RESUMO: O presente artigo apresenta as alterações promovidas pela Resolução STJ no 03/2016 nas regras de competência e cabimento de Reclamação nos Juizados Especiais Cíveis e Criminais dos Estados e do DF. O fluxo volumoso de Reclamações no STJ em face de decisões de Turmas Recursais estaduais e distritais é indicado na mencionada resolução como fator de motivação para a sua edição, restando revogada a Resolução no 12/2009. Todavia, ao transferir para os Tribunais de Justiça a competência para processar e julgar as Reclamações ao STJ, bem como ampliando desmesuradamente a hipótese de cabimento “para garantir a observância de precedentes”, a nova resolução do STJ criou uma espécie recursal sem previsão legal. Dessa forma, verifica-se que o novo regramento da Reclamação é inconstitucional por violação à competência privativa da União para legislar sobre direito processual, à autonomia dos Estados-Membros e do DF para sua organização judiciária (art. 125, §1º da CF/88), à autonomia orgânico-administrativa dos Tribunais de Justiça (art. 96, I, da CF/88) e à norma no art. 105, I, “f”, da CF/88, que prevê a reclamação ao STJ para preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões.
Palavras-chave: Constitucional. Processual civil. Juizado Especial. Reclamação. Uniformização de Jurisprudência. Resolução STJ no 03/2016. Competência privativa da União.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. DESENVOLVIMENTO. 2.1. Disciplina constitucional e legal da Reclamação. 2.2. Reclamação ao STJ no âmbito dos Juizados Especiais dos Estados e DF. 2.3 Inconstitucionalidade das alterações promovidas pela Resolução STJ no 03/2016. 3. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
O presente artigo apresenta as alterações promovidas pela Resolução STJ no 03, de 7 de abril de 2016, nas regras de competência e cabimento de Reclamação nos Juizados Especiais Cíveis e Criminais dos Estados e do DF, com a finalidade de proceder a uma filtragem constitucional de suas disposições.
No desenvolvimento, será apresentada na seção 2.1 uma visão panorâmica da disciplina constitucional e legal da Reclamação, abrangendo as hipóteses constitucionais aplicáveis ao STF e ao STJ (arts. 102, I, “l”, 105, I, “f” e 103-A, §3º da CF), bem como o regramento infraconstitucional do novo Código de Processo Civil de 2015, dos Regimentos Internos do STF (RISTF) e do STJ (RISTJ) e das normas previstas em leis específicas.
Na seção 2.2, o objeto de estudo será a construção jurisprudencial que levou à admissibilidade excepcional e temporária do cabimento da Reclamação Constitucional para o STJ em face de decisões de Turmas Recursais dos Juizados Especiais dos Estados e do DF. Tal possibilidade decorre da lacuna normativa da Lei no 9.099/95, a qual, diferentemente das Leis no 10.259/01 (Juizados Especiais Federais) e 12.153/09 (Juizados Especiais da Fazenda Pública), não previu o instituto do pedido de uniformização de jurisprudência para preservação dos entendimentos consolidados do STJ. Serão apresentadas as inovações trazidas pela Resolução STJ no 03/2016, comparando-as com as disposições da Resolução STJ no 12/2009, que disciplinava a matéria anteriormente.
Em seguida, na seção 2.3 será analisada a constitucionalidade formal e material da Resolução STJ no 03/2016, verificando-se que, ao transferir para os Tribunais de Justiça a competência para processar e julgar Reclamação, bem como ampliando desmesuradamente a hipótese de cabimento “para garantir a observância de precedentes”, o novo regramento criou uma nova espécie recursal sem previsão legal, o que implica violação da competência privativa da União para legislar sobre direito processual, da autonomia dos Estados-Membros e do DF para sua organização judiciária (art. 125, §1º da CF/88), da autonomia orgânico-administrativa dos Tribunais de Justiça (art. 96, I da CF/88) e da norma no art. 105, I, “f” da CF/88, que prevê a reclamação ao STJ para preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões.
Finalmente, na conclusão são tecidas considerações finais sobre os assuntos tratados neste artigo e sobre os vícios de inconstitucionalidade apontados na Resolução STJ no 03/2016.
2. DESENVOLVIMENTO
A Reclamação é resultado de construção jurisprudencial do STF anterior à Constituição de 1988, sob o fundamento da teoria dos poderes implícitos[1]. Segundo essa teoria, os tribunais possuem o poder implícito de dar efetividade às suas decisões e defender sua competência, em virtude do poder explícito de prestar a tutela jurisdicional. O regramento positivado da Reclamação surgiu em 1957, quando foi incluído no RISTF[2]. A edição de 1980 do regimento trata da reclamação nos arts. 156 a 162.
Com a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, a Reclamação passou a ser expressamente prevista no ordenamento constitucional brasileiro, sendo da competência originária do STF ou do STJ nas seguintes hipóteses de cabimento:
a) para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões, conforme arts. 102, I, “l” (STF) e 105, I, “f” (STJ), da CF/88; ou
b) para anular ato administrativo ou cassar decisão judicial que contrarie súmula vinculante ou a deixe de aplicar indevidamente, conforme art. 103-A, §3º da CF/88, incluído pela Emenda Constitucional no 45/2004.
Após a entrada em vigor da CF/88, o RISTJ, editado em 1989, disciplinou a Reclamação nos arts. 188 a 192, atualmente com algumas modificações introduzidas pela Emenda Regimental no 22/2016. Em 1990, foi editada a Lei no 8.038/90, instituindo normas procedimentais nos arts. 13 a 18 sobre o rito das Reclamações perante o STF e o STJ. Todavia, com a entrada em vigor do novo Código de Processo Civil (Lei no 13.105/15) em 18 de março de 2016, aquelas normas da Lei no 8.038/90 foram revogadas.
Com respeito à propositura de Reclamação ao STF para garantia da autoridade de suas decisões consolidadas em súmulas vinculantes, o art. 7º da Lei no 11.417/06 prevê o seu cabimento em face de decisão judicial ou ato administrativo que contrariar, negar vigência ou aplicar súmula vinculante indevidamente. Tratando-se de omissão ou ato administrativo, o §1º do mencionado artigo exige o esgotamento da via administrativa, só após a qual estará presente o interesse de agir do autor da Reclamação.
Finalmente, o CPC/2015, ao buscar racionalizar a observância dos precedentes judiciais pelas instâncias ordinárias, conferiu nova disciplina ao rito da Reclamação, ampliando as hipóteses de cabimento perante qualquer tribunal, conforme disposto no art. 988:
“Art. 988. Caberá reclamação da parte interessada ou do Ministério Público para:
I - preservar a competência do tribunal;
II - garantir a autoridade das decisões do tribunal;
III - garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; (Redação dada pela Lei nº 13.256, de 2016).
IV - garantir a observância de acórdão proferido em julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas ou de incidente de assunção de competência. (Redação dada pela Lei nº 13.256, de 2016).
§ 1º A reclamação pode ser proposta perante qualquer tribunal, e seu julgamento compete ao órgão jurisdicional cuja competência se busca preservar ou cuja autoridade se pretenda garantir.
[...]
§ 4º As hipóteses dos incisos III e IV compreendem a aplicação indevida da tese jurídica e sua não aplicação aos casos que a ela correspondam.
§ 5º É inadmissível a reclamação: (Redação dada pela Lei nº 13.256, de 2016).
I – proposta após o trânsito em julgado da decisão reclamada; (Redação dada pela Lei nº 13.256, de 2016).
II – proposta para garantir a observância de acórdão de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida ou de acórdão proferido em julgamento de recursos extraordinário ou especial repetitivos, quando não esgotadas as instâncias ordinárias. (Redação dada pela Lei nº 13.256, de 2016).
§ 6º A inadmissibilidade ou o julgamento do recurso interposto contra a decisão proferida pelo órgão reclamado não prejudica a reclamação.”
Conforme salienta a doutrina[3], o CPC/2015 inova ao prever a possibilidade de ajuizamento de Reclamação para garantir a observância de precedentes decididos em incidentes de resolução de demandas repetitivas (IRDR) e em incidentes de assunção de competência. Interpretando-se a contrario sensu o inciso II do §5º do art. 988, incluído pela Lei no 13.256/16, é possível ajuizar Reclamação também para garantir a observância de acórdão de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida ou de acórdão proferido em julgamento de recursos extraordinário ou especial repetitivos, após o esgotamento das instâncias ordinárias[4]. Relevante destacar que a mencionada hipótese representa superação legislativa da jurisprudência do STF que, antes da vigência do CPC/2015, não admitia o cabimento de Reclamação com fundamento em recurso extraordinário julgado segundo a sistemática da repercussão geral[5].
É necessário salientar, ainda, o não cabimento da reclamação em face de decisão judicial transitada em julgado, conforme previsão expressa do inciso I do § 5º do art. 988 do CPC/2015.
Quanto à natureza jurídica da Reclamação, entende a doutrina majoritária[6] que se trata de ação autônoma de impugnação de decisões judiciais. O STF, por sua vez, já afirmou[7] que a reclamação consubstancia exercício do direito de petição, previsto no art. 5º, XXXIV, "a", da CF/88:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:
a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder;”
Dessa forma, consideradas as normas supramencionadas da CF/88 e da legislação processual, verifica-se que a finalidade essencial da Reclamação é servir de instrumento para que o próprio tribunal possa afastar decisões ou atos que representem usurpação de sua competência ou inobservância de sua jurisprudência consolidada. Não há previsão de Reclamação sendo processada e julgada por outro tribunal diverso daquele que fora desrespeitado pela decisão ou ato impugnado. O §1º do art. 988 do CPC/2015 é expresso ao determinar que o julgamento da reclamação “compete ao órgão jurisdicional cuja competência se busca preservar ou cuja autoridade se pretenda garantir”.
Não obstante a CF/88 prever apenas a Reclamação para o STF e o STJ, nada obsta à lei processual prever instrumentos – com natureza recursal ou não – para que os tribunais possam fazer valer sua competência e sua jurisprudência consolidada, tal como fez do CPC/2015. Em verdade, os Estados também podem prever o instrumento da Reclamação em suas respectivas Constituições, conforme já admitiu o STF, com fundamento no art. 125, §1º da CF/88, segundo a qual a Constituição do Estado definirá a competência dos tribunais de justiça:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 108, INCISO VII, ALÍNEA I DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO CEARÁ E ART. 21, INCISO VI, LETRA J DO REGIMENTO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA LOCAL. PREVISÃO, NO ÂMBITO ESTADUAL, DO INSTITUTO DA RECLAMAÇÃO. INSTITUTO DE NATUREZA PROCESSUAL CONSTITUCIONAL, SITUADO NO ÂMBITO DO DIREITO DE PETIÇÃO PREVISTO NO ARTIGO 5º, INCISO XXXIV, ALÍNEA A DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. INEXISTÊNCIA DE OFENSA AO ART. 22, INCISO I DA CARTA. 1. A natureza jurídica da reclamação não é a de um recurso, de uma ação e nem de um incidente processual. Situa-se ela no âmbito do direito constitucional de petição previsto no artigo 5º, inciso XXXIV da Constituição Federal. Em consequência, a sua adoção pelo Estado-membro, pela via legislativa local, não implica em invasão da competência privativa da União para legislar sobre direito processual (art. 22, I da CF). 2. A reclamação constitui instrumento que, aplicado no âmbito dos Estados-membros, tem como objetivo evitar, no caso de ofensa à autoridade de um julgado, o caminho tortuoso e demorado dos recursos previstos na legislação processual, inegavelmente inconvenientes quando já tem a parte uma decisão definitiva. Visa, também, à preservação da competência dos Tribunais de Justiça estaduais, diante de eventual usurpação por parte de Juízo ou outro Tribunal local. 3. A adoção desse instrumento pelos Estados-membros, além de estar em sintonia com o princípio da simetria, está em consonância com o princípio da efetividade das decisões judiciais. 4. Ação direta de inconstitucionalidade improcedente”. (ADI 2212, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno, julgado em 02/10/2003, DJ 14-11-2003 PP-00011 EMENT VOL-02132-13 PP-02403)
O sistema[8] processual dos Juizados Especiais (JE) é composto pelas Leis no 9.099/95 (JE Cíveis e Criminais dos Estados/DF), 10.259/01 (JE Federais) e 12.159/09 (JE da Fazenda Pública dos Estados/DF e Municípios), as quais dão concretude ao comando do inciso I e § 1º da CF/88.
No âmbito dos JE Federais e JE da Fazenda Pública, as respectivas leis instituíram mecanismos para preservar os entendimentos consolidados ou mesmo sumulados do STJ.
O art. 14 da Lei nº 10.259/01 dispõe que a parte pode formular pedido de uniformização de jurisprudência para a Turma Regional de Uniformização (TRU) ou para a Turma Nacional de Uniformização (TNU), conforme a situação. Na hipótese de a orientação adotada pela Turma de Uniformização, em questões de direito material, contrariar súmula ou jurisprudência dominante no STJ, poderá a parte prejudicada provocar a manifestação desse Tribunal Superior, que dirimirá a divergência (§ 4º).
Por sua vez, o art. 18 da Lei no 12.159/01 permite a formulação de pedido de uniformização de interpretação de lei quando houver divergência entre decisões proferidas por Turmas Recursais sobre questões de direito material. Na hipótese de divergência de interpretação de lei federal por Turmas de diferentes Estados, ou no caso de a decisão impugnada estiver em contrariedade com enunciado da súmula do STJ, o pedido de uniformização será por este julgado.
Importante destacar, nesse ponto, que, diferentemente da Lei no 10.259/01, a Lei no 12.153/09 não previu o cabimento do pedido de uniformização ao STJ contra acórdão de Turma Recursal de JE da Fazenda Pública em contrariedade com orientação firmada em jurisprudência do STJ. Esse entendimento foi confirmado em julgado da 1ª Seção, de 2015[9].
No caso dos Juizados Especiais Estaduais, contudo, a Lei no 9.099/95 não previu o pedido de uniformização ou instrumento semelhante para preservação dos entendimentos consolidados ou sumulados do STJ desrespeitados por decisões das turmas recursais. Trata-se de uma lacuna normativa que, se não fosse colmatada, possibilitaria a eternização de decisões em contrariedade aos entendimentos consolidados do STJ, afrontando os princípios da segurança jurídica e da plenitude da tutela jurisdicional, uma vez que não é cabível a interposição de Recurso Especial em face de decisão de Turma Recursal, a qual não se enquadra no conceito de tribunal a que alude o art. 105, III, da CF/88, estando tal entendimento consolidado na Súmula 203 do STJ[10].
A fim de superar essa omissão legislativa, o STF passou a admitir, ao julgar Embargos de Declaração no RE no 571.572-BA, a propositura em caráter excepcional e temporário de Reclamação constitucional ao STJ, com fundamento no art. 105, I, “f”, da CF/88, em face de decisão de Turma Recursal de Juizado Especial Estadual, até a criação da Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Estaduais e do DF:
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AUSÊNCIA DE OMISSÃO NO ACÓRDÃO EMBARGADO. JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. APLICAÇÃO ÀS CONTROVÉRSIAS SUBMETIDAS AOS JUIZADOS ESPECIAIS ESTADUAIS. RECLAMAÇÃO PARA O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. CABIMENTO EXCEPCIONAL ENQUANTO NÃO CRIADO, POR LEI FEDERAL, O ÓRGÃO UNIFORMIZADOR. 1. No julgamento do recurso extraordinário interposto pela embargante, o Plenário desta Suprema Corte apreciou satisfatoriamente os pontos por ela questionados, tendo concluído: que constitui questão infraconstitucional a discriminação dos pulsos telefônicos excedentes nas contas telefônicas; que compete à Justiça Estadual a sua apreciação; e que é possível o julgamento da referida matéria no âmbito dos juizados em virtude da ausência de complexidade probatória. Não há, assim, qualquer omissão a ser sanada. 2. Quanto ao pedido de aplicação da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, observe-se que aquela egrégia Corte foi incumbida pela Carta Magna da missão de uniformizar a interpretação da legislação infraconstitucional, embora seja inadmissível a interposição de recurso especial contra as decisões proferidas pelas turmas recursais dos juizados especiais. 3. No âmbito federal, a Lei 10.259/2001 criou a Turma de Uniformização da Jurisprudência, que pode ser acionada quando a decisão da turma recursal contrariar a jurisprudência do STJ. É possível, ainda, a provocação dessa Corte Superior após o julgamento da matéria pela citada Turma de Uniformização. 4. Inexistência de órgão uniformizador no âmbito dos juizados estaduais, circunstância que inviabiliza a aplicação da jurisprudência do STJ. Risco de manutenção de decisões divergentes quanto à interpretação da legislação federal, gerando insegurança jurídica e uma prestação jurisdicional incompleta, em decorrência da inexistência de outro meio eficaz para resolvê-la. 5. Embargos declaratórios acolhidos apenas para declarar o cabimento, em caráter excepcional, da reclamação prevista no art. 105, I, f, da Constituição Federal, para fazer prevalecer, até a criação da turma de uniformização dos juizados especiais estaduais, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça na interpretação da legislação infraconstitucional. (RE 571572 ED, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno, julgado em 26/08/2009, DJe-223 DIVULG 26-11-2009 PUBLIC 27-11-2009 EMENT VOL-02384-05 PP-00978 RTJ VOL-00216-01 PP-00540)
Tal posição do STF veio a ser incorporada pelo STJ, ao julgar em 2009 Questão de Ordem na Reclamação no 3.752-GO[11], implicando a edição da Resolução STJ no 12/2009, a fim de disciplinar o rito da Reclamação ao STJ no âmbito dos Juizados Especiais Estaduais. De acordo com a referida resolução, será cabível a Reclamação quando decisão de Turma Recursal contrariar a interpretação de lei federal firmada pelo STJ em sede de julgamento sob a sistemática dos recursos repetitivos ou consolidada em súmula daquele Tribunal Superior. Uma terceira hipótese de cabimento da Reclamação, admitida pela jurisprudência do STJ, se verifica quando a decisão da Turma Recursal for teratológica, ou seja, flagrantemente absurda, ilegal ou abusiva. Tal hipótese de verifica, por exemplo, quando há aplicação de multa cominatória (astreintes) em valor exorbitante[12].
É oportuno salientar que, diante da previsão do pedido de uniformização pelas Leis no 10.259/01 e no 12.159/09, com possibilidade de julgamento pelo STJ, conforme o caso, a jurisprudência do STJ não admite o cabimento de Reclamação no âmbito dos Juizados Especiais Federais[13] e Juizados Especiais da Fazenda Pública[14].
Com a entrada em vigor do CPC/2015, há doutrinadores[15] que defendem a tese de que o regramento mais amplo da Reclamação naquele diploma processual acarretou a revogação tácita da Resolução STJ no 12/2009.
Não obstante o acerto de tal entendimento, não parece que o STJ tenha adotado essa tese, uma vez que, mesmo após a entrada em vigor do nosso CPC, o Tribunal da Cidadania editou a Resolução no 03/2016, de 7 de abril de 2016, dispondo sobre a competência para processo e julgamento das Reclamações em face de acórdão prolatado por turma recursal de Juizado Especial estadual ou do DF. Ademais, conforme decidido na Questão de Ordem proferida nos autos do Agravo Regimental na Reclamação no 18.506-SP, a Corte Especial do STJ assentou expressamente que “com o advento da Emenda Regimental nº 22-STJ, de 16/03/2016, ficou revogada a Resolução no 12/2009-STJ, que dispunha sobre o processamento, no Superior Tribunal de Justiça, das reclamações destinadas a dirimir divergência entre acórdão prolatado por turma recursal estadual e a jurisprudência desta Corte”. Dessa forma, entendeu o STJ que a Resolução no 12/2009 estaria revogada antes mesmo da entrada em vigor do CPC/2015.
Na próxima seção serão apresentadas as inovações promovidas pela Resolução no 03/2016, em comparação com o regramento anterior da Resolução no 12/2009 e com as disposições correlatas do novo Código de Processo Civil, da Constituição Federal e da jurisprudência do STF.
A Resolução no 03/2016-STJ modificou a competência para processo e julgamento das Reclamações nos Juizados Especiais Estaduais, bem como ampliou as hipóteses de cabimento, conforme transcrição a seguir:
“Art. 1º Caberá às Câmaras Reunidas ou à Seção Especializada dos Tribunais de Justiça a competência para processar e julgar as Reclamações destinadas a dirimir divergência entre acórdão prolatado por Turma Recursal Estadual e do Distrito Federal e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, consolidada em incidente de assunção de competência e de resolução de demandas repetitivas, em julgamento de recurso especial repetitivo e em enunciados das Súmulas do STJ, bem como para garantir a observância de precedentes.
Art. 2º Aplica-se, no que couber, o disposto nos arts. 988 a 993 do Código de Processo Civil, bem como as regras regimentais locais, quanto ao procedimento da Reclamação.
Art. 3º O disposto nesta resolução não se aplica às reclamações já distribuídas, pendentes de análise no Superior Tribunal de Justiça.
Art. 4º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação.”
A principal inovação promovida pelo STJ, por meio da Resolução 03/2016, foi atribuir às Câmaras Reunidas ou à Seção Especializada dos Tribunais de Justiça a competência para processo e julgamento das Reclamações em face de acórdão de Turma Recursal Estadual ou do DF que esteja em contrariedade com a jurisprudência daquele Tribunal Superior. Assim, o STJ promoveu uma espécie de delegação de sua competência constitucional, prevista no art. 105, I, “f”, da CF/88, para julgar as Reclamações quem tenham com causa de pedir violações de sua própria competência ou jurisprudência consolidada.
Na redação da Resolução no 12/2009, o STJ havia seguido a lógica constitucional da Reclamação, sendo ele próprio o órgão julgador das Reclamações destinadas à preservação de sua competência ou garantia da autoridade de suas decisões. Por sua vez, o art. 988, § 1º, do CPC/2015, que entrou em vigor antes da edição da Resolução no 03/2016, também foi expresso ao estabelecer que o julgamento da Reclamação deve se dar pelo órgão jurisdicional cuja competência se busca preservar ou cuja autoridade se pretenda garantir.
Dessa forma, levando-se em conta que a Reclamação ao STJ em sede de Juizados Especiais Estaduais se fundamenta no art. 105, I, “f” da CF/88, conforme o decidido pelo STF nos Embargos de Declaração no RE no 571.572-BA, resulta configurada a inconstitucionalidade material da Resolução no 03/2016 do STJ por violação de regra de competência absoluta prevista na Carta Magna. Embora o STJ tenha considerado “o fluxo volumoso de Reclamações no STJ envolvendo Juizados Especiais” como motivação para editar a mencionada resolução, não se pode admitir que questões de política judiciária justifiquem a absoluta e permanente derrotabilidade[16] de normas constitucionais editadas pelo Poder Constituinte Originário.
Verifica-se, também, que a Resolução no 03/2016 do STJ, ao prever que a Reclamação será processada e julgada pelas Câmaras reunidas ou à Seção especializada dos Tribunais de Justiça, violou a norma do art. 125, §1º, da CF/88, que confere aos Estados-membros a legitimidade para organizar sua Justiça, observados os princípios constitucionais, bem como definir a competência de seus tribunais na Constituição local, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça:
“Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição.
§ 1º - A competência dos tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça.”
Também se constata violação à autonomia orgânico-administrativa dos Tribunais de Justiça (art. 96, I, da CF/88), aos quais compete privativamente a elaboração de seus regimentos internos, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos:
“Art. 96. Compete privativamente:
I – aos tribunais:
a) eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos;”
Dessa forma, não cabe ao STJ definir quais os órgãos internos aos Tribunais de Justiça que deverão processar e julgar Reclamações, pelo que se identifica naquela resolução vício de inconstitucionalidade formal, conforme já apontado na doutrina[17].
Quanto ao cabimento da reclamação, a Resolução no 03/2016 estabelece que a decisão de turma recursal será impugnável quando for contrária a jurisprudência do STJ consolidada em:
a) incidente de assunção de competência;
b) incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR);
c) julgamento de recurso especial repetitivo;
d) Súmulas do STJ; ou
e) precedentes do STJ.
As hipóteses dos itens a) e b) são previstas nos inciso IV do art. 988 do CPC/2015, estando em consonância com o novo Código. A hipótese do item c) está prevista no inciso II do §5º do mesmo artigo, dependendo, todavia, do prévio esgotamento das instâncias ordinárias. Quanto ao item d), este se enquadra no inciso II do art. 988, seguindo a lógica da antiga Resolução 12/2009[18].
Todavia, o item e) do art. 1º da Resolução 03/2016-STJ não tem correspondência do CPC/2015, o qual não autoriza o ajuizamento de Reclamação em face de meros precedentes. Conforme lição do professor Daniel Amorim Assunção Neves,
“Precedente é qualquer julgamento que venha a ser utilizado como fundamento de um outro julgamento que venha a ser posteriormente proferido. [...] o precedente é objetivo, já que se trata de uma decisão específica que venha a ser utilizada como fundamento do decidir em outros processos. [...] A jurisprudência, por sua vez, é abstrata, porque não vem materializada de forma objetiva em nenhum enunciado ou julgamento, sendo extraída do entendimento majoritário do tribunal [...][19]”.
Dessa forma, ao prever na Resolução 03/2016 o cabimento de Reclamação em face de decisões que violem meros precedentes, hipótese não prevista no CPC/2015, o STJ usurpou a competência privativa da União para legislar sobre direito processual, prevista no art. 22, I, da CF/88, implicando sua inconstitucionalidade formal:
“Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;”
Finalmente, é oportuno ressaltar que a jurisprudência do STF já teve a oportunidade de declarar a inconstitucionalidade de normas de regimento interno do TST que previam a possibilidade de propositura de reclamação perante aquele Tribunal Superior. No julgado em comento, o Pretório Excelso entendeu que, como a CF/88 só previu reclamação perante o STF e o STJ, o seu cabimento perante outros tribunais dependeria de previsão em lei, cuja iniciativa é da competência privativa da União por se tratar de direito processual (art. 22, I, da CF/88):
RECLAMAÇÃO - REGÊNCIA - REGIMENTO INTERNO - IMPROPRIEDADE. A criação de instrumento processual mediante regimento interno discrepa da Constituição Federal. Considerações sobre a matéria e do atropelo da dinâmica e organicidade próprias ao Direito. (RE 405031, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 15/10/2008)
Portanto, não havendo previsão no CPC/2015 de propositura de reclamação em face de decisão de turma recursal que viola mero precedente do STJ, não poderia este Tribunal Superior ampliar desmesuradamente as hipóteses de cabimento previstas naquele Código, sob pena de usurpação da competência privativa da União para legislar sobre a matéria.
Foram apresentadas as alterações promovidas pela Resolução STJ no 03/2016 nas regras de competência e cabimento de Reclamação nos Juizados Especiais Cíveis e Criminais dos Estados e do DF. Foi demonstrada a inconstitucionalidade material e formal da referida resolução, por meio da qual o STJ promoveu uma espécie de delegação aos Tribunais de Justiça de sua competência constitucional, prevista no art. 105, I, “f”, da CF/88, para julgar as Reclamações quem tenham com causa de pedir violações de sua própria competência ou jurisprudência consolidada. Foi violada a autonomia dos Estados-Membros e do DF para sua organização judiciária (art. 125, §1º da CF/88), bem como a autonomia orgânico-administrativa dos Tribunais de Justiça (art. 96, I, da CF/88) e a própria previsão da reclamação constitucional no art. 105, I, “f” da CF/88. Também padece de vício de inconstitucionalidade a ampliação desmesurada das hipóteses de cabimento da Reclamação, incluindo decisões de turmas recursais estaduais que contrariem meros precedentes do STJ, usurpando a competência da União para legislar sobre direito processual (art. 22, I, CF/88).
CAVALCANTI, Marcio André Lopes. Resolução 03/2016 do STJ e o fim das reclamações para o STJ oriundas dos Juizados Especiais Estaduais. Dizer o Direito, 2016. Disponível em < http://www.dizerodireito.com.br/2016/04/resolucao-032016-do-stj-e-o-fim-das.html>. Acesso em 26 jul. 2016.
CUNHA Jr, Dirley da. O que é derrotabilidade das normas jurídicas? JusBrasil. 2015. Disponível em <http://dirleydacunhajunior.jusbrasil.com.br/artigos/207200076/o-que-e-derrotabilidade-das-normas-juridicas>. Acesso em 26 jul. 2016.
DIDIER JR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. 13 ed. Salvador: JusPodivm, 2016, vol. 3.
DONIZETTI, ELPÍDIO. Curso Didático de Direito Processual Civil. 19. Ed. São Paulo: Atlas, 2016.
FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Juizados Especiais da Fazenda Pública: comentários à Lei 12.153, de 22 de dezembro de 2009. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 8. Ed. Salvador: Juspodivm, 2016.
NOVELINO, Marcelo. Manual de direito constitucional. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
[1] DIDIER JR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Op Cit. p. 527.
[2] DONIZETTI, ELPÍDIO. Op Cit. p. 1367.
[3] Idem, ibidem, p. 1237.
[4] Idem, ibidem, p. 1237.
[5] STF, 1ª Turma, Rcl 21314 AgR, rel. Min. Edson Fachin, julgado em 29/9/2015.
[6] NOVELINO, Marcelo. Op Cit. p. 921.
[7] ADI 2212, Tribunal Pleno, rel. Min. Ellen Gracie, julgado em 2/10/2003.
[8] FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Op Cit. p. 25.
[9] STJ, 1ª Seção, Rcl 22.033-SC, rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 8/4/2015.
[10] Súmula 203/STJ: Não cabe recurso especial contra decisão proferida por órgão de segundo grau dos Juizados Especiais.
[11] STJ, Corte Especial, Rcl 3.752-GO, rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 18/11/2009.
[12] STJ, 2ª Seção, Rcl 7.861/SP, rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 11/9/2013.
[13] “[...] Não se admite a utilização do instituto da reclamação contra acórdão de Turma Recursal do Juizado Federal diante da previsão expressa de recursos no artigo 14 da Lei n. 10.259/2001. [...]” (STJ, 1ª Seção, AgRg na Rcl 7.764/SP, rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 24/10/2012).
[14] “[...] No caso dos autos, trata-se de ação ajuizada perante Juizado Especial da Fazenda Pública, a qual se submete ao rito previsto na Lei 12.153/2009. A lei referida estabelece sistema próprio para solucionar divergência sobre questões de direito material. [...] Nesse contexto, havendo procedimento específico e meio próprio de impugnação, não é cabível o ajuizamento da reclamação prevista na Resolução 12/2009 do STJ. [...]” (STJ, 1ª Seção, RCDESP na Rcl 8.718/SP, rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 22/8/2012).
[15] DIDIER JR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Op Cit. p. 555.
[16] Segundo Dirley da Cunha Jr, “deve-se ao autor inglês Herbert Hart o conceito de “derrotabilidade” (defeasibility), sustentado no famoso artigo “The Ascription of Responsability and Rights”, que publicou em 1948. A derrotabilidade da norma jurídica significa a possibilidade, no caso concreto, de uma norma ser afastada ou ter sua aplicação negada, sempre que uma exceção relevante se apresente, ainda que a norma tenha preenchido seus requisitos necessários e suficientes para que seja válida e aplicável. [...] Hart percebeu que em razão da impossibilidade de as normas preverem as diversas situações fáticas, ainda que presentes seus requisitos, elas contém, de forma implícita, uma cláusula de exceção (tipo: “a menos que”), de modo a ensejar, diante do caso concreto, a derrota/superação da norma. (CUNHA Jr, Dirley da. O que é derrotabilidade das normas jurídicas? JusBrasil. 2015. Disponível em <http://dirleydacunhajunior.jusbrasil.com.br/artigos/207200076/o-que-e-derrotabilidade-das-normas-juridicas>. Acesso em 26 jul. 2016)
[17] CAVALCANTI, Marcio André Lopes. Resolução 03/2016 do STJ e o fim das reclamações para o STJ oriundas dos Juizados Especiais Estaduais. Dizer o Direito, 2016. Disponível em < http://www.dizerodireito.com.br/2016/04/resolucao-032016-do-stj-e-o-fim-das.html>. Acesso em 26 jul. 2016.
[18] DIDIER JR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Op Cit. p. 555.
[19] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Op Cit. cap. 56.1.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, Marcio Scarpim de. Alterações promovidas pela Resolução STJ no 03/2016 no rito da Reclamação nos Juizados Especiais Estaduais e do DF Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 ago 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47197/alteracoes-promovidas-pela-resolucao-stj-no-03-2016-no-rito-da-reclamacao-nos-juizados-especiais-estaduais-e-do-df. Acesso em: 23 dez 2024.
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