in seiner Verfassung fixiert hat. ”.
[5] Tradução livre do seguinte trecho: “1. Die Grundrechte sind in erster Linie Abwehrrechte des Bürgers gegen den Staat; in den Grundrechtsbestimmungen des Grundgesetzes verkörpert sich aber auch eine objektive Wertordnung, die als verfassungsrechtliche Grundentscheidung für alle Bereiche des Rechts gilt. 2. Im bürgerlichen Recht entfaltet sich der Rechtsgehalt der Grundrechte mittelbar durch die privatrechtlichen Vorschriften. Er ergreift vor allem Bestimmungen zwingenden Charakters und ist für den Richter besonders realisierbar durch die Generalklauseln. 3. Der Zivilrichter kann durch sein Urteil Grundrechte verletzen (§ 90 BVerfGG), wenn er die Einwirkung der Grundrechte auf das bürgerliche Recht verkennt. Das Bundesverfassungsgericht prüft zivilgerichtliche Urteile nur auf solche Verletzungen von Grundrechten, nicht allgemein auf Rechtsfehler nach. 4. Auch zivilrechtliche Vorschriften können "allgemeine Gesetze" im Sinne des Art. 5 Abs. 2 GG sein und so das Grundrecht auf Freiheit der Meinungsäußerung beschränken. 5. Die "allgemeinen Gesetze" müssen im Lichte der besonderen Bedeutung des Grundrechts der freien Meinungsäußerung für den freiheitlichen demokratischen Staat ausgelegt werden. 6. Das Grundrecht des Art.5 GG schützt nicht nur das Äußern einer Meinung als solches, sondern auch das geistige Wirken durch die Meinungsäußerung. 7. Eine Meinungsäußerung, die eine Aufforderung zum Boykott enthält, verstößt nicht notwendig gegen die guten Sitten im Sinne des § 826 BGB; sie kann bei Abwägung aller Umstände des Falles durch die Freiheit der Meinungsäußerung verfassungsrechtlich gerechtfertigt sein”.
Advogado. Formado em Direito, no ano de 2015, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.<br><br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARLOS, Mario Sérgio da Costa. Direitos fundamentais nas relações privadas: o leading case (Lüth-Urteil) e sua recepção na doutrina e na jurisprudência brasileiras Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 ago 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47148/direitos-fundamentais-nas-relacoes-privadas-o-leading-case-luth-urteil-e-sua-recepcao-na-doutrina-e-na-jurisprudencia-brasileiras. Acesso em: 23 dez 2024.
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