RESUMO: Este trabalho busca analisar os principais aspectos do direito fundamental à moradia. O tema desenvolve-se a partir do estudo dos pontos mais elementares dos direitos fundamentais, por meio de sua evolução histórica. Discute-se ainda o reconhecimento do direito à moradia como direito fundamental na ordem jurídica interna brasileira e internacional. Além disso, examina-se qual o conteúdo que faz parte da essência desse direito, o qual se mostra imprescindível para sua eficaz concretização.
Palavras-chave: Direitos fundamentais. Direito à moradia. Moradia adequada e dignidade da pessoa humana.
1 INTRODUÇÃO
A casa, asilo inviolável do indivíduo, não é privilégio de todos no Brasil. Milhares de famílias vivem nas ruas, praças e debaixo de viadutos nas mais diversas cidades de todas as regiões de nosso imenso país, apesar de nossa Constituição Federal assegurar o direito à moradia como direito social fundamental a ser protegido e promovido pelo Estado.
Somado a isso, os noticiários jornalísticos brasileiros cada vez mais noticiam situações de despejos de grupos de pessoas que ocupavam terrenos alheios de forma irregular. A maioria das famílias que os integram alega que construíram suas moradias nesses locais pelo motivo de não terem onde morar.
Apesar de nos últimos anos ter ocorrido uma intensa mobilização política para concretizar o direito à moradia no Brasil, ainda há muitas pessoas que não possuem esse direito básico consagrado em sua vida e na de sua família. De fato, os diversos programas de governo existentes estão conseguindo melhorar a condição de existência de muitos, contudo isso ainda se mostra insuficiente.
No presente trabalho, longe do intuito de esgotar o tema, serão traçados alguns aspectos do direito fundamental à moradia, cuja concretização é essencial para uma vida digna.
2 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS: BREVES NOÇÕES
O reconhecimento e consolidação dos direitos fundamentais do homem como normas imprescindíveis e obrigatórias para todo e qualquer ordenamento jurídico se deu através de uma longa evolução e por meio de uma permanente luta histórica pela conquista desses direitos básicos.
O cristianismo teve influência marcante na gênese dos direitos fundamentais, sendo uma de suas principais fontes de inspiração. Com sua doutrina pregando que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus e que este já teria, inclusive, assumido a condição humana para salvá-la, houve a atribuição de um alto valor intrínseco à natureza humana, contribuindo ainda mais para o acolhimento da ideia de que há uma dignidade única no homem, o que exige uma proteção especial.[1]
Juntamente com o cristianismo, o jusnaturalismo também se mostrou como corrente de concepção filosófica importantíssima no processo de reconhecimento de direitos essenciais à condição humana, por meio de sua visão abstrata do Homem com direitos inerentes àquela sua condição. Entretanto, atribuir o surgimento dessa nova e revolucionária perspectiva de direitos simplesmente a essas e mais alguma outra corrente filosófica não se apresenta como algo muito satisfatório.
De fato, embora essas correntes de pensamento tenham bastante relevância no caminho para a formação e reconhecimento dos diversos direitos fundamentais, as condições históricas objetivas em que se deu o desenvolvimento dessa concepção de direito é que constituem a fonte primária de fundamentação e inspiração deles, servindo aquelas filosofias como instrumento indispensável no processo de ordenação dessas condições, para que haja uma compreensão ideológica coerente da realidade que se mostra.[2]
Destarte, concepções filosóficas somadas a determinadas condições históricas ou reais, fundamentam a evolução social, que, no caso em enfoque, constitui a gênese de direitos inerentes à condição humana. Com efeito, tendo em vista a origem histórica dos direitos fundamentais, as condições reais ou objetivas que propiciaram aquela evolução no sentido do surgimento desses direitos manifestaram-se em meados do século XVIII com a forte e insustentável contradição entre “o regime da monarquia absoluta, estagnadora, petrificada e degenerada, e entre uma sociedade nova tendente à expansão comercial e cultural”, aparecendo, de outro lado, a filosofia do Iluminismo como importante fonte impulsionadora: exaltação às liberdades e valores individuais do homem.[3]
Contudo, é de se ressaltar que, não sendo todos os direitos fundamentais fruto de um momento único, mas, pelo contrário, de momentos históricos distintos ao longo da História, mostra-se sem razoabilidade buscar extrair um substrato único e absoluto para todas as espécies de direito que integram aquele conjunto, sendo mais plausível perquirir como justificá-los em todos os períodos que se apresenta.
E o que seriam os direitos fundamentais? Como conceituá-los?
Uadi Lammêgo Bulos[4] os conceitua da seguinte forma:
Os direitos fundamentais são o conjunto de normas, princípios, prerrogativas, deveres e institutos inerentes à soberania popular, que garantem a convivência pacífica, digna, livre e igualitária, independentemente de credo, raça, origem, cor, condição econômica ou status social.
Destacando a relação com o Estado, a definição de Perez Luño permite ter uma ideia satisfatória do que são os direitos fundamentais:
Os direitos fundamentais constituem a principal garantia com que contam os cidadãos de um Estado de Direito de que o sistema jurídico e político em seu conjunto se orientará para o respeito e a promoção da pessoa humana; em sua estrita dimensão individual (Estado liberal de Direito), ou conjugando esta com a exigência de solidariedade corolário do componente social e coletivo da vida humana (Estado social de direito).[5]
Apesar disso, muitos defendem que estabelecer um conceito único e preciso não se mostra tarefa fácil, na medida em que os direitos fundamentais são conhecidos por meio de diversas expressões: direitos públicos subjetivos, direitos naturais, direitos humanos, direitos individuais, liberdades fundamentais, enfim, dentre outras.
O fato é que, “direitos fundamentais do homem” talvez seja a expressão que mais se adeque à realidade deles: “fundamentais”, indicando situações jurídicas sem as quais o ser humano não se completa, e “do homem”, no sentido de que se volta ao homem no sentido de condição humana. Independente da perspectiva que se veja, são prerrogativas “sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive”, essenciais para a concretização de uma vida livre, digna e igual para todos.[6]
Caracterizar de forma geral esses direitos também não é algo tão simples, pois eles não se apresentam de maneira uniforme em todos os Estados. Konrad Hesse deixa isso claro ao afirmar que “o conteúdo concreto e a significação dos direitos fundamentais para um Estado dependem de inúmeros fatores extrajurídicos, especialmente das peculiaridades, da cultura e da história dos povos”.[7]
Não obstante isso, há determinadas características que lhes atribuem com uma maior frequência: historicidade, inalienabilidade, imprescritibilidade e irrenunciabilidade.
A historicidade consiste em informar que eles são fruto de uma evolução histórica, surgindo, modificando-se e, até mesmo, desaparecendo. Essa característica afasta de vez a concepção de que toda a fonte que fundamenta a existência deles adviria do direito natural ou da essência humana, constituindo-se, pelo contrário, notadamente, em fruto das necessidades humanas.
E, é com base nessa perspectiva da evolução histórica que muitos dividem os direitos fundamentais em gerações: primeira, segunda, terceira e até uma quarta e quinta geração de direitos fundamentais, mostrando que eles nem sempre foram os mesmos em todas as épocas.
A primeira geração de direitos fundamentais, com gênese no final do século XVII, seria composta pelos direitos civis e políticos, direitos individuais que configuram as liberdades negativas, ou seja, que prestigiam uma conduta negativa (não fazer) por parte do Estado. Da segunda, com período de surgimento logo após a Primeira Guerra Mundial, fariam parte os direitos sociais, econômicos e culturais, consubstanciando as liberdades positivas, as quais exigem do Estado não mais abstenções, mas sim uma conduta positiva, prestacional, no sentido de assegurar-se bem estar e igualdade substancial dentro da sociedade.[8]
Já os direitos fundamentais de terceira geração seriam compostos pelos direitos difusos e coletivos, que consubstanciam a solidariedade ou fraternidade que deve existir no meio social. O direito a um meio ambiente equilibrado faz parte dessa geração. Além desses, há ainda os que defendem existir uma quarta geração de direitos fundamentais, a qual englobaria os relacionados à informática, eutanásia, clonagens e outros acontecimentos ligados à engenharia genética, e uma quinta geração, que seria sede do direito à paz.[9]
Apesar dessa divisão que se costuma atribuir aos direitos fundamentais, deve ser esclarecido que o surgimento de uma geração de direitos não suplanta a anterior. Elas passam a coexistir de forma harmônica e a influenciar-se mutuamente, fazendo com que haja uma evolução na perspectiva que se tem do conjunto dos direitos que integram cada uma delas. E, é justamente por isso que muitos doutrinadores criticam essa classificação em “gerações” de direitos, preferindo a terminologia “dimensões” de direitos, com o fim de evitar a ideia de que houve uma gradativa substituição de uma geração por outra.
Voltando para as características das quais tratávamos, da inalienabilidade deriva sua condição de direitos com um caráter não patrimonial, indisponíveis e intransferíveis. Enquanto isso, o caráter de imprescritibilidade denota que eles nunca deixam de ser exigíveis em razão do passar do tempo, sempre podendo ser exercidos. Por último, a irrenunciabilidade marca que eles não podem ser renunciados. Alguns podem até ser não exercidos, mas nunca renunciados.
Impende ainda destacar que já se atribuiu o caráter de serem absolutos os direitos fundamentais, no sentido de que estariam no patamar máximo da hierarquia jurídica, não podendo sofrer restrições. Não obstante isso, atualmente se encontra pacificado o entendimento de que essa espécie de direitos pode sofrer restrições e limitações, quando em determinadas situações entrem em choque com outros valores de ordem constitucional e, até mesmo, outros direitos fundamentais. O mais basilar dos direitos, que é o direito à vida, pode sofrer restrição, como previsto, inclusive, no ordenamento jurídico brasileiro: a pena de morte é admitida em caso de guerra formalmente declarada.[10]
Ademais, também se atribui a característica de os direitos fundamentais estarem consubstanciados em preceitos de uma ordem jurídica determinada, sendo esse caráter o fator que justamente diferenciaria as expressões “direitos fundamentais” e “direitos humanos”.
A expressão “direitos fundamentais” estaria voltada para aqueles direitos reconhecidos e positivados na ordem jurídica de um Estado determinado, por meio de seu texto constitucional, enquanto a expressão “direitos humanos” referir-se-ia àquelas situações jurídicas de respeito à pessoa humana, independentemente de sua vinculação à uma ordem constitucional determinada, previstas, notadamente, em documentos de direito internacional, com vocação à uma validade universal e com caráter supranacional.
Assim, os direitos fundamentais constituir-se-iam “nos direitos que vigem numa ordem jurídica concreta, sendo, por isso, garantidos e limitados no espaço e no tempo, pois são assegurados na medida em que cada Estado os consagra”.[11] Dessa forma, além de aspectos éticos (base axiológica), ligados à limitação do poder e à proteção da dignidade da pessoa humana, os direitos fundamentais têm aspectos normativos (formais), segundo os quais aqueles estão previstos na norma ápice do ordenamento jurídico: a Constituição.[12]
Não obstante essa diferenciação, não há falar em incompatibilidade entre ambos. Tanto a expressão “direitos fundamentais” quanto “direitos humanos” referem-se a posições jurídicas essenciais à condição humana. Visto por esse aspecto substancial, os direitos humanos gozam da característica da fundamentalidade, ou seja, “da importância e essencialidade das posições jurídicas para a pessoa humana, fundamento de sua especial proteção pela ordem jurídica internacional e/ou interna.”[13]
Além disso, também não há falar que ambos se encontram em esferas estanques, sem comunicabilidade alguma. Há uma constante interação entre eles, servindo os direitos humanos, muitas vezes, como matriz para a consagração de muitos direitos fundamentais consubstanciados numa ordem jurídica específica. Ressalte-se a importância, por exemplo, da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) para a elaboração das constituições de diversos Estados. E, por outro lado, não raro os direitos fundamentais positivados em determinado Estado servirem de espelho para a consagração de direitos humanos internacionais.[14]
Após esses breves comentários acerca dos direitos fundamentais, passam-se, então, a traçar alguns aspectos do direito à moradia, o qual, mais que um direito fundamental reconhecido pelo Estado brasileiro, encontra-se no rol dos direitos humanos reconhecidos pela comunidade internacional.
3 O RECONHECIMENTO DO DIREITO FUNDAMETAL À MORADIA NO BRASIL E NO MUNDO
Por meio da emenda constitucional n. 26, promulgada no ano de 2000, o ordenamento jurídico brasileiro passou a reconhecer expressamente o direito à moradia como um direito fundamental. O artigo 6°[15] da Constituição Federal brasileira, onde estão delineados os direitos sociais fundamentais, foi alterado, passando a constar o referido direito.
Apesar disso, muitos defendem que, ainda que o direito à moradia não estivesse previsto de forma expressa em nossa Lei Maior, esse direito já faria parte do rol de direitos fundamentais integrantes do ordenamento do Brasil de forma implícita.
Como primeira justificativa, alega-se que esse reconhecimento decorreria simplesmente do princípio da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos de nosso Estado.
Esse princípio teria uma dimensão negativa e outra positiva. Da dimensão negativa do princípio da dignidade da pessoa humana decorreria o dever do Estado de garantir a integridade física e psíquica do indivíduo. Enquanto isso, a positiva reclamaria a “satisfação das necessidades existenciais básicas para uma vida com dignidade, podendo servir até mesmo como fundamento direto e autônomo para o reconhecimento de direitos fundamentais não expressamente positivados (...)”.[16]
Destarte, como, indubitavelmente, o direito à moradia visa à concretização e realização do princípio da dignidade da pessoa humana, o reconhecimento desse direito fundamental como integrante do ordenamento do País, mesmo antes de ser inserido via emenda reformadora, resultaria numa clara decorrência lógica.
Além desse argumento justificador, alega-se também que o direito fundamental à moradia já estaria reconhecido apenas com base no que estabelece o parágrafo 2° do art. 5° de nossa Carta Maior.
“Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” Com estas palavras, esse dispositivo supracitado prevê, em suma, que o rol dos direitos fundamentais brasileiros é aberto, não taxativo. Ele não se resume, portanto, àqueles expressamente previstos no texto constitucional. E, essa expansão dos direitos fundamentais para além do texto da Carta tem sido denominada de “bloco de constitucionalidade”.
Diante desse fato, não haveria como negar que aquele direito já não fizesse parte de nosso ordenamento sob dois fortes fundamentos: o primeiro é que o Brasil é signatário dos grandes tratados internacionais de direitos humanos, os quais preveem o direito à moradia como direito humano básico; o segundo é que não há como questionar o caráter materialmente fundamental do direito à moradia.
Para explicarmos esse segundo ponto referido no parágrafo anterior, insta salientar a diferença entre aquilo que é material e formalmente constitucional. Materialmente constitucional seria tudo aquilo que imprescindivelmente deve ser tratado no seio de uma Constituição. Paulo Bonavides[17] nos premia com seu elucidativo conceito:
Do ponto de vista material, a Constituição é o conjunto de normas pertinentes à organização do poder, à distribuição da competência, ao exercício da autoridade, à forma de governo, aos direitos da pessoa humana, tanto individuais como sociais. Tudo quanto for, enfim, conteúdo básico referente à composição e ao funcionamento da ordem política exprime o aspecto material da Constituição. (Grifo Nosso)
Já em seu aspecto formal, a Constituição seria tudo aquilo que está consagrado ou positivado em seu texto, ainda que não faça referência a nenhum daqueles assuntos que o mestre Bonavides referiu-se.
Da análise do parágrafo 2° do art. 5° em questão, vê-se que o constituinte admite que não somente os direitos fundamentais formalmente constitucionais fazem parte de nosso ordenamento, mas também aqueles que o são apenas materialmente. Logo, tendo em vista que o direito à moradia é um direito humano básico e que decorre direta e inquestionavelmente, pelo menos, do princípio da dignidade da pessoa humana, esse direito integraria nosso ordenamento mesmo antes da alteração do artigo 6° da Constituição de 1988.
Já com relação ao primeiro ponto, referente à decorrência do direito à moradia dos tratados internacionais de que o Brasil seja parte, isso também se mostra inquestionável.
Primeiramente, a moradia foi expressamente reconhecida como direito humano básico na Declaração dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948. No artigo XXV.1 dessa Carta internacional, está disposto que “toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos ...” (Grifo Nosso).
A partir daí, diversos outros documentos internacionais relacionados a direitos humanos que foram surgindo passaram também a fazer referência ao direito à moradia como direito humano básico. Destaque-se o Pacto Internacional dos Direitos Sociais, Econômicos e Culturais (1966), ao qual o Brasil se obriga desde janeiro de 1992, quando o ratificou, que estabelece no §1° do seu artigo 11 a determinação que “os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e para sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas...”.
Assim, sendo o Brasil signatário de ambos os documentos, o direito fundamental à moradia já faria parte do ordenamento do País desde, pelo menos, a promulgação da Constituição Federal de 1988.
Mas, e que espécie de moradia o ordenamento jurídico brasileiro assegura? Qual o conteúdo desse direito fundamental? É acerca disso que se discutirá logo a seguir.
4 DIREITO À MORADIA: O CONTEÚDO NECESSÁRIO PARA UMAVIDA COM DIGNIDADE
Quando se fala em direito à moradia, não se está referindo a qualquer moradia, tida como um teto qualquer sob o qual determinada pessoa e sua família simplesmente ficarão debaixo. Pelo contrário, quer-se referir a um local onde as condições mínimas de higiene, conforto, segurança e privacidade possam estar asseguradas para que a pessoa, juntamente com seus familiares, possam desenvolver suas personalidades.
Nas palavras de Sarlet[18],
Com efeito, sem um lugar adequado para proteger-se a si próprio e a sua família contra as intempéries, sem um local para gozar de sua intimidade e privacidade, enfim, de um espaço essencial para viver com um mínimo de saúde e bem estar, certamente a pessoa não terá assegurada a sua dignidade, aliás, por vezes não terá sequer assegurado o direito à própria existência física, e, portanto, o seu direito à vida. [Grifo Nosso]
A grande questão está em saber definir quais os contornos dessa moradia adequada. De fato, o legislador constituinte reformador brasileiro ao assegurar expressamente o direito à moradia dentre os direito sociais fundamentais o fez sem qualquer adjetivação, somente de forma genérica.
Apesar disso, como foi dito, não é por essa razão que se admitirá interpretações desproporcionais e desarrazoáveis com relação ao conteúdo daquele direito fundamental. Tendo como fundamento primário o princípio da dignidade da pessoa humana, não se pode admitir qualquer interpretação que leve à incompatibilidade com ele. Assim, como no ordenamento interno não houve o estabelecimento preciso dos contornos do direito social ora tratado, deve-se buscá-los no âmbito internacional.
Mesmo sabendo que o conceito de moradia adequada é, de certa forma, variável entre os diversos Estados, sendo também determinado por outros fatores, como elementos econômicos, culturais, sociais, climáticos, dentre outros, a Comissão de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, entendendo que é possível estabelecer certos aspectos mínimos a serem observados independentes das peculiaridades dos contextos particulares, estabeleceu uma série de medidas que compõem o conceito de moradia adequada contidas no § 8° de seu Comentário Geral n. 4:
a) Segurança legal de posse. A posse toma uma variedade de formas, incluindo locação (pública e privada) acomodação, habitação cooperativa, arrendamento, uso pelo próprio proprietário, habitação de emergência e assentamentos informais, incluindo ocupação de terreno ou propriedade.
b) Disponibilidade de serviços, materiais, facilidades e infraestrutura. Uma casa adequada deve conter certas facilidades essenciais para saúde, segurança, conforto e nutrição.
c) Custo acessível. Os custos financeiros de um domicílio associados à habitação deveriam ser a um nível tal que a obtenção e satisfação de outras necessidades básicas não sejam ameaçadas ou comprometidas.
d) Habitabilidade. A habitação adequada deve ser habitável, em termos de prover os habitantes com espaço adequado e protegê-los do frio, umidade, calor, chuva, vento ou outras ameaças à saúde, riscos estruturais e riscos de doença.
e) Acessibilidade. Habitações adequadas devem ser acessíveis àqueles com titularidade a elas. A grupos desfavorecidos deve ser concedido acesso total e sustentável para recursos de habitação adequada.
f) Localização. A habitação adequada deve estar em uma localização que permita acesso a opções de trabalho, serviços de saúde, escolas, creches e outras facilidades sociais.
g) Adequação cultural. A maneira como a habitação é construída, os materiais de construção usados e as políticas em que se baseiam devem possibilitar apropriadamente a expressão da identidade e diversidade cultural da habitação.
Destarte, tendo isso em vista, cabe ao legislador brasileiro estabelecer os contornos do direito fundamental à moradia no Brasil, sempre observando o que as normas internacionais estabelecem sobre o tema e o que reclama uma vida com dignidade no contexto brasileiro.
Entretanto, mais do que simples medidas legislativas, o respeito à dignidade humana em face do direito à moradia exige mais que a indispensável atuação do legislador. Não cabe mais ao Poder Público apenas isso. É necessário por em prática políticas públicas voltadas à proteção e promoção desse direito fundamental. Integrando o rol dos direitos sociais, para que a moradia tenha eficácia jurídica e social, faz-se imprescindível uma atuação positiva por parte do Estado, mediante a execução de políticas urbanas e habitacionais.[19]
Firmados esses e outros caracteres acerca de todos os pontos acima tratados, que, sem pretensão de esgotar, buscou-se traçar um panorama geral, tratar-se-á, no capítulo seguinte, de alguns aspectos da responsabilidade estatal em face de sua conduta omissiva no tange tanto à observância do direito fundamental à moradia, quanto também ao respeito às normas que organizam e ordenam o espaço urbano, sob o enfoque do problema da construção de habitações em áreas de risco.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
À luz de tudo o que foi dito, percebe-se que os direitos fundamentais tiveram sua gênese informada por diversos fatores tanto de ordem ideológica quanto fática. Da evolução social decorreu a necessidade de reconhecimento de determinados valores como sendo caros à sociedade e cuja defesa e concretização de mostrava essencial para todos. E, o reconhecimento do direito à moradia adveio dessa evolução, sendo enquadrado como um relevante direito social.
Em que pese divergência existente, não há como atribuir o reconhecimento desse direito fundamental no ordenamento brasileiro apenas após a emenda constitucional n. 26. A Constituição Federal, desde sua gênese, é clara ao estabelecer que os direitos fundamentais nela explicitados não consubstanciam rol exaustivo, decorrendo o direito humano a uma moradia digna de diversos princípios por ela adotados e dos tratados internacionais reconhecidos pelo Estado brasileiro.
Percebe-se, ainda, a relevante importância do direito fundamental à moradia na concretização do sobreprincípio da dignidade humana. Não há como o ser humano desenvolver de forma satisfatória todos os aspectos de sua personalidade sem uma moradia adequada e digna, cujo conteúdo deve observar os diversos aspectos apontados na ordem internacional: disponibilidade de serviços e boa infraestrutura, custo acessível, habitabilidade, acessibilidade, boa localidade, dentre outros. E, o Estado tem papel fundamental em sua consolidação na realidade fática, devendo adotar medidas voltadas a realiza-lo da forma mais ampla possível no seio social.
REFERÊNCIAS
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12a Ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires. Curso de Direito Constitucional. 4a Ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 2a Ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
LUÑO, Antonio E. Perez. Los derechos fundamentales. 3 ed. Madri: Tecnos, 1988.
NOLASCO, Loreci Gottschalk. Direito Fundamental à Moradia. 1ª ed. São Paulo: Pillares, 2008.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 8 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
________, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. Revista de Ciências Jurídicas. Rio Grande do Sul, v. 4, n. 2, p. 327-383, segundo semestre de 2003. Disponível em http://www.ulbra.br/direito/files/direito-e-democracia-v4n2.pdf#page=77). Acesso em 05 de dez. 2011.
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27a Ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
[1]BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires. Curso de Direito Constitucional. 4a Ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 266.
[2]SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27a Ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 172
[3]Idem Ibidem, p. 173
[4]BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 2a Ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 404
[5]LUÑO, Antonio E. Perez. Los derechos fundamentales. 3 ed. Madri: Tecnos, 1988, p. 20.
[6]SILVA, José Afonso. op. cit., p. 178
[7]HESSE, Konrad. Significado de los derechos fundamentales, in Benda e outros, Manual de derecho constitucional. Madrid: Marcial Pons, 1996, p. 84/85 Apud BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires. op. cit., p. 273.
[8]BULOS, Uadi Lammêgo. op. cit., p., 406
[9]Idem Ibidem, p. 406/407.
[10]BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires. op. cit., p., 274.
[11]Idem Ibidem, p. 278.
[12]SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 8 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 91.
[13]SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. Revista de Ciências Jurídicas, Rio Grande do Sul, v. 4, n. 2, p. 327-383, segundo semestre de 2003. Disponível em http://www.ulbra.br/direito/files/direito-e-democracia-v4n2.pdf#page=77). Acesso em 05 de dez. 2011.
[14]BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires. op. cit., p. 278.
[15]Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
[16]SARLET, Ingo Wolfgang. op. cit., Disponível em http://www.ulbra.br/direito/files/direito-e-democracia-v4n2.pdf#page=77). Acesso em 05 de dez. 2011.
[17]BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12a Ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 63
[18]SARLET, Ingo Wolfgang. op. cit., Disponível em http://www.ulbra.br/direito/files/direito-e-democracia-v4n2.pdf#page=77). Acesso em 05 de dez. 2011.
[19]NOLASCO, Loreci Gottschalk. Direito Fundamental à Moradia. São Paulo: Pillares, 2008, p. 92.
Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BEZERRA, Higo Araújo. Considerações introdutórias acerca do direito fundamental à moradia no Brasil e no mundo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 ago 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47205/consideracoes-introdutorias-acerca-do-direito-fundamental-a-moradia-no-brasil-e-no-mundo. Acesso em: 23 dez 2024.
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