RESUMO: Trata-se de uma análise crítica do Recurso Extraordinário 658312, em que o Supremo Tribunal Federal julga a constitucionalidade do art. 384 da Consolidação da Leis do Trabalho. Será exposto os motivos da decisão do STF no julgamento de tal recurso, bem como a crítica a este julgado.
PALAVRAS CHAVES: Proteção à mulher. Hora extra. 15 minutos de intervalo. Art. 384 da CLT. Inconstitucionalidade. RE 658.312. Críticas.
1. INTRODUÇÃO
O artigo 384 da Consolidação das leis do Trabalho (CTL), cujo texto faz parte da redação original da CLT de 1943, consagra o intervalo de 15 (quinze) minutos, no mínimo, antes da realização da hora extra em relação à jornada de trabalho das mulheres.
Diante desse dispositivo legal, surgiram basicamente duas teses: a tese da inconstitucionalidade do referido artigo; a tese da constitucionalidade do artigo.
Resta analisar, à luz do Recurso Extraordinário (RE) 658.312, julgado pelo Supremo Tribunal Federal, qual tese foi vencedora perante a Corte Maior e seus motivos.
2. PRINCÍPIO DA ISONOMIA
Primeiramente, é importante observar que o tema central do presente trabalho tem como fundamento o princípio da isonomia, o que torna imprescindível tecer breves considerações acerca de tal princípio. O art. 5°, caput e inciso I, da Constituição Federal de 1988 privilegia o princípio da igualdade e dispõe que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.
Segundo Marcelo Novelino, igualdade mostra-se como valor jurídico fundamental unido de modo indissociável à dignidade da pessoa humana. Esta, enquanto qualidade intrínseca de todo e qualquer indivíduo, exige que todas as pessoas sejam tratadas com igual respeito e consideração. A igualdade é o instrumento pelo qual a obrigação de respeitar as demais pessoas deve ser distribuída de modo universal.
O mesmo autor ainda revela que os direitos de igualdade podem ser diferenciados em duas dimensões, conforme o fim ao qual se destinam. A igualdade jurídica visa a impedir que sejam adotados tratamentos diferenciados para situações essencialmente iguais ou tratamentos iguais para situações essencialmente diferentes sem uma razão legítima para tal. A igualdade fática, por seu turno, tem por objetivo central a redução de desigualdades existentes no plano fático, o que exige necessariamente a adoção de um tratamento jurídico diferenciado.
Nesse contexto, mostra-se imperioso trazer à tona a expressão “isonomia formal (ou horizontal)” e “isonomia material (ou vertical)”. Ricardo Alexandre explica que a acepção horizontal refere-se às pessoas que estão niveladas, na mesma situação e que, portanto, devem ser tratadas da mesma forma. A acepção vertical, por sua vez, refere-se às pessoas que se encontram em situações distintas e que, justamente por isso, devem ser tratadas de maneira diferenciadas na medida em se diferenciam.
A grande controvérsia é saber até que ponto o uso da isonomia material não gera inconstitucionalidade. Pedro Lenza, citando o eminente jurista Celso Antônio Bandeira de Melo, demonstra três parâmetros a serem observados, a fim de se verificar a observância ao princípio da isonomia. São eles: (a) elemento a ser tomado como fator de desigualação; (b) correlação lógica abstrata existente entre o fator erigido em critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado; (c) consonância desta correção lógica com os interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados.
No plano infraconstitucional, a proteção do trabalho da mulher está inserida no capítulo III da CLT. Segundo Henrique Correia, os artigos constantes no capítulo referente à proteção à mulher apresentam diferenças justificáveis, uma vez que privilegiam o trabalho da mulher, sobretudo no tocante à proteção à maternidade e à condição física mais frágil das mulheres, se comparadas à dos homens.
Demonstrado breve apontamento acerca do princípio da isonomia, passa-se a análise das teses de inconstitucionalidade e de constitucionalidade do art. 384 da CLT.
2. TESE DA INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 384 DA CLT.
Contextualizando o presente julgado em análise, tem-se que a empresa “A. Angeloni & Cia. Ltda.” interpôs recurso extraordinário contra acórdão da Segunda Turma do Tribunal Superior do Trabalho, assim ementado na parte que interessa:
“INTERVALO DE 15 MINUTOS PREVISTO NO ART. 384 DA CLT. PARA MULHERES ANTES DO LABOR EM SOBREJORNADA. CONSTITUCIONALIDADE. O debate acerca da constitucionalidade do artigo 384 da CLT não suscita mais discussão no âmbito desta Corte, que, por intermédio do julgamento do TST-IIN-RR-1.540/2005-046-12-00.5, ocorrido na sessão do Tribunal Pleno no dia 17/11/2008, decidiu que o artigo 384 da CLT foi recepcionado pela Constituição Federal. Recurso de revista não conhecido”.
Segundo a relatoria do Ministro Dias Toffoli, o dispositivo impugnado ingressou neste país na vida jurídica das mulheres com o Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, o qual foi sancionado pelo então presidente Getúlio Vargas durante o período do Estado Novo, no qual não só se unificou toda a legislação trabalhista, como também se inseriram no mundo jurídico novos direitos dos trabalhadores. É importante relembrar que a cláusula geral da igualdade foi expressa em todas as Constituições brasileiras.
O autor do recurso invoca princípios e dispositivos constitucionais para sustentar sua tese de inconstitucionalidade do art. 384 da CLT. O primeiro artigo citado é o art. 5°, inciso I, o qual revela que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”. O segundo artigo invocado encontra-se no art. 7°, inciso XXX, o qual dispõe “proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil”.
Alega o recorrente que o art. 384 da CLT, cujo texto é originário, não foi recepcionado pela Carta Constitucional de 1988, o qual prevê a concessão de descanso de 15 minutos às mulheres entre a jornada de trabalho normal e o labor extraordinário, sob pena de violação ao princípio da isonomia, haja vista que não pode ser admitida a diferenciação apenas em razão do sexo.
Por fim, a empresa “A. Angeloni & Cia. Ltda.” também alega que se for considerado recepcionado o dispositivo impugnada haveria estímulo a discriminação no trabalho entre iguais.
3. TESE DA CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 384 DA CLT. POSICIONAMENTO DO STF E DO TST.
A tese da constitucionalidade do art. 384 da CLT foi vencedora no âmbito do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior do Trabalho. Abaixo será sintetizado e explicado as razões que motivaram esse entendimento, segundo o que foi exposto no Recurso Extraordinário RE 658312, sobretudo no voto do relator Dias Toffoli.
A Constituição Federal de 1988, sobre o tema, explicitou, em três mandamentos, a necessária garantia da igualdade, sob seus diversos aspectos. Assim: i) fixou a cláusula geral de igualdade, prescrevendo, em seu art. 5º, caput, que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (...)”; ii) estabeleceu uma cláusula específica de igualdade de gênero, declarando que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações” (art. 5º, inciso I, CF); e iii) ao mesmo tempo, deixou excepcionada a possibilidade de tratamento diferenciado, por opção do constituinte, na parte final desse dispositivo, salientando que isso se dará “nos termos [da] Constituição”.
As situações expressas de tratamento desigual, sobre as quais poderia ocorrer alguma dúvida, foram dispostas formalmente na própria Constituição, como verifica-se, por exemplo, nos arts. 7º, inciso XX, e 40, § 1º, inciso III, letras a e b.
Pela leitura esses dispositivos podemos concluir que a Constituição Federal veio a se utilizar de alguns critérios para esse tratamento diferenciado: i) em primeiro lugar, levou em consideração a histórica exclusão da mulher do mercado regular de trabalho e impôs ao Estado a obrigação de implantar políticas públicas, administrativas ou meramente legislativas de natureza protetora no âmbito do direito do trabalho; ii) considerou existir um componente orgânico, biológico, a justificar o tratamento diferenciado, inclusive pela menor resistência física da mulher; e iii) considerou haver, também, um componente social, pelo fato de ser comum o acúmulo de atividades pela mulher no lar e no ambiente de trabalho – o que, de fato, é uma realidade e, portanto, deve ser levado em consideração na interpretação da norma, como propõe a metódica concretista de Friedrich.
Esses parâmetros constitucionais são legitimadores de um tratamento diferenciado, desde que a norma instituidora amplie direitos fundamentais das mulheres e atenda ao princípio da proporcionalidade na compensação das diferenças. Essa é a tese em jogo e, ao se analisar o teor da regra atacada, podemos inferir que a norma trata de aspectos de evidente desigualdade de forma proporcional, garantindo o período de descanso de, no mínimo, quinze (15) minutos antes do início do período extraordinário de trabalho, à mulher trabalhadora.
É fato que houve, com o tempo, a supressão de alguns dispositivos protetores da mulher que cuidavam do trabalho noturno e da jornada de trabalho da empregada, previstos nos arts. 374 a 376, 378 a 380 e 387 da Consolidação das Leis do Trabalho. Ocorre que, quando da revogação desses dispositivos pela Lei nº 7.855, de 24/10/89, o legislador entendeu que deveria manter a regra do art. 384 da CLT, a fim de lhe garantir uma diferenciada proteção, dada a identidade biossocial peculiar da mulher e da sua potencial condição de mãe, gestante ou administradora do lar.
Em relação, ao posicionamento do TST, este tribunal vem reconhecendo a vigência do dispositivo ora impugnado. Destaca-se os seguintes trechos do voto do eminente Ministro Ives Gandra Martins Filho, Relator no julgamento do RR nº 121100- 07.2010.5.13.0026, da Sétima Turma, em 7/3/12, que acentuou a necessidade da manutenção da discriminação positiva em benefício da mulher:
“Ressalte-se que o maior desgaste natural da mulher trabalhadora, em comparação com o homem, dada a diferente compleição física, não foi desconsiderado pelo Constituinte de 1988, que garantiu, por exemplo, diferentes condições para a obtenção da aposentadoria para homens e mulheres, bem como previu períodos distintos de licenças maternidade e paternidade (CF, art. 7º, XVIII e XIX; art. 201, § 7º, I e II; ADCT, art. 10, § 1º).
Assim é que a própria Constituição da República, tendo em mira o estabelecimento de uma igualdade material, em detrimento de uma igualdade meramente formal, estabeleceu algumas diferenças entre os sexos. Logo, com o objetivo precisamente de concretizar o princípio albergado no inciso I do art. 5º da CF, devem-se tratar desigualmente homens e mulheres, na medida das suas desigualdades.
É justamente dentro desse conceito de igualdade material que se insere a ideia de concessão de vantagens específicas às trabalhadoras do sexo feminino, em função de suas circunstâncias próprias, como é o caso do intervalo de 15 minutos antes de iniciar uma jornada extraordinária de que trata o art. 384 da CLT.
Deve ser observado, por outro lado, que o Pleno desta Corte Superior, apreciando incidente de inconstitucionalidade (cfr. TST-IIN-RR-1.540/2005-046-12-00.5), concluiu que o art. 384 da CLT foi recepcionado pela Constituição de 1988, entendendo que a razão de ser do referido dispositivo legal é a proteção da trabalhadora mulher, fisicamente mais frágil que o homem e submetida a um maior desgaste natural em face da sua dupla jornada de trabalho, o que justifica o tratamento diferenciado da mulher em termos de jornada de trabalho e período de descanso” (DEJT, 9/3/12).
Não parece existir fundamento sociológico ou mesmo comprovação por dados estatísticos a amparar a tese de que o dispositivo em questão dificultaria ainda mais a inserção da mulher no mercado de trabalho. Não há notícia da existência de levantamento técnico ou científico a demonstrar que o empregador prefira contratar homens, em vez de mulheres, em virtude da obrigação em comento.
Por sua vez, diante desses argumentos jurídicos, não há espaço para uma interpretação que amplie, sob a tese genérica da isonomia, a concessão da mesma proteção ao trabalhador do sexo masculino, pois além de os declinados raciocínios lógico e jurídico impedirem que se aplique a norma ao trabalhador homem, sob o prisma teleológico da norma, não haveria sentido em se resguardar a discriminação positiva diante das condicionantes constitucionais mencionadas. Adotar a tese ampliativa acabaria por mitigar a conquista obtida pelas mulheres.
O dispositivo atacado não viola o art. 7º, inciso XXX, da Constituição Federal, na medida em que não diz respeito a tratamento diferenciado quanto ao salário a ser pago a homens e mulheres, a critérios diferenciados de admissão, ou mesmo a exercício de funções diversas entre diversos gêneros. Essa norma, com o devido respeito àqueles que advogam a tese contrária, não gera, no plano de sua eficácia, prejuízos ao mercado de trabalho feminino. Aliás, o intervalo previsto no art. 384 da CLT só tem cabimento quando a trabalhadora labora, ordinariamente, com jornada superior ao limite permitido pela lei e o empregador exige, diante de uma necessidade, que se extrapole esse período.
Adotar-se a tese da prejudicialidade nos faria inferir, também, que o salário-maternidade, a licença-maternidade, o prazo reduzido para a aposentadoria, a norma do art. 391 da CLT, que proíbe a despedida da trabalhadora pelo fato de ter contraído matrimônio ou estar grávida, e outros benefícios assistenciais e previdenciários existentes em favor das mulheres acabariam por desvalorizar a mão de obra feminina.
Portanto, há que se concluir que o art. 384 da CLT foi recepcionado pela atual Constituição, visto que são legítimos os argumentos jurídicos a garantir o direito ao intervalo. O trabalho contínuo impõe à mulher o necessário período de descanso, a fim de que ela possa se recuperar e se manter apta a prosseguir com suas atividades laborais em regulares condições de segurança, ficando protegida, inclusive, contra eventuais riscos de acidentes e de doenças profissionais. Além disso, o período de descanso contribui para a melhoria do meio ambiente de trabalho, conforme exigências dos arts. 7º, inciso XXII e 200, incisos II e VIII, da Constituição Federal.
4. CRÍTICAS AO POSICIONAMENTO DO STF
Seguiram o voto do relator os ministros Gilmar Mendes, Celso de Mello, Rosa Weber e Cármen Lúcia. Entretanto, os ministros Luiz Fux e Marco Aurélio divergiram.
Segundo os ministros divergentes, o dispositivo viola o princípio da igualdade, e, por isso, só poderia ser admitido nas atividades que demandem esforço físico. Nas palavras de Fux, há, no presente caso, efetiva distinção entre homens e mulheres, sendo uma proteção deficiente e uma violação da isonomia consagrar uma regra que dá tratamento diferenciado a homens e mulheres, que são iguais perante a lei.
No mesmo sentido, o ministro Marco Aurélio afirmou que o artigo 384 “é gerador de algo que a Carta afasta, que é a discriminação no mercado de trabalho”. Os dois ministros votaram no sentido de dar provimento ao recurso para reconhecer a inconstitucionalidade do artigo 384.
5. CONCLUSÃO
Em suma, o entendimento que prevalece, atualmente, tanto no âmbito do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça é de que o art. 384 da CLT é compatível com a Constituição Federal.
O principal fundamento que sustenta a recepção do impugnado artigo reside no fato de que a Constituição de 1988 estabeleceu cláusula específica de igualdade de gênero e, ao mesmo tempo, admitiu a possibilidade de tratamento diferenciado, levando em conta a histórica exclusão da mulher do mercado de trabalho; a existência de um componente orgânico, biológico, inclusive pela menor resistência física da mulher; e um componente social, pelo fato de ser comum a chamada dupla jornada – o acúmulo de atividades pela mulher no lar e no trabalho – que, de fato, é uma realidade e, portanto, deve ser levado em consideração na interpretação da norma.
Registre-se, também, que o posicionamento majoritário do STF não se encontra imune a críticas, haja vista posicionamentos acerca da inconstitucionalidade do art. 384 da CLT, em virtude do princípio da isonomia e da não discriminação entre sexos.
REFERÊNCIAS
ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado. 8.ª ed. São Paulo: editora método, 2014.
CORREIA, Henrique. Direito do Trabalho. 6.ª ed. Bahia: editora Juspodivm, 2014.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 19ª ed. São Paulo: editora saraiva, 2015.
NOVELINO, Marcelo. Manual de Direito Constitucional. 9.ª ed. São Paulo: editora método, 2014.
RECURSO EXTRAORDINÁRIO 658.312, disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE658312.pdf. Acesso em: 2 de julho de 2016.
Advogado. Formado pela ASCES - Faculdade Associação Caruaruense de Ensino Superior.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DIAS, Lucas Albuquerque. (In)constitucionalidade do intervalo de 15 minutos para mulheres antes de hora extra. Análise crítica do Recurso Extraordinário 658.312 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 ago 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47169/in-constitucionalidade-do-intervalo-de-15-minutos-para-mulheres-antes-de-hora-extra-analise-critica-do-recurso-extraordinario-658-312. Acesso em: 23 dez 2024.
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