RESUMO: Este trabalho deduz uma análise minuciosa dos posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais acerca da possibilidade da ocorrência do procedimento de dúvida inversa. Isso porque a Lei 6.015/73, legislação concernente aos registros públicos brasileiros, não prevê expressamente a sua viabilidade. Em que pese a forte resistência por parte dos oficiais cartoriais, que acreditam ser possível apenas a suscitação da dúvida em seu trâmite “tradicional” devidamente previsto na lei, muitos juristas estão revendo os seus entendimentos, ensejando reflexos nas decisões dos Tribunais Brasileiros, os quais estão aceitando a incidência do referido instituto jurídico com o intuito de consagrar a aplicação dos princípios da economia processual e da inafastabilidade do Poder Judiciário, garantidos na atual Constituição Federal.
Palavras-chave: Registros Públicos; Dúvida Inversa; Princípios constitucionais.
INTRODUÇÃO
Hodiernamente, a atividade notarial é exercida no Brasil por particulares em colaboração com o Poder Público, por meio de uma delegação de função pública, segundo dispõe o art. 236 da Constituição Federal. Consoante ensina a doutrinadora Juliana de Oliveira Xavier Ribeiro (2008, p. 01), é uma atividade executada em caráter privado com o fim de garantir a segurança jurídica dos atos praticados na vida civil.
Devido a isso, o direito registral brasileiro se tornou um dos ramos jurídicos que está se depositando maior relevância. Isso se justifica pelo fato de todos os cidadãos buscarem, com prioridade, a plena segurança jurídica dos atos e dos negócios praticados em uma relação fática, não os resguardando apenas para as partes vinculadas.
Essa situação resultou o fenômeno da publicização de, praticamente, todas as áreas do Direito, efetivando o efeito erga omnes.
Para a aquisição, por exemplo, da propriedade de um bem imóvel (nos casos do art. 108 do Código Civil[1]) ou móvel, não basta, no direito brasileiro, a realização de um contrato de compra e venda, ainda que perfeito e acabado, pois ele apenas criará direitos e obrigações entre os contratantes, nos moldes do art. 481 do Código Civil[2], não acarretando qualquer influência a terceiros.
A transferência do domínio e a constituição de um direito real, todavia, só se opera pelo instituto da tradição (no caso dos bens móveis) e pelo registro do título translativo no Cartório de Registro de Imóveis (no caso dos bens imóveis), consoante se vislumbra, respectivamente, da disposição do art. 492 e art. 1245 do mesmo diploma normativo[3].
O Código de Processo Civil também enfatiza a importância da publicidade dos atos processuais, podendo ser citado como exemplo o art. 615-A[4], disposição que acarreta prioridade de realização de ato de constrição de bem (penhora, por exemplo) daquele que foi, primeiramente, registrado na matrícula do imóvel.
O nosso ordenamento jurídico se baseou no sistema registral alemão, onde o registro é ato fundamental para a aquisição da propriedade. O ponto de maior diferenciação entre o sistema germânico e o brasileiro consiste no fato de que o primeiro considera o registro uma presunção iuris et de iuri (absoluta), enquanto que o segundo estabelece uma presunção juris tantum (relativa), com as devidas exceções do registro pelo sistema “Torrens”, que são exclusivos dos imóveis rurais, devidamente lembradas pela doutrinadora e Oficial Titular de Registros de Imóveis e Civil de Pessoas Naturais, Jurídicas e Títulos e Documentos da Comarca de Porto Belo do Estado de Santa Catarina Franciny Beatriz Abreu de Figueiredo e Silva (2008, p. 15).
Essa relativização da presunção de veracidade dos registros públicos enseja a produção de prova em contrário daqueles que pretendem “contestar” o direito informado no documento, alegando, por exemplo, a invalidade do título causal do registro, que somente pode ser feito na via judicial.
Afinal, segundo Franciny (2008, p. 15), o efeito constitutivo do registro está eminentemente atrelado ao seu título, ao qual pode ser originado de um negócio jurídico, por exemplo.
Em virtude desse contexto, editou-se a Lei n.º 6.015 de 31 de dezembro de 1973, a qual regula todas as possibilidades e viabilidades de registros públicos no Brasil.
A referida lei infraconstitucional estabelece quais são os títulos que podem ser submetidos a registros públicos e quais os requisitos que lhe são inerentes, sendo que, em decorrência do princípio da legalidade, o Oficial do cartório, após a realização do Protocolo no Livro 01 deverá, de uma forma minuciosa e cautelosa: (a) verificar se o imóvel está localizado na sua circunscrição; (b) conferir a qualificação das partes; (c) exigir as certidões negativas exigidas por lei; (d) assegurar se consta o número do título aquisitivo como matrícula, registro, transcrição ou inscrição do alienante; (e) verificar se a descrição do imóvel está nos moldes do art. 225 da Lei 6.015/73[5]; entre outros, dependendo do caso concreto.
Assim, provável que, faltando algum desses requisitos, o Oficial, no exercício legal de suas funções, não efetue o registro, emitindo-se uma “nota de devolução”, que deverá conter o motivo pelo qual o ato não foi realizado.
Se o interessado não preencher o que foi entendido como faltante, o registrador suscitará a dúvida, ensejando a abertura do procedimento administrativo previsto nos artigos 198 a 202 da Lei 6015/73, o qual será encaminhado ao Juiz competente, juntamente com a impugnação do interessado, sendo que após a manifestação do Ministério Público, órgão que atuará na condição de custus legis, julgará o feito por sentença.
Cabe lembrar que o Oficial registrador, na suscitação de dúvida em seu “procedimento tradicional”, é neutro, pois não tem interesse particular na procedência ou improcedência da questão, intentando tão somente sua resolução para que proceda ou não o registro. É sua função zelar pela autenticidade, segurança e eficácia dos registros públicos, respondendo civil e penalmente pelas falhas neste mister.
Todavia, o que se pretende trazer neste trabalho, é a verificação da (in)viabilidade da instauração do procedimento denominado “dúvida inversa ou indireta ou às avessas”, oportunidade em que o próprio interessado suscita a dúvida com o intuito de obter o registro do título no cartório respectivo.
1. DA ANÁLISE DOUTRINÁRIA E JURISPRUDENCIAL SOBRE A VIABILIDADE JURÍDICA DO PROCEDIMENTO DE DÚVIDA INVERSA:
Diante da divergência dos posicionamentos a respeito do assunto ora em comento, o que acarreta em uma complexidade jurídica, pertinente analisar separadamente os dois pontos defendidos pelos juristas, tanto na doutrina quanto na jurisprudência de diferentes Tribunais de Justiça deste país.
a) Posicionamentos favoráveis:
Em um primeiro momento, cabe salientar que os principais fundamentos jurídicos que embasam a possibilidade da ocorrência de uma suscitação de dúvida na sua forma “inversa” englobam, principalmente, dois aspectos: a garantia da inafastabilidade do acesso à Justiça e a celeridade processual.
O art. 5º, incisos XXXV e LXXVIII da Constituição Federal, os quais dispõem, respectivamente, que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” e que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação” são o ponto de partida para os embasamentos que vislumbram a viabilidade jurídica do particular, verdadeiro interessado no registro, ser o suscitante da dúvida.
O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul está reconhecendo a possibilidade deste tipo de procedimento de jurisdição voluntária, consoante se pode vislumbrar dos seguintes julgados: (i) Apelação Cível Nº 70042272658, Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nelson José Gonzaga, julgado em 15/09/2011; (ii) Apelação Cível Nº 70037807815, Décima Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Carlos Rafael dos Santos Júnior, julgado em 15/03/2011; (iii) Apelação Cível Nº 70008002008, Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Pedro Celso Dal Pra, julgado em 19/08/2004.
Nesse diapasão, relevante transcrever trecho do voto do iminente Desembargador Nelson José Gonzaga na Apelação Cível n.º 70042272658 da Décima Oitava Câmara Cível, julgada em 15/09/2011:
“(...) No entanto, atenta-se à existência no sistema jurídico registral, do instituto da “dúvida inversa”: Orienta-se a doutrina e jurisprudência em reconhecer a dúvida inversa como forma de irresignação do interessado ante a negativa do Oficial em efetuar ato de registro, em sentido estrito, irresignação essa manifestada diretamente ao Juízo competente para o exame de tal dissenso entre o apresentante do título e o registrador. Segundo tal orientação majoritária, não importa a forma pela qual o dissenso seja levado ao conhecimento do Juízo competente, se pelo Oficial, através da dúvida, se pelo interessado, por via de dúvida inversa. (...)”
Não obstante existir decisões do Tribunal de Justiça gaúcho negando provimento ao recurso de apelação dirigido a este Tribunal, é possível vislumbrar que elas não se relacionam sobre da viabilidade ou não da suscitação de dúvida indireta, mas pelo fato de ela ser utilizada de forma equivocada. Isso porque muitas pessoas utilizam o aludido procedimento como forma de aquisição de propriedade, pleiteando, por exemplo, o acréscimo e o registro de área ainda não titulada. Assim, o Egrégio Tribunal obriga-se a negar o pedido em virtude não utilização das vias pertinentes e adequadas. Nesse sentido, relevante transcrever a ementa abaixo:
“EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. REGISTRO DE IMÓVEIS, DÚVIDA SUSCITADA. REGISTRO DE FORMAL DE PARTILHA. DIFERENÇA DE DESCRIÇÃO, DE MEDIDAS E DE ÁREAS. IMPROPRIEDADES DO TÍTULO. PRETENSÃO DE RETIFICAÇÃO EM VIA INADEQUADA. 1. Tratando-se de processo de dúvida, o objeto a ser apreciado, tanto na via administrativa como na judicial, é a habilitação do título a ser levado a registro. Pretensões de retificação de área só podem ser enfrentadas e decididas em ação de retificação, seja no âmbito administrativo, seja no judicial, cuidando-se de distinto bem da vida a ser tutelado, na medida que seu objeto é o registro, enquanto viciado por erro. Distinção entre os procedimentos regulados pelos arts. 198/202 e pelos arts. 212/213, todos da Lei dos Registros Públicos.(...). APELAÇÃO DESPROVIDA. (Apelação Cível Nº 70027488212, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Elaine Harzheim Macedo, Julgado em 12/03/2009)”.
Retornando ao foco principal, insta salientar a posição do jurista Ivanildo Figueiredo, professor da Faculdade de Direito do Recife (UFPE) e Tabelião do 8º Ofício de Notas da Capital, o qual manifestou sua opinião em artigo publicado em endereço eletrônico da Associação dos Notários e Registradores do Brasil:
“A partir da manifestação do cartório de imóveis, o procedimento segue os mesmos passos dos arts. 199 a 201 da Lei 6.015/1973 para a suscitação normal. A jurisprudência vem admitindo a suscitação de dúvida inversa como medida de economia processual, como no seguinte acórdão do Conselho Superior da Magistratura de São Paulo: “Cédula rural pignoratícia. Penhor agrícola – prazo. Dúvida inversa. Registro de Imóveis – dúvida inversa que, nada obstante a ausência de previsão normativa, deve ser conhecida por economia procedimental – Ingresso no registro de cédula rural pignoratícia obstado por excesso na previsão de prazo do penhor agrícola, que não pode exceder de 3 anos, prorrogável por mais 3 – Inteligência do artigo 61 do Decreto-Lei 167/67 – Recurso provido para afastar o óbice processual e, no mérito, pelo art. 515, § 3º, do Código de Processo Civil c/c o art. 202 da Lei de Registros Públicos, mantida a negativa de registro.” (Apelação Cível nº 529-6/6, Urupês, julgada em 23/03/2006, DOE de 30/06/2006)”
Prevalece na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina a viabilidade da utilização da dúvida inversa, consoante se vislumbra das seguintes ementas:
SUSCITAÇÃO DE DÚVIDA INDIRETA. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. INTELIGÊNCIA DOS ART. 198 E SEGUINTES DA LEI N. 6.015/73 – LEI DE REGISTROS PÚBLICOS. Nos termos do art. 198 e ss da Lei n. 6.015/73 (Lei de Registros Públicos), o oficial poderá suscitar dúvida quando exigir, por escrito, determinada condição para o processo de registro e, mesmo assim, o apresentante não concorda ou não pode satisfazê-la. Então, o título é remetido ao juiz competente para dirimi-la, arequerimento e com a declaração de dúvida formulada pelo oficial. A suscitação de dúvida indireta (ou inversa) é aquela dirigida diretamente ao juiz pela parte, e não pelo Oficial de Registro. Assim, se a dúvida é pedido de natureza administrativa formulado pelo oficial, a requerimento do apresentante de título imobiliário, nada impede que, excepcionalmente, o próprio prejudicado requeira a apreciação da dúvida ao Poder Judiciário, já que ele é sempre o requerente ou apresentante, ao passo que o registrador apenas formaliza sua pretensão ao Juízo (Apelação Cível n. 2000.014891-1, de Blumenau, rel. Des. Carlos Prudêncio. Primeira Câmara Civil. j. em 14-8-01).
APELAÇÃO CÍVEL. SUSCITAÇÃO DE DÚVIDA. INDEFERIMENTO DA INICIAL. DÚVIDA INVERSA OU INDIRETA. ACESSO À JUSTIÇA. EXEGESE DO ART. 5º, XXXV, DA CF/88. PEDIDO JURIDICAMENTE POSSÍVEL. LEGITIMIDADE DO APRESENTANTE DO TÍTULO. SENTENÇA ANULADA. RECURSO PROVIDO. "Embora refira-se a Lei n. 6.015/73 apenas à dúvida suscitada pelo oficial, tem-se admitido, em jurisprudência, a chamada dúvida inversa ou indireta, provocada diretamente pela parte perante o juiz, abreviando-se o procedimento legal, já que o apresentante do título, em vez de dirigir sua inconformidade ao oficial, para que este a formalize em Juízo, apresenta-a diretamente ao órgão judicial" (Apelação Cível n. 2006.038072-4, Tribunal de Justiça de SC, Desembargador Luiz Carlos Freyesleben, julgado em 18/09/2009)
Com base nos mesmos argumentos, os Tribunais de Justiça do Estado de Espírito Santo e do Rio de Janeiro, apesar de possuir decisões de ambos os posicionamentos em virtude da controvérsia da matéria, também já se manifestaram nesse sentido, podendo ser citados os seguintes julgados: (i) AC 48090033902; TJES, Terceira Câmara Cível; Rel. Des. Ronaldo Gonçalves de Sousa; Julg. 08/12/2009; DJES 12/01/201;(ii) AC 21060047897; TJES, Segunda Câmara Cível; Rel. Des. Subst. Raimundo Ribeiro Siqueira; Julg. 10/06/2008; DJES 11/07/2008; (iii) AC 24039003454; TJES, Terceira Câmara Cível; Relª Desª Catharina Maria Novaes Barcellos; Julg. 18/06/2007; DJES 05/07/2007; (iv) TJRJ, AC 2007.001.42884, Relator: JDS. DES. Heleno Ribeiro Pereira Nunes, Julgado em 30/10/2007.
Diante do exposto, verifica-se que, não obstante a inexistência de norma que preveja a ocorrência do instituto da dúvida inversa, ela é aceita, por grande parte da jurisprudência dos Tribunais de Justiça dos Estados mencionados acima, principalmente para garantir os princípios constitucionais da inafastabilidade do acesso à Justiça e da celeridade processual.
b) Posicionamentos desfavoráveis:
Cumpre destacar, nessa oportunidade, os argumentos jurídicos daqueles operadores do Direito que se inclinam pela impossibilidade da suscitação de dúvida por parte do particular.
O primeiro óbice encontrado nesta linha de pensamento se limita ao fato do legislador infraconstitucional não ter incluído na Lei n.º 6015/73 essa modalidade de procedimento, uma vez que os artigos 198 a 202 da referida Lei restringiu-se a prever a suscitação de dúvida por parte do Oficial registrador, conhecido como modelo tradicional.
No que tange à limitação do art. 198 da LRP ferir o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário (art. 5º, inciso XXXV, da CF), o advogado Phelipe de Monclayr Polete Xalazans Salim defende que:
“(...) Entendo que o princípio da inafastabilidade de apreciação de lesão ou ameaça de lesão pelo Poder Judiciário não justifica a aceitação do uso da chamada Suscitação de Duvida Inversa. Referida apreciação a que se refere o art. 5º, XXXV da Constituição da República, é aquela apreciação provocada através da ação.
O que faz o interessado ao propor a Dúvida Inversa, ou ao requerer ao oficial registrador o levantamento de Dúvida, nada mais é do que transferir ao Juiz Corregedor a incumbência de proceder a um segundo exame qualificador, ou seja, trata-se de uma revisão da decisão de indeferimento proferida pelo Oficial. Não é a Dúvida um mecanismo voltado a despertar a Jurisdição de sua inércia. Não é a Dúvida uma ação, e sim recurso administrativo.
Ao condicionar que o requerimento de Dúvida seja direcionado ao Oficial Registrador, o art. 198 da LRP não fere o princípio da inafastabilidade de apreciação de lesão ou ameaça de lesão pelo Poder Judiciário, mas apenas cria uma regra de procedimento. Em comparação com o Processo Civil, podemos dizer que trata-se de regra similar àquela do art. 514 do Estatuto Processual, que determina a interposição da apelação por petiçãodirigida ao juiz, muito embora não seja ele o destinatário do recurso (...)”
Ronaldo Santos de Oliveira, Juiz Federal do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, especialista em Direito Notarial e Registral pela Universidade Presidente Antônio Carlos (UNIPAC), mestrando em Direito Empresarial pela Faculdade Milton Campos, advoga que não é aceita a "dúvida inversa", pois o que a parte pode fazer é reclamar (no sentido de representar) ao Juiz que o oficial não suscitou a dúvida ou não cumpriu com alguns de seus deveres.
A propósito, doutrina Walter Ceneviva (1997, p. 367)
“Dúvida é do oficial. A jurisprudência tem hesitado, ora admitindo, ora recusando, a chamada dúvida inversa, declarada pela parte ao juiz, com afirmativa de exigência descabida do serventuário. Não se viabiliza, porém, na Lei nº 6.015, a dúvida inversa. A parte pode dirigir-se ao juiz, na forma da legislação estadual queixando-se de recusa do oficial de, no prazo, proceder a um certo registro ou declarar dúvida. Não pode, porém, substituir-se ao serventuário na própria declaração, como, aliás, resulta de outros textos legais que a ela se referem. Demais disso o requerente da dúvida inversa não tem a garantia da prenotação.”
Da mesma forma, a Oficial Titular de Registros de Imóveis e Civil de Pessoas Naturais, Jurídicas e Títulos e Documentos da Comarca de Porto Belo/SC Franciny (2008, p. 141) acredita que tal suscitação não foi acolhida pela Lei de Registros Públicos e defende que “por se tratar de procedimento equivocado, não amparado em Lei, sua extinção sem julgamento do mérito é a medida recomendada”
O Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo e do Rio de Janeiro já decidiram nesse sentido:
APELAÇÃO CÍVEL N.º 24050026293 APTE. JOSÉ ANGELO RODRIGUES AMORIM RELATOR. DES. ELPÍDIO JOSÉ DUQUE EMENTA. APELAÇÃO CÍVEL EM SUSTAÇÃO INVERSA DE DÚVIDA. REGISTRO PÚBLICO. DÚVIDA INVERSA. PREVISÃO LEGAL. INEXISTÊNCIA. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO.1 - Ainda que uma corrente doutrinária e até jurisprudencial aceite a dúvida inversa sob a ótica da economia processual, não há previsão legal para a mesma, nem lacuna na Lei que a justifique. 2 – Com o advento da Lei n. 6.015/73, inviável a suscitação de dúvida inversa. (TJES; AC 024.05.002629-3; Segunda Câmara Cível; Rel. Des. Elpídio José Duque; Julg. 11/07/2006; DJES 16/08/2006).
Registro imobiliário. Matrícula. Requisitos do artigo 176 da Lei Federal 6015. Inobservância de formalidades que viola o princípio da continuidade dos registros. Condições para a segurança do assento. Ausência de provas da apresentação do título ao registrador e da suscitação de dúvida. Procedimento administrativo previsto no artigo 198 da Lei de Registros Públicos. Dúvida inversa. Impossibilidade. Preliminar de nulidade da sentença afastada. Desnecessária intimação pessoal. Artigo 267, §1º, do CPC inaplicável às decisões de mérito. Preliminar de nulidade da sentença afastada. Apelação desprovida (TJRJ, APELAÇÃO CÍVEL Nº 0090935-31.1993.8.19.0001, Décima Câmara Cível,Rel. Des. BERNARDO MOREIRA GARCEZ NETO, Julgado 10/11/2010).
Assim, diante de uma posição mais conversadora, é possível verificar que existem, ainda, diversas decisões, bem como pensamentos doutrinários negando a viabilidade do processo de dúvida inversa, principalmente pelo fato da inexistência de previsão legal.
CONCLUSÃO:
A questão ora em análise é, efetivamente, bastante divergente na doutrina e na jurisprudência pátria. Isso se justifica em razão da inexistência de previsão legal sobre a possibilidade ou não do próprio interessado (particular) suscitar a dúvida para obter o registro de um título.
Enquanto alguns juristas interpretam a lei de uma forma restrita e isolada, apenas admitindo o que expressamente está previsto nela, outros se preocupam em garantir a efetividade de princípios previstos em todo o ordenamento jurídico brasileiro, dando ênfase àqueles elencados na atual Carta Magna.
Assim, entendo que mesmo que a Lei de Registros Públicos (Lei n.º 6.015/73) não preveja a possibilidade do procedimento de dúvida inversa, mas somente o de rito tradicional (artigos 198 a 202), a sua ocorrência é juridicamente viável.
A aplicação da lei pressupõe, além de uma imprescindível filtragem constitucional, a verificação de qual é o real anseio da sociedade. Isso significa que a interpretação do direito deve se obter de uma forma hermenêutica e não somente, positivista. Assim, mesmo que o legislador de 1973 não tenha previsto a possibilidade do particular (interessado direto na realização do registro) suscitar a dúvida, é pertinente e proporcional que isso seja aceito em razão da atual Constituição Federal garantir que a lei não excluirá a prestação jurisdicional de lesão ou ameaça a direito e que a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.
Nesse diapasão, importante os ensinamentos de Carlos Maximiliano (1988, p. 278):
"O hermeneuta de hoje não procura, nem deduz, o que o legislador de anos anteriores quis estabelecer, e, sim, o que é de presumir que ordenaria, se vivesse no ambiente social hodierno. Sem esbarrar de frente com os textos, ante a menor dúvida possível o intérprete concilia os dizeres da norma com as exigências sociais; mostrando sempre o puro interesse de cumprir as disposições escritas, muda-lhes insensivelmente a essência, às vezes até malgrado seu, isto é, sem o desejar; e assim exerce, em certa medida, função criadora: comunica espírito novo à lei velha"
Não obstante o princípio da legalidade do Direito Registral Imobiliário ensinar que o Oficial registrador deva seguir, obrigatoriamente, os ditames legais, inaceitável que o formalismo atinja ao extremo de negar a um particular a faculdade de questionar a não ocorrência do registro. Existem casos, por exemplo, que, apesar de ser urgente, o Oficial demora na suscitação da dúvida, devendo, pois, o particular agir para acelerar aquilo que entende correto, suscitando a dúvida ao Juízo.
O Superior Tribunal de Justiça já decidiu, há bastante tempo, a respeito da necessidade de se dar uma nova visão ao processo brasileiro, afirmando que "A concepção moderna do processo, como instrumento de realização de justiça, repudia o excesso de formalismo que culmina por inviabilizá-la." (REsp. nº 15.713 - MG, Relator Ministro Sálvio de Figueiredo, 4ª Turma, STJ, DJU 24-2-92, p. 1.876).
Ademais, não olvidamos que o legislador não restringiu esse tipo de medida, proibindo a utilização do instituto pela iniciativa do particular, não cabendo ao intérprete fazê-lo. O Superior Tribunal de Justiça ressaltou, recentemente, que “A admissibilidade em abstrato da tutela pretendida, vale dizer, na ausência de vedação explícita no ordenamento jurídico para a concessão do provimento jurisdicional” (STJ, REsp 254.417/MG, DJ de 02.02.2009).
Em informativo eletrônico do Superior Tribunal de Justiça, titulado como “Interpretação da Constituição é a base para solução de casos difíceis”, o jurista Luis Roberto Barrroso destaca que:
“(...) A interpretação tradicional constitucional seguia princípios como a supremacia da carta magna, a presunção da constitucionalidade de suas normas, a sua unidade, etc. A administração da Justiça seria quase um ato mecânico. Já a interpretação moderna, explicou o professor, significou a mudança de vários paradigmas. “A lei não é mais vista como expressão de verdade, mas como expressão do interesse majoritário”, ponderou. Outra mudança foi a superação da cultura jurídica positivista, pois o Direito se tornou maior que as ordens e normas legais. “O direito não cabe dentro só das normas e se reaproximou da ética e ciências filosóficas e sociais (...)”.
Portanto, diante da inexistência de proibição legal, mas principalmente com o fim de consagrar a efetividade de princípios constitucionais, viável a suscitação da dúvida inversa no atual ordenamento jurídico brasileiro.
REFERÊNCIAS:
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BRASIL. Código de Processo Civil Brasileiro. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília. DF. 11 de janeiro de 1973. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L5869.htm>. Acesso em: 02 jun. 2012.
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FIGUEIREDO, Ivanildo. Dúvida Inversa. Disponível em < http://www.anoreg.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=13445:imported_13435&catid=32:artigos&Itemid=12.> Acesso em: 22 abr. 2012.
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[1] Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País.
[2]Art. 481. Pelo contrato de compra e venda, um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro.
[3]Art. 1.267. A propriedade das coisas não se transfere pelos negócios jurídicos antes da tradição; e Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis.
[4]Art. 615-A. O exeqüente poderá, no ato da distribuição, obter certidão comprobatória do ajuizamento da execução, com identificação das partes e valor da causa, para fins de averbação no registro de imóveis, registro de veículos ou registro de outros bens sujeitos à penhora ou arresto.
[5]Art. 225 - Os tabeliães, escrivães e juízes farão com que, nas escrituras e nos autos judiciais, as partes indiquem, com precisão, os característicos, as confrontações e as localizações dos imóveis, mencionando os nomes dos confrontantes e, ainda, quando se tratar só de terreno, se esse fica do lado par ou do lado ímpar do logradouro, em que quadra e a que distância métrica da edificação ou da esquina mais próxima, exigindo dos interessados certidão do registro imobiliário.
Advogada. Bacharel em Direito na Universidade Federal de Santa Maria.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DARONCH, Bruna. A (in)viabilidade do procedimento de dúvida inversa no atual ordenamento jurídico brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 ago 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47189/a-in-viabilidade-do-procedimento-de-duvida-inversa-no-atual-ordenamento-juridico-brasileiro. Acesso em: 27 dez 2024.
Por: JOALIS SILVA DOS SANTOS
Por: Caio Henrique Lopes dos Santos
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