RESUMO: O presente trabalho busca abordar o precedente judicial enquanto fonte do direito sob uma perspectiva eminentemente teórica. Partir-se-á, para tal fim, de noções filosóficas relativas à interpretação jurídica, como a diferença entre texto e norma, círculo hermenêutico, conceitos de intepretação e compreensão. Além disso, fundamentar-se-á com base em aspectos atinentes à teoria da norma jurídica como fenômeno comunicativo, bem como em aspectos relativos à estrutura interna da norma, na perspectiva abordada por Hans Kelsen e Tércio Sampaio Ferraz Jr.; bem como sua construção pelo intérprete, pautada pelo texto, âmbito e programa normativo, conforme delineamentos de Friedrich Müller. No mais, alguns conceitos normalmente utilizados pela doutrina com base na tradição do Common Law, tais como, ratio decidendi e obiter dictum, serão reformulados a fim de adequá-los ao sistema jurídico nacional e aos modernos delineamentos esboçados quanto à interpretação jurídica. Por fim, as concepções abordadas serão utilizadas para argumentar a favor da “obrigatoriedade” de determinadas decisões judiciais proferidas no bojo do sistema decisório brasileiro.
Palavras-chaves: Precedente Judicial. Ratio decidendi. Texto Normativo. Teoria das Fontes do Direito. Teoria Geral do Direito. Filosofia do Direito. Hermenêutica Jurídica.
Antes de afirmarmos se, e em que medida, a ratio decidendi pode ser equiparada à norma jurídica, mostra-se necessário, evidentemente, delinear qual é o conceito de ratio decidendi, bem como sua diferenciação para com o conceito correlato de obiter dictum. Neste ponto, também se mostrará necessário distingui-la da expressão muitas vezes utilizada em seu lugar, especialmente pela doutrina nacional, qual seja, precedente judicial.
Conforme Marcelo Alves Dias de Souza[1], Itarrulde Sesma elenca cinco definições comuns do termo ratio decidendi. Dentre elas, destacam-se: a) a razão explícita para a resposta dada à questão do caso; e b) a regra de Direito na qual se fundamenta o caso ou se cita como autoridade um posterior intérprete. Da mesma forma, avulta importância a definição de Rupert Cross, trazida por Marinoni[2]: c) “a ratio decidendi de um caso é qualquer regra de direito expressa ou implicitamente tratada pelo juiz como passo necessário para alcançar a sua conclusão...”.
Essas três definições se mostram suficientes e essenciais para deixar fixados dois pontos básicos. O primeiro diz respeito à definição de ratio decidendi e, por conseguinte, sua diferenciação conceitual com a expressão, muitas vezes utilizada sem precisão terminológica, denominada precedente judicial. O segundo, por sua vez, consiste nas idiossincrasias atinentes ao sistema brasileiro, capazes de distingui-lo claramente do sistema do Common Law e relevar algumas nuances desta tradição.
Percebe-se, no bojo das definições acima, que a expressão “caso” (= litígio) se encontra presente em todas elas. Certamente, isso decorre de serem os referidos conceitos retirados do Direito anglo-saxônico – Common Law –, no qual a ratio decidendi – por eles denominada “holding” –, corresponde ao conjunto de teses jurídicas utilizadas para resolver o “quadro fático” trazido ao crivo do poder judiciário. Quer-se dizer com isso que a ratio decidendi, conforme as definições importadas de terras anglo-saxônicas, significa o próprio Direito aplicado aos fatos levados a Juízo.
A “tradição” do Common Law, baseada no Stare decisis – ou Teoria do Precedente Obrigatório –, foi construída, precipuamente, em solo inglês, onde o legado empirista influenciou sobremaneira a forma de pensar e construir o Direito. O empirismo, enquanto corrente científica, baseia-se no encontro do conhecimento de forma eminentemente indutiva, de modo que as regras gerais-universais e, portanto, científicas, são retiradas do “particular” por meio de experimentos controlados.
Da mesma forma, o Direito inglês foi erigido a partir do “particular”, dos casos concretos trazidos ao exame dos magistrados e das cortes, a partir dos quais, em momento posterior, criaram-se regras gerais que serviriam de fundamento para casos futuros, uma vez que a decisão correta para a solução da controvérsia já havia sido empiricamente encontrada, nada restando ao magistrado, senão, reproduzi-la.
Destarte, na medida em que, no sistema do Common Law, a ratio decidendi era construída a partir das controvérsias levadas ao judiciário, os conceitos retirados de tal tradição jurídica tendem a enfatizar o “caso”, o conjunto fático trazido a Juízo, de modo que o conceito da ratio decidendi, para os autores anglo-saxônicos, não se desvincula da solução do litígio. Assim, em que pese à diversidade de definições, há sempre um núcleo irresistível nos conceitos de ratio decidendi: resolução do “caso” (= resolução de questões fáticas).
Por tal motivo – a ênfase no “caso” –, os Common Lawyers fazem a distinção entre ratio decidendi e obter dictum, sendo esta considerada essencial tanto para o entendimento teórico quanto para a operacionalidade prática deste sistema. A dificuldade, tal como vista acima, de delimitar com precisão o conceito de ratio decidendi influi, sobremaneira, na também tormentosa tarefa de conceituar obiter dictum[3].
Todavia, é certo que Obiter dictum é um conceito que pode ser extraído negativamente, como sendo aquela parte da decisão que não constitui a ratio decidendi[4]. Assim, sendo o “caso” elemento essencial da ratio decidendi, às vezes definida como “regra de direito” ou “razões” necessárias e/ou suficientes para a solução do conjunto fático trazido a juízo, pode-se afirma que Obiter dictum constitui aquela mesma “regra de direito” ou “razões” que, embora invocadas pela corte, possuem mínima ou nenhuma relação com o caso vergastado ou, embora relacionado, não é necessária nem suficiente à decisão proferida.
Marinoni[5] acredita que tal inclinação para colocar o “caso” como elemento fundamental para conceito de ratio decidendi – e a consequente distinção entre ratio e dictum – decorre dos inconvenientes de conceber várias “ratio” para o mesmo caso, pois o magistrado acabaria por ter a liberdade de escolher entre diversas “ratio”, em claro prejuízo a segurança jurídica. Além disso, podemos acrescentar, como dito acima, a influência da tradição filosófica empirista, a qual procurava obter regras de validade universal através da observação de experimentos singulares, conforme ditames do método indutivo.
A tradição continental – Civil Law –, todavia, caminhou em sentido diametralmente oposto. Com efeito, diferentemente da Inglaterra, a Europa continental foi influenciada pelo racionalismo e, portanto, pelo método dedutivo, o qual procurava o conhecimento a partir da criação de regras gerais-universais aferíveis por meio da dedução para, então, utilizá-las para conhecer seu objeto de estudo. Da mesma forma, o Direito foi concebido em moldes racionalistas, em que se criavam regras jurídicas dedutivamente para, então, aplicá-las aos casos trazidos ao magistrado.
Somada às ideias montesquenianas de separação dos três poderes, o Direito foi, portanto, construído de forma eminentemente legislativa, sendo sua aplicação compreendida em moldes silogísticos e dedutivos, de modo que as leis constituiriam a premissa maior, o caso concreto a premissa menor, e a sentença jurisdicional a conclusão do raciocínio subsuntivo. Diante disso, criou-se uma ênfase na “Lei” e no “Direito” em detrimento do “caso”, pois, diferentemente do Common Law, são os códigos legais que constituem o ponto de partida inicial e inafastável, através do qual a norma será “aplicada” ou “concretizada”
Seguindo esta linha de pensamento presente no Civil Law, a aurora dos precedentes judiciais no Direito brasileiro não põe ênfase no “caso”, na controvérsia fática posta perante o juízo, mas nas questões suscitadas no bojo das teses jurídicas levantadas pelas parte[6]s ou, até mesmo, aquelas que, embora não alegadas, devem obrigatoriamente ser conhecida e decididas pelo magistrado, por força da legislação processual ou da Constituição Federal da República.
Assim, é crucial entender que, ainda que inconscientemente, a construção jurisprudencial brasileira foi pautada pela possibilidade de existirem diversas ratio decidendi para um único caso submetido ao crivo do poder judiciário, sendo cada ratio atrelada a uma questão jurídica específica, ainda que “estritamente de direito” [7] e nenhuma importância tenha para a solução do litígio vergastado. Quer dizer, cada “thema decidendum”, após examinado e julgado pelo órgão competente, terá sua própria ratio decidendi, independentemente de sua importância para resolver o “caso”.
Em termos de Teoria da Cognição Judicial, deve-se entender por quaestio iuris toda e qualquer tese suscitada pelas partes ou imposta por lei, sobre a qual o órgão julgador tenha, necessariamente, de se pronunciar, proferindo uma decisão. Parte da doutrina afirma que apenas constitui questão jurídica um ponto suscitado por uma parte e impugnado pela parte adversa – questão, portanto, seria um ponto controvertido[8]. Todavia, essa concepção excluiria as questões que, ex vi lege, devem necessariamente ser conhecidas e julgadas pelo magistrado, como as questões preliminares, as questões de ordem pública etc.
Diante disso, é fácil perceber que a tormentosa questão de definir o que seja ratio decidendi e, por conseguinte, sua diferenciação para com o conceito de obiter dictum, torna-se sobremaneira fácil para a doutrina nacional relativa aos precedentes judiciais. Com efeito, a desvinculação do “caso”, somado ao primado do método dedutivo, permite ao sistema brasileiro aceitar que uma mesma decisão seja composta de várias ratio decidendi, de modo que não há problemas em defini-la, singelamente, como “as razões suficientes à solução das questões versada nos casos”[9].
Neste ponto, ressalve-se que não é possível conceber “razões suficientes à solução...” como desprovida de qualquer determinação. De fato, uma ratio decidendi que apenas expõe a fundamentação, sem qualquer provimento, nada soluciona e, por conseguinte, não constitui ratio, mas mero dictum. Da mesma forma, um provimento desprovido de qualquer fundamentação não se considera ratio, pois não elenca qualquer razão à solução das questões versadas nos autos. Diante disso, ganhar peso a afirmação de Marinoni, no sentido de que a ratio decidendi é um todo complexo formado pelo relatório, fundamentação e dispositivo[10].
Deste modo, não apenas aquela tese jurídica necessária e/ou suficiente à decisão do “caso” será considerada ratio decidendi, mas cada um dos motivos fundantes – considerados em sentido amplo, englobando, também, o provimento determinado – e suficientes para decidir as diversas questões versadas nos autos[11]. Diante disso, os motivos determinantes para a resolução das questões preliminares, das relativas aos pressupostos de admissibilidade recursais e, até mesmo, das questões ventiladas pela parte sucumbente constituem, diferentemente do Common Law, ratio decidendi e, portanto, são aptas a se tornarem precedentes judiciais.
Veja-se, a título de exemplo, a ementa do seguinte julgado:
PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA RURAL. AUSÊNCIA DE REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO. INEXISTÊNCIA DE PRETENSÃO RESISTIDA. CONTESTAÇÃO LIMITADA À MATÉRIA PRELIMINAR PROCESSUAL. CARÊNCIA DE AÇÃO POR FALTA DE INTERESSE DE AGIR. APELAÇÃO IMPROVIDA. 1. Trata-se de apelação do suplicante em face da sentença que, em face da preliminar de falta de interesse de agir em função da ausência de requerimento administrativo, julgou extinto o processo sem resolução do mérito. 2. Em nenhum momento o INSS atacou o mérito da causa - concessão do benefício de aposentadoria rural. Em sua contestação limitou-se, apenas, a impugnar matéria de índole preliminar processual, qual seja, a ausência de requerimento administrativo, que acarreta a carência de ação por falta de interesse de agir. 3. O Poder Judiciário não pode substituir-se ao administrador, analisando os pedidos de concessão de benefício previdenciário ainda não submetidos ao órgão competente para o deferimento ou indeferimento do pleito. 4. Inexistindo pretensão resistida, não há interesse legítimo para o exercício do direito de ação. 5. Conclui-se pela ausência de uma das condições da ação, devendo esta ser extinta, sem apreciação do mérito, na forma do art. 267, VI, do CPC. 6. Apelação improvida.[12] (Grifei).
Neste julgado, fica claro que o Tribunal decidiu sobre uma questão eminentemente processual. Com efeito, tratava-se de demanda judicial na qual o autor pugnava pela concessão do benefício previdenciário de aposentadoria rural, sendo o feito, todavia, extinto em primeira instância sob o argumento de ausência de pretensão resistida, elemento essencial à configuração da lide e, por conseguinte, da relação jurídico-processual.
Diante disso, o autor da demanda recorreu alegando que a contestação ofertada pela autarquia previdenciária equivaleria à negativa de seu direito, caracterizando, portanto, a pretensão resistida. O Tribunal, entretanto, entendeu que a peça contestatória, quando limitada a impugnar aspectos processuais, não caracteriza pretensão resistida, de modo que, diante da ausência de lide, agiu corretamente o magistrado “a quo” em extinguir o feito sem resolução de mérito.
Verifica-se, portanto, que a decisão em comento não poderia, no sistema do Common Law, ser considerado um precedente judicial, pois, na medida em que não há a resolução de nenhum “caso” (= quadro fático), restaria desprovido de ratio decidendi. No caso brasileiro, em virtude dos motivos elencados acima, não há óbice para que o presente julgado seja considerado como guarnecido de ratio, haja vista se encontrarem presentes os motivos suficientes para a resolução da questão trazida ao crivo da corte, qual seja, configuração da lida diante da ausência de “contestação de mérito”.
Neste ponto, vale salientar ser possível que determinada questão “X” possa ser decidida de acordo com diversos motivos – “a”, “b”, “c” –, neste caso, sendo cada um deles suficiente, por si só, à fundamentação da decisão sobre a referida questão, haverá três ratio diferentes. Todavia, se a questão somente puder ser decidida invocando todos, ou ao menos dois dos fundamentos retromencionados, então será o conjunto desses fundamentos que constituirá a ratio.
No caso supratranscrito, por exemplo, somente a soma de dois argumentos podem levar a conclusão exposta, quais sejam: a) O Poder Judiciário não pode substituir-se ao administrador, analisando os pedidos de concessão de benefício previdenciário ainda não submetidos ao órgão competente para o deferimento ou indeferimento do pleito; e b) a contestação limitou-se a impugnar matéria de índole preliminar processual, qual seja, a ausência de requerimento administrativo, o qual acarreta a inexistência de pretensão resistida, de modo que não há interesse legítimo para o exercício do direito de ação. Sendo a conclusão: ausência de uma das condições da ação, devendo o feito ser extinto, sem apreciação do mérito, na forma do art. 267, VI, do CPC.
Diante dessas considerações, e levando-se em conta que o conceito de obiter dictum, como fora salientado anteriormente, é retirado por raciocínio negativo, quer dizer, como tudo aquilo que não constitui ratio decidendi, é possível concluir que somente serão obiter dictum os fundamentos concernentes às questões que forem decididas em sede de cognição sumária, levantadas hipoteticamente no bojo da fundamentação, ou estranhas aos limites objetivos da lide.
Com efeito, tendo em vista que somente é possível considerar ratio decidendi os fundamentos suficientes para a resolução das questões postas em juízo, será obiter dictum aqueles motivos que forem alheios às questões constantes na causa de pedir e no pedido, os que não forem atinentes às questões suscitadas pelas partes ao longo do feito ou, ainda, aquelas cuja legislação impõe apreciação ex officio – por exemplo, decadência –, de modo que não se mostram aptos a servirem de parâmetro para julgamentos posteriores.
A diferenciação entre ratio decidendi e obiter dictum, ainda que mitigada diante da singularidade do sistema jurídico brasileiro, mostra-se essencial para o estudo dos precedentes, pois estes possuem, de forma inafastável, a ideia de um núcleo irresistível disposto no bojo da decisão, o qual poderá ser posteriormente utilizado de forma “obrigatória” ou “persuasiva” para outra decisão jurídica.
Outro ponto importante, cujos delineamentos acima nos ajudam a resolver, consiste na diferenciação conceitual entre ratio decidendi e precedente judicial, sendo certo que, no seio da doutrina, é comum a utilização de ambos os termos como sinônimos, sem qualquer preocupação com precisão terminológica e as consequências advindas da utilização dos conceitos indistintamente.
No sistema do Common Law, regido pelo “princípio” do Stare decisis – ou Teoria dos Precedentes Obrigatórios – quando se fala que a decisão deve ser vinculada ao precedente já formado, quer-se, na verdade, afirmar que o caso em análise deve ser resolvido de acordo com a ratio decidendi já consagrada em julgado anterior. Assim, o que de fato é obrigatório no sistema jurídico anglo-saxônico não é o precedente, mas a ratio decidendi – ou “holding” – disposta no caso anteriormente julgado[13].
Conforme afirma Cruz e Tucci[14], o precedente é composto de duas partes. A primeira consiste no conjunto de fatos que embasam a lide, ao passo que a segunda equivale ao princípio jurídico assente no corpo do julgado e que enseja a resolução do caso – ratio decidendi. Assim, precedente e ratio decidendi não se confundem, sendo esta dotada de “eficácia obrigatória” no sistema do Stare decisis. Diante dessa definição, contudo, fica difícil diferençar “precedente judicial” de “decisão judicial”, uma vez que esta, da mesma forma, consiste num conjunto de fatos controvertidos – lide – com os respectivos motivos que embasam sua solução.
É possível defender que o precedente, na verdade, é uma decisão judicial “x” utilizada no bojo de outra decisão “y”, sendo aquela o fundamento desta, de modo que toda decisão judicial seria um precedente em potencial. Todavia, o mais aceito na doutrina – nacional e estrangeira – consiste na perspectiva de que, no dizer de Marinoni[15], o precedente corresponde a uma decisão qualificada, dotada de certas características específicas, mormente no que diz respeito à potencialidade de se firma como paradigma para casos futuros. Neste ponto de vista, decisão judicial e precedente não se confunde, sendo este uma modalidade específica de provimento jurisdicional, especialmente destinado a ser utilizado como paradigma para a resolução de casos futuros.
Esta preferência de conceituação pode ser explicada pela resistência, tanto no Common Law quanto no Civil Law, em conceber a atividade jurisdicional como eminentemente criativa ao invés de reveladora. Argumenta-se, em terras anglo-saxônicas, que a decisão judicial “y”, ao se utilizar de decisão anterior “x”, não está a criar o precedente judicial, pois ele já existia, sendo apenas utilizado. Afirmar o contrário seria dizer que não haveria, propriamente, precedente judicial, pois as decisões “a”, “b”, “c”, “d” “...”, ao utilizarem a decisão “x”, estariam criando um novo precedente e, por conseguinte, a própria ideia do Stare decisis não faria qualquer sentido.
Há, portanto, duas possíveis conceituações de precedente judicial. A primeira, concebe-o como uma decisão jurídica utilizada no fundamento de outra decisão – por exemplo, uma decisão “X” que cita outra decisão “Y”, esta constituirá precedente enquanto utilizada por aquela; a segunda o entende como uma decisão qualificada, dotada de característica intrínseca, capaz de torna-lhe utilizável como paradigma para decisões futuras.
Esta última conceituação – que tolhe a atividade criativa do magistrado e entende o precedente como algo “dado” –, e já adiantado o que será dito no próximo capítulo, não resiste aos contemporâneos delineamentos atinentes à hermenêutica jurídica. Destarte, embora seja o mais amplamente aceito pela doutrina, não se coaduna com as premissas levantas neste trabalho.
Diante disso, observa-se que o conceito de precedente necessita de maiores observações teóricas. Estas serão feitas posteriormente para, na ocasião, fornecermos um conceito prospectivo de precedente judicial, capaz de adequá-lo aos fundamentos expostos relativamente à interpretação, a separação entre texto e norma, e a concepção de unidade das normas jurídicas criadas no momento da decisão.
Em suma, foram abordados dois temas: a) A ratio decidendi e seu conceito sui generis no direito brasileiro, tendo em vista seu caráter eminentemente jurídico ao invés de fático; e b) Os conceitos relativos ao precedente judicial, sua diferença para com ratio decidendi e “decisão judicial transitada em julgado”. Ambos os temas, somados as considerações feitas anteriormente referentes à norma jurídica e sua interpretação, servirão para analisar os precedentes judiciais enquanto fonte do Direito de forma precipuamente teórica.
Recorrendo ao lugar-comum abordado pela doutrina, fontes do direito é expressão que alude à noção de origem, gênese – a sempre citada metáfora da água brotando da nascente de um rio –, de modo que a expressão “fontes” remete ao questionamento de “onde surge o direito”. Entretanto, com a aurora da corrente normativista, a questão foge do conceito abstrato e plurívoco de “Direito” e passar a questionar qual a origem das “normas jurídicas”, em seu conceito “preciso” fornecido por Hans Kelsen.
Observar-se, portanto, tratar-se de um conceito que parte, inicialmente, do pressuposto de ser o Direito um “dado” – uma categoria ontológica alheia ao homem – e apenas revelado/descoberto pela atividade intelectual. Esta visão de mundo, em que o conhecimento se dissolve em entendimento e a realidade, através do método, “revela-se”, é típica da tradição filosófica platônica-kantiana mencionada no primeiro capítulo. Trata-se, pois, da tentativa – seja através da fé perante Deus, da evidência por meio da razão, ou da dissolução de pseudoproblemas pela “linguagem clara”[16] – de tonar o ser humano em uma máquina adequadamente programada[17], cuja tarefa consiste, tão somente, em observar a realidade e assinalá-la tal como ela é.
Nesta tentativa de revelar o Direito, o jusnaturalismo viu na razão humana o centro da investigação jurídica, o “local”, pois, onde o Direito se encontrava inerte, desejando vistosamente ser encontrado. A razão, sendo a faculdade singular e especial conferida por Deus aos homens, capaz de diferenciá-los dos animais, era comum a todos os povos, constituindo, portanto, a gênese do inato senso de justiça comum a todos os homens e, consequentemente, o único meio capaz de fornecer um “Direito justo”.
Por outro lado, o historicismo alemão, em contrapartida ao universalismo atemporal do jusnaturalismo iluminista, concebeu o Direito de modo eminentemente histórico e situacional, quer dizer, como um produto cultural “fabricado” pelo homem e jungido à sociedade que o “fabrica”. Todavia, não se abandonou a noção do Direito como algo que “sempre esteve lá”, como um “dado a ser revelado”. Com efeito, se para o jusnaturalismo o “Direito” se encontrava na “razão”, para o historicismo residia no “Espírito do Povo”[18] – “Volkgeist”.
Na corrente iluminista, o Direito que permanecia latente e quieto na razão humana, deveria ser expresso – como que por um dever moral – pela pena legislador, cuja singular tarefa consistia, através de métodos dedutivos racionalistas, expressar o conteúdo do Direito – o qual, repita-se, sempre “esteve lá”, bastando apenas ser “achado e expresso”. No historicismo, por sua vez, o Direito jazia vivo e efervescente nos corredores do labirinto chamado “Espírito do Povo”, devendo ser expresso não pelo legislador, que apenas fornecia mais um elemento – a Lei – de aferição do “volkgeist”, mas, isto sim, pelo cientista do direito, através dos cinco métodos clássicos de interpretação: Gramatical, Lógico, Sistemático, Histórico e Sociológico.
Observando esta diferença entre “aonde se encontra o Direito” – razão/volkgeist –, e “por qual meio o direito, uma vez encontrado, é revelado” – procedimento legislativo/Ciência do Direito –, a doutrina logo passou a conceber dois tipos de fontes[19]: a) Substanciais – materiais – responsáveis pelo “conteúdo do Direito”, pelo seu significado; e b) Formais, consistente no veículo, no meio pelo qual aquele conteúdo é revelado.
Essa visão das Fontes do Direito, contudo, esbarra em Kelsen, na medida em que este, realçando o caráter plurívoco do termo “Direito” – ora significando ordenamento normativo, ora direito subjetivo etc. –, concebe, como visto no primeiro capítulo, a norma jurídica como o verdadeiro objeto de investigação da Ciência do Direito, deixando de lado conceitos filosóficos, políticos, sociológicos e psicológicos que pudessem obscurecer a clareza necessária a uma teoria estritamente científica.
Assim, a fim de manter a pureza de sua teoria, Kelsen percebeu que a problemática em torno das Fontes do Direito ia muito além da mera curiosidade intelectual em conhecer a origem do “Direito”, era – e ainda é – uma questão que envolve o ordenamento jurídico enquanto “sistema”, e que deve responder as perguntas: “O que faz com que as normas religiosas, gramaticais e morais não integrem o ‘Direito’?” “pertençam à outra ordem que não o mundo jurídico?” “Por que determinado comando do chefe do bando de salteadores não pode ser norma jurídica?” “Enfim, o que torna uma norma, ‘jurídica’?”.
Pois bem. A necessidade de conferir sistematicidade ao ordenamento jurídico, somada ao primado da norma enquanto objeto de estudo, teve por consequência a noção de que não mais fazia sentido procurar saber “por qual meio o Direito é revelado” – pena do legislador, Ciência do Direito etc. –, mas, isto sim, por qual instrumento/meio as normas jurídicas – único objeto legítimo da ciência jurídica – ingressam no ordenamento. Ou seja, qual o instrumento pelo qual uma norma, após ser por ele veiculado, passa a ser qualificada como “jurídica”.
Neste ponto, sendo fiel ao objetivo de conferir cientificidade à Ciência Jurídica, Kelsen concebeu as fontes formais do único modo possível para manter a coerência e unidade de sua teoria: A fonte formal de uma norma jurídica “X” é outra norma jurídica “Y”, as normas, portanto, expressam-se através de outras normas – eis a soberania da norma no positivismo Kelseniano. Para o jurista austríaco, portanto, o veículo, o meio, o instrumento pelo qual as normas jurídicas ingressam no ordenamento jurídico são outras normas jurídicas, de modo que “nada escapa ao abraço normativo” [20].
O Direito, portanto, cria-se a si mesmo[21]. A norma ingressa no ordenamento jurídico por meio da “aplicação” de outra norma – “A aplicação do Direito é simultaneamente produção do Direito”[22]. Destarte, as Leis Ordinárias são criadas pelo poder legislativo mediante “aplicação” da Constituição, a qual, por sua vez, fora criada mediante a “aplicação” da norma hipotética fundamental.
A visão, portanto, entre o “Direito como algo dado”, presente nas concepções tradicionais, é aparentemente superada pelo normativismo Kelseniano. O Direito (= ordenamento jurídico) apenas é um “dado” depois de “revelado” por si mesmo, e é “revelado” de acordo com o “dado” por ele mesmo fornecido. Assim, no sistema autopoiético da Teoria Pura, o Direito apenas “está lá” para ser “achado” por que ele próprio “ali se colocou”.
Por sua vez, a questão de saber “aonde se encontra o Direito” – fontes materiais – transmudou-se em entender “de onde provém o conteúdo das normas jurídicas”, e não mereceu grandes considerações por parte do Jurista austríaco, o qual afirmou, inclusive, que os fatores que influenciam a criação-aplicação do direito, tais como, a moral e a política, designam o emprego da expressão “Fontes do Direito” em um sentido “não jurídico” [23]. De fato, Kelsen se limita a afirmar que uma norma não pode ditar o conteúdo de outra norma, mas apenas restringi-lo através de proposições negativas[24] – quando, por exemplo, a constituição proíbe a pena de morte. Os outros fatores que influenciam no conteúdo da norma – fatores sociológicos, políticos, filosóficos –, estão fora do corte metodológico de seu normativismo e, portanto, não merecem considerações.
Há, desta forma, em decorrência do corte metodológico realizado em sua teoria, bem como da necessidade de conceber o ordenamento jurídico enquanto sistema, uma preponderância das fontes formais sobre as fontes materiais. Aquelas, conforme dito anteriormente, são verdadeiras normas jurídica, cuja “aplicação” enseja a “criação” de outra norma jurídica. Kelsen ajuda-nos, pois, a conceber a questão das fontes do direito como um problema sistemático, sendo as fontes do direito uma tentativa de identificar os “canais” pelos quais as normas ingressam no sistema.
Nesse contexto – em que Normas Jurídicas são produtos de outras normas jurídicas, e no qual o Direito cria a si próprio –, as decisões judiciais exsurgem com certa peculiaridade. A decisão judicial possui caráter de norma jurídica “individual e concreta”, sendo criada pelo magistrado mediante “aplicação” da norma jurídica geral. Esta última caracteriza-se pela “abstração” – conecta a um fato abstratamente determinado uma consequência igualmente abstrata[25] – e pela “universalidade” – é “aplicável” a todos os jurisdicionados; ao passo que aquela se mostra “concreta” – aferição, no caso trazido ao juízo, do fato previsto na norma geral[26] – e “individual” – aplicação das consequências abstratamente prevista na norma geral a este mesmo caso concreto.
Assim, Kelsen criou a distinção entre norma jurídica geral, “abstrata e universal”, em contraponto a norma jurídica individual, “concreta e individual”. Destarte, observa-se que, embora a decisão judicial, tal como as leis ordinárias, seja criação-aplicação da norma jurídica anterior, ela enseja uma norma jurídica de qualidade diversa daquelas em que se baseia. Do geral chega-se ao individual, conforme regras silogísticas de aplicação: norma geral (premissa maior), caso concreto (premissa menor), norma individual (conclusão).
Essa distinção é decorrente de certa temeridade em conceber o magistrado como criador de normas jurídicas da mesma “qualidade” daquelas provenientes do legislador. Caso Kelsen entendesse que a norma jurídica aplicada diante do caso concreto possuía as mesmas características daquelas emanadas pelo órgão legislativo estaria, em primeiro lugar, jogando fora toda a construção secular da separação dos poderes, em segundo, criando sérios problemas para a segurança jurídica no Civil Law e, por fim, deixaria o sistema em aberto, permitindo que outra Norma Jurídica fosse criada a partir da decisão judicial anterior.
Todavia, a diferenciação entre norma geral e individual não subsiste diante das premissas relativas à contemporânea Hermenêutica Jurídica delineada no primeiro capítulo. Kelsen, assim como os normativistas em geral, é enfático ao afirmar que a norma geral já existe no momento de criação da norma individual, da mesma forma que a Constituição preexiste à elaboração de Leis Ordinárias. Ao mesmo tempo em que a norma é construída pelo interprete-aplicador, esta construção possui um dado inexorável consistente em outra norma de superior hierarquia. Neste sentido:
[...] a criação da Constituição realiza-se por aplicação da norma fundamental. Por aplicação de Constituição, opera-se a criação das normas jurídicas gerais através da legislação e do costume; e, em aplicação destas normas gerais, realiza-se a criação das normas individuais através das decisões judiciais e das resoluções administrativas [...] a aplicação do Direito é, por conseguinte, criação de uma norma inferior com base numa norma superior ou execução do ato coercitivo estatuído por uma norma[27].
Neste ponto, é importantíssimo – e outro ponto crucial deste trabalho – perceber que, seja através da pena do legislador incumbido de encontrar o Direito na super-razão iluminista, seja por meio das possantes obras do jurista profissional encarregado de interpretar o misterioso e romântico “Volkgeist”, ou, ainda, pela “autopoiese” jurídica Kelseniana, o Direito – ou a norma jurídica –, para todas as correntes citadas acima, é sempre expresso pelo mesmo meio: o texto[28].
Uma vez criada, a norma jurídica volta ao seu ponto de partida. Construída a partir do texto – plano da expressão (S1) –, para nele então ser novamente colocada, a norma jurídica opera em loop, sendo resultado de interpretação para, então, ser novamente interpretada. A interpretação, desse modo, é inafastável. Até mesmo a decisão judicial – supostamente concreta e individual –, necessita ser interpretada para sua execução. O agente público que, coercitivamente, vai até a casa do devedor para aprender-lhe o automóvel dado em garantia necessita interpretar a decisão proferida, não podendo ser equiparado a uma máquina perfeita de tradução da linguagem jurídica para a linguagem da coerção. A execução, portanto, somente pode ser vista como mera “aplicação” do Direito – como deseja Kelsen[29] –, na medida em que não produz qualquer texto.
As concepções kelsenianas, desta forma, pressupõem que o ato de criação da norma jurídica está, sempre, conexo à existência duma norma prévia, de superior hierarquia, desconsiderando que a norma jurídica é, após sua construção, disposta em texto. Confunde-se, portanto, texto com norma, e volta-se a distinção – aparentemente superada – entre o “dado” e o “revelado”, com a diferença que, agora, a norma de superior hierarquia é “dada”, enquanto a de inferior é “construída”.
Percebendo isto, Müller afirma que “a norma não existe, não é aplicável. Ela é produzida apenas no processo de concretização”[30]. Isso decorre da noção de interpretação adotada e sustentada em suas obras. Conforme visto no primeiro capítulo, a interpretação é uma atividade eminentemente histórica, realizada pelo interprete enquanto “ser-no-mundo”, significando que o resultado da interpretação sempre será diferente daquilo disposto no texto interpretado, pois a esse texto o interprete acrescenta, inexoravelmente, as suas “pré-compreensões”, o conjunto de contingências particulares que permeiam sua “vivencia”.
Adotando essa noção sobre interpretação, Müller entende que somente o texto – qualificado de normativo – é “dado”. A norma apenas surge após a interpretação do texto, ponto de partida de todo o processo de concretização. Ao texto, adiciona-se o programa normativo e âmbito normativo, a fim de realizar a imprescindível integração entre “Realidade” e “Direito”, essencial para a racionalidade do processo de interpretação-concretização. Abandona-se, pois, o “aplicacionismo” normativista em benefício do caráter constitutivo e criativo da interpretação-concretização[31].
Partindo dessas considerações, percebe-se que, diante das premissas estabelecidas por Müller, a questão atinente as Fontes do Direito se tornar ainda mais complexa. Ao deixar clara a distinção entre texto e norma, a problemática em torno das fontes formais do Direito se volta, por fim, a seguinte questão: “o que qualifica o texto como ‘normativo’?, ou, melhor dizendo, tendo em vista que toda a atividade jurisdicional se volta à construção da norma, o que torna um texto capaz de servir de ponto de partida inafastável para a sua construção?”.
Todavia, Müller, ao que parece, não aborda o tema expressamente, o primado da tópica em seu pensamento acarreta certo detrimento do pensamento sistemático e, por conseguinte, certa irrelevância da problemática aqui abordada. Como é sabido, o pensamento sistemático opera com base na ideia de totalidade, completude[32]. O sistema, em si, é visto como o parâmetro para resolver os problemas a ele levado, aqueles problemas impossíveis de serem resolvidos pela completude são “mal colocados ou falsos problemas”[33], são, pois, anomalias.
Adotando o pensamento sistemático, podemos utilizar o tautologismo típico do normativismo kelseniano para explicar qual é a fonte dos textos normativos, quer dizer, por qual meio um texto deve ser veiculado a fim de ser taxado como “normativo”. Assim, a qualidade de “normativo” de determinado texto “X” decorreria da expressa previsão em outro texto “Y”, sendo este último dotado de normatividade suficiente para qualificar o primeiro como “normativo”. Essa posição fecha o sistema, satisfazendo a exigência por unidade e completude.
Essa visão, contudo, apresenta problemas óbvios. Além de parecer mera mudança de nomenclatura com relação à denominada norma geral – a qual se transforma em texto normativo –, desconsidera por completo a atividade interpretativa – é preciso interpretar o texto “Y” para dizer que o texto “X” foi previsto como normativo –, e, ainda, acarreta um regresso ad infinitum, cuja única solução possível para fechar o sistema seria pressupor, tal como Kelsen, a existência duma espécie de “texto normativo hipotético fundamental”.
É mais interessante conceber uma solução sem pretensões de sistematicidade. Sendo o Direito um produto eminentemente cultural, fabricado em sua totalidade, e ainda que inconscientemente, pelo homem, não faz sentido pretender fechá-lo num sistema alheio as influências humanas, mormente em virtude do imperativo lógico de que “o sistema não pode fornecer as bases para sua própria consistência”[34]. Neste sentido, merece poucos reparos as lições de Tércio Sampaio Ferraz Jr., as quais se utiliza para fins de qualificar um texto como “normativo”.
Ao dissertar sobre o tema – como identificar as normas (= texto) como jurídicos, o jurista brasileiro afirma que “o princípio da inegabilidade dos pontos de partida exige a postulação de normas preponderantes que, diante de conflitos com outras normas, devem prevalecer”[35]. De fato, não faria sentido pressupor pontos de partidas inegáveis se qualquer norma pudesse ser utilizada como ponto de partida ou, nos termos aqui empregados, de nada adiantaria pressupor o “texto normativo” como ponto de partida necessário se todo e qualquer texto pudesse qualificar-se como “normativo”.
No saber dogmático, continua Tércio, as normas qualificadas como “jurídicas” são pressupostas pelos juristas como preponderantes, devendo prevalecer, por exemplo, sobre normais morais e religiosas. Sendo a existência de normas preponderantes uma necessidade lógica, e sendo as Normas Jurídicas entendidas como tal, a problemática consiste em saber como identifica-las[36], quer dizer, saber qual é o critério que torna uma norma, jurídica.
Todavia, antes de adentrar na específica questão saber como identificar determinada norma como “jurídica”, Tércio adverte que esta identificação ocorre conforme critérios variáveis no espaço e no tempo[37]. De fato, não há razão para acreditar na existência dum critério universal e atemporal capaz de abarcar todas as formas de identificação da norma jurídica. Concebendo o Direito, repita-se, como um objeto cultural, nada mais lógico considerar também os critérios de identificação da norma como um produto também cultural, adequado e estabelecido de acordo com as necessidades das sociedades vigentes.
Assim, da mesma forma que o império do “texto” como ponto de partida para a concretização-intepretação-criação da norma não pode ser vista como decorrente duma aproximação da “verdadeira natureza” do Direito, mas como decorrência da necessidade de super-normatização típica das sociedades de massa, a proposta dada por Tércio para identificar as normas jurídicas também deve ser vista como conexa a atual estrutura das sociedades contemporâneas.
Concebendo a norma jurídica como fenômeno comunicativo, tal como exposto no primeiro capítulo, o jurista brasileiro entende que o caráter de “jurisdicidade” das normas é aferido a partir do “grau de institucionalização da relação social” estabelecida na comunicação entre o emissor e o receptor da mensagem normativa”[38]. Essa relação social é determinante para conceber o caráter prescritivo da norma, e pode ser aferida no nível do cometimento, quer dizer, da mensagem que emana do emissor, a qual é em geral transmitida de modo não verbal, pelo tom da voz ou expressão facial – “‘por favor, sentem-se’ ou ‘sentem-se!’”[39].
O cometimento duma mensagem normativa, por pressuposto lógico a um comando normativo, sempre transmitirá uma relação de autoridade/sujeito, quer dizer, de hierarquia entre o emissor e o receptor da mensagem. Diante duma mensagem baseada nessa relação, o receptor poderá agir de três formas possíveis[40]: a) confirmando o cometimento da autoridade, acatando a relação social de hierarquia transmitida junto com a mensagem; b) rejeitando-o, reconhecendo a relação, mas negando a mensagem; ou c) desconfirmando-o, negando a própria relação hierárquica.
A relação de autoridade, embora transmitida no nível do cometimento, somente resta sedimentada através da contrarreação do emissor perante as possíveis condutas do receptor – confirmação, negação, desconfirmação. A autoridade se põe como tal quando desconfirma a desconfirmação, ou seja, quando concebe a desconfirmação do receptor como mera negação[41], ignorando, então, qualquer conduta do receptor que lhe retire a qualidade de “autoridade”. “A autoridade rejeitada ainda é autoridade. Contudo, a desconfirmação elimina a autoridade: uma autoridade ignorada não é mais autoridade”[42].
Ora, sendo a norma jurídica uma mensagem cujo cometimento, por pressuposto lógico, transmite uma relação de autoridade/sujeito, a instituição social responsável por emitir comandos normativos deve ser apta a agir como autoridade, quer dizer, ser capaz de desconfirmar a desconfirmação. Essa atitude somente é possível, todavia, se o emissor se sentir, ainda que de forma suposta, respaldado pela confirmação (= aceitação) de terceiros[43]. Não basta o emissor transmitir uma mensagem de hierarquia, é imprescindível que possa agir, efetivamente, como autoridade, desconfirmando a desconfirmação dos receptores.
Afirma Tércio que esta confirmação de terceiros costuma ocorrer de forma suposta e, quando “bem sucedida”, significa que a relação de autoridade está institucionalizada[44]. Deve-se entender por “bem sucedida”, embora o jurista não o afirme expressamente, e de acordo com o conceito de norma-comunicação exposto no primeiro capítulo, a emissão de mensagens normativas de baixíssima contingência, quer dizer, mensagens em que o comportamento do receptor selecionado pelo emissor ocorre com frequência muito maior do que aqueles constantes no amplo leque de comportamentos não selecionados. Em outras palavras, quando os receptores aceitam, por consenso, a relação de autoridade estabelecida pelo emissor e acatam as mensagens transmitidas.
Assim, as normas se juridicizam na medida em que são emitidas no contexto duma relação de autoridade institucionalizada, quer dizer, numa relação na qual a autoridade emissora de mensagens normativas está apta a desconfirmar eventuais desconfirmações por parte dos receptores, haja vista a “bem-sucedida” suposição da confirmação de terceiros, caracterizada pela baixíssima contingência das mensagens emitidas.
Somando aos delineamentos anteriormente feitos, e tentando simplificar para os limites deste trabalho, temos que um texto será normativo quando emitido por órgãos/autoridades cuja relação com os destinatários possui alto grau de institucionalização, ou seja, quando sua relação de autoridade com os destinatários for de tal forma que lhe é capaz presumir, de forma “bem sucedida”, que estes mesmos destinatários conceberão aqueles textos como normativos, como pontos inegáveis de partidas para a construção da norma.
O emissor – Congresso Nacional, Agências Reguladoras, Presidente da República, Tribunais etc. –, produz o texto normativo supondo que os destinatários irão aceita-lo como tal e, diante da baixa contingência de tal ato comunicativo, o órgão emissor se sente respaldo para estabelecer uma relação social de autoridade, apto a desconfirmar a desconfirmação e impor o texto coativamente.
CONCLUSÃO
A questão atinente às fontes do Direito, que, a partir da contemporânea hermenêutica jurídica, transmudou-se em saber “o que torna um texto capaz de servir de ponto de partida inafastável para a construção da norma”, pode, portanto, ser resolvida pelos delineamentos aqui expostos, concebendo como fonte do Direito (= critério para qualificar um texto como normativo) o grau de institucionalização do emissor do texto que, quando respaldado pela confirmação de terceiro, o qualificará como normativo, desconfirmando eventuais desconfirmações.
Por fim, quanto à questão relativa à origem do conteúdo das normas jurídicas – fontes materiais –, Müller, tal como Kelsen, universalizou sua abrangência. Todavia, diferentemente do jurista austríaco, Müller entende que os fatores históricos, religiosos, sociais, culturais etc., que influenciam sobre o conteúdo da norma jurídica integram a própria estrutura da norma, compondo o já citado âmbito normativo, ao passo que Kelsen as concebe como ajurídicas, pois “apenas normas são fontes de outras normas”.
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[1] SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do Precedente Judicial à Súmula Vinculante. Curitiba: Juruá, 2013, p. 126.
[2] MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 231.
[3] RUPERT apud MARINONI, Luiz Guilherme de. Op. Cit., p. 233.
[4] SOUZA, Marcelo Alves dias de. Op. Cit., p. 139.
[5] Idem, ibidem, p. 241 et seq.
[6]ATAÍDE Júnior, Jaldemiro Rodrigues de. O precedente vinculante e sua eficácia temporal no sistema processual brasileiro. Recife: Universidade Católica de Pernambuco, 2011, p. 70. Dissertação (mestrado) – Universidade Católica de Pernambuco. Pró-reitoria Acadêmica. Programa de Mestrado em Ciências Jurídicas, 2011.
[7] Idem, ibidem.
[8] ARAGÃO, Ergas Dirceu Moniz de. Sentença e coisa julgada. Rio de Janeiro: Aide, 1992, p. 254.
[9] ATAÍDE Júnior, Jaldemiro Rodrigues de. Op. Cit., p. 70.
[10] MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 221 et seq.
[11] Idem, ibidem.
[12] BRASIL, Tribunal Regiona Federal da 5ª Região. Primeira turma. Apelação 489290/CE. Rel. Des. Federal Rogério Fialho. Disponível em:
<http://trf-5.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/8387601/apelacao-civel-ac-489290-ce-0003956-092009-4059999>. Acesso em 19 set. 2013.
[13] SOUZA, Marcelo Alves dias de. Op. Cit., p. 126.
[14] TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: Revista dos tribunais, 2004, p. 12.
[15] MARINONI, Luiz Guilherme. Op. Cit., p. 215 et seq.
[16] RORTY, Richard. Consequências do pragmatismo. Lisboa: Piaget, 1999, p. 237.
[17] Idem, ibidem.
[18] FERRAZ, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2008, p. 190.
[19] Idem, ibidem.
[20] IVO, Gabriel. Norma Jurídica: produção e controle. São Paulo: Noeses, 2006, p. “XXVII” et seq.
[21] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 260.
[22] Idem, ibidem.
[23] Idem, ibidem, p. 259.
[24] Idem, ibidem, p. 261 et seq.
[25] Idem, ibidem, p. 256.
[26] Idem, ibidem.
[27] Idem, ibidem, p. 261.
[28] Eros Roberto Grau mencionar que Tullio Ascarelli chegou a esta mesma conclusão. Todavia, tendo em vista que o autor apenas faz esta alusão em nota de rodapé, e não menciona qualquer obra, resta impossível fazer qualquer referência ao autor italiano, mormente quando suas obras não foram encontradas para pesquisa. Neste ponto, Cf. GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes (a interpretação/aplicação do direito e os princípios). São Paulo: Malheiros, 2013, p. 25.
[29] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 262.
[30] MÜLLER, Friedrich. Teoria Estruturante do Direito. Trad. Peter Naumann, Euridez Avance de Souza. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 80.
[31] Idem, ibidem, p. 81.
[32] FERRAZ, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2008, p. 300.
[33] Idem, ibidem, p. 301.
[34] RORTY, Richard. Verdade e Progresso. Trad. Denise R. Sales. Barueri: Manole, 2005, p. 132.
[35] Idem, ibidem, p. 80.
[36] Idem, ibidem.
[37] Idem, ibidem.
[38] Idem, ibidem.
[39] Idem, ibidem, p. 76.
[40] Idem, ibidem, p. 80.
[41] Idem, ibidem, p. 81.
[42] Idem, ibidem.
[43] Idem, ibidem.
[44] Idem, ibidem, p. 82.
Advogado na cidade de Maceió - AL.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MELO, Rafael Esperidião de. Emissão de texto institucionalizada e teoria das fontes do direito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 ago 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47247/emissao-de-texto-institucionalizada-e-teoria-das-fontes-do-direito. Acesso em: 23 dez 2024.
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