RESUMO: O presente artigo apresenta um estudo sobre os métodos concretistas de interpretação constitucional (tópico-problemático, hermenêutico-concretizador, normativo-estruturante e método concretista da Constituição aberta), a partir das contribuições trazidas por Theodor Viehweg, Konrad Hesse, Friedrich Müller e Peter Häberle. Diferentemente dos métodos sistemáticos (jurídico e científico-espiritual), os métodos concretistas adotam um raciocínio aporético, partindo da reflexão sobre o problema a ser resolvido e não sobre o sistema normativo. Serão abordadas as premissas de cada método e as principais críticas doutrinárias. Tais métodos se inserem no estudo da hermenêutica constitucional, que parte da constatação da insuficiência dos elementos clássicos de interpretação previstos por Savigny para a compreensão do conteúdo e alcance das normas da Constituição em casos concretos.
Palavras-chave: Constitucional. Hermenêutica. Métodos de Interpretação. Concretista. Aporético. Tópico-problemático. Hermenêutico-concretizador. Normativo-estruturante. Constituição aberta. Viehweg. Hesse. Muller. Haberle.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. DESENVOLVIMENTO. 2.1. Método tópico-problemático. 2.2. Método hermenêutico-concretizador. 2.3. Método normativo-estruturante. 2.4. Método concretista da Constituição aberta. 3. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
Segundo Carlos Maximiliano, interpretar é “explicar, esclarecer; dar o significado de vocábulo, atitude ou gesto; reproduzir por outras palavras um pensamento exteriorizado; mostrar o sentido verdadeiro de uma expressão; extrair, de frase, sentença ou norma, tudo que na mesma se contém”[1]. Interpretar uma norma jurídica significa buscar atribuir-lhe sentido e alcance. Nesse sentido, cada método hermenêutico abrange uma série de premissas por meio das quais se busca realizar a interpretação de forma mais efetiva. Dessa forma, a interpretação da Constituição também tem por objetivo a compreensão do significado de suas normas.
Todavia, em virtude da estrutura normativa própria das Constituições, as quais possuem regras e princípios que buscam proteger valores e ideologias por vezes conflitantes, os elementos tradicionais de interpretação sistematizados pelo jurista alemão Savigny[2] (gramatical, histórico e sistemático, sendo posteriormente acrescido o elemento teleológico[3]) se mostram insuficientes para solucionar, no caso concreto, conflitos entre bens jurídicos tutelados na Constituição, conferindo às normas constitucionais eficácia e aplicabilidade. Dessa forma, a doutrina e a jurisprudência desenvolveram métodos próprios de hermenêutica constitucional.
Não se pode olvidar, entretanto, que os métodos de interpretação tradicional e constitucional são reciprocamente complementares, conforme lição de J.J. Gomes Canotilho[4] e Inocêncio Mártires Coelho[5].
Nesse contexto, o objeto de estudo do presente artigo abrange os métodos concretistas (ou aporéticos) de interpretação constitucional (tópico-problemático, hermenêutico-concretizador, normativo-estruturante e método concretista da Constituição aberta), a partir das contribuições trazidas por Theodor Viehweg, Konrad Hesse, Friedrich Müller e Peter Häberle. Diferentemente dos métodos sistemáticos (jurídico e científico-espiritual), os métodos concretistas adotam um raciocínio aporético, partindo da reflexão sobre o problema a ser resolvido e não sobre o sistema normativo. Não se fala em interpretação da norma, mas em concretização, ou seja, na sua aplicação para resolver problemas concretos. Não se pode interpretar a norma sem considerar atentamente os dados concretos a respeito do problema sobre o qual se pretende aplicá-la.
No desenvolvimento, haverá uma seção dedicada a cada um dos métodos que compõem o objeto de estudo deste artigo. Serão apresentadas as visões dos autores alemães supramencionados, da doutrina brasileira e do autor deste artigo acerca das premissas metodológicas e das principais críticas dirigidas a cada método.
2. DESENVOLVIMENTO
O método tópico-problemático foi desenvolvido por Theodor Viehweg (1907-1988), em sua obra Topik und Jurisprudenz (Tópica e Jurisprudência), de 1953[6]. Viehweg retomou a tópica no meio jurídico, reagindo ao juspositivismo que predominava no século XX[7]. Apesar de o método tópico ter sido concebido por Viehweg no âmbito do direito civil, suas premissas metodológicas repercutiram em outros ramos do direito[8].
Diferentemente do método hermenêutico clássico, o tópico-problemático está centrado no problema e não na norma jurídica ou no sistema normativo. A técnica de interpretação sugerida por Viehweg se fundamenta em considerações pragmáticas a partir do problema a ser resolvido no caso concreto. O intérprete verifica os diversos topoi (pontos de vista) a respeito daquele problema, analisando-os a fim de obter a solução normativa adequada ao caso.
Enquanto os demais métodos hermenêuticos adotam o modelo dedutivo, partindo da norma em direção ao problema, o pensamento tópico-problemático trilha em sentido oposto, ou seja, do particular (problema) para o geral (norma), adotando o modelo indutivo[9]. Dessa forma, a tópica considera o problema em primazia sobre a norma. Conforme salienta Daniel Sarmento, a solução do problema apresentado se torna o objetivo central do intérprete, cujo compromisso com o sistema jurídico deixa de ser absoluto[10]. A Constituição é concebida como um sistema aberto de princípios e regras a serem selecionados pelo intérprete segundo critérios de conveniência e oportunidade para alcançar a solução mais justa para o problema concreto a ser enfrentado[11].
A tópica por Viehweg possui conteúdo assistemático (concretista), caracterizando-se por três elementos:
“(...) por um lado a tópica é, do ponto de vista de seu objeto, uma técnica do pensamento problemático; por outro lado, do ponto de vista do instrumento com que opera, o que se torna central é a noção de topos ou lugar-comum; finalmente, do ponto de vista do tipo de atividade, a tópica é uma busca e exame de premissas: o que a caracteriza é ser um modo de pensar no qual a ênfase recai nas premissas, e não nas conclusões”[12].
Tema de suma importância para o método tópico-problemático é definição de topos, uma vez que o intérprete se baseia em raciocínios decorrentes de premissas formuladas a partir de opiniões amplamente aceitas, dotadas de verossimilhança. Os topoi consistem de argumentos sobre os quais recaem opiniões contrárias e favoráveis, em um processo de busca pela interpretação mais adequada ao caso concreto. Segundo Daniel Sarmento,
“os topoi (plural de topos) são diretrizes que podem eventualmente servir à descoberta de uma solução razoável para o caso concreto. Eles não são certos ou errados, mas apenas mais ou menos adequados para a solução do problema; mais ou menos capazes de fornecer uma resposta razoável para o caso, que se mostre persuasiva à comunidade de intérpretes. Dentre os topoi podem figurar elementos heterogêneos como o texto normativo, princípios morais, tradições compartilhadas etc.[13]”.
Os topoi abrangem formas de argumentação (raciocínio), pontos de vista, esquemas de pensamento ou “lugares-comuns”, que emergem dos princípios gerais, da moral, da jurisprudência, das opiniões comuns, dos usos e costumes. Os topoi “orbitam” em torno da discussão a respeito do caso concreto a ser solucionado, influenciando e auxiliando o pensamento do intérprete diante do problema em estudo[14]. São classificados por Viehweg[15] em duas categorias:
a) topoi gerais: aplicáveis genericamente a qualquer problema, formulados por pensadores como Aristóteles e outros; e
b) topoi especiais: são empregados em um conjunto delimitado de problemas inerentes a determinado ramo do Direito.
Nesse sentido, cada ponto de vista não é aprioristicamente verdadeiro ou falso, fornecendo ao aplicador da norma mero parâmetro não vinculante que pode conduzir à obtenção de uma solução adequada para o problema concreto. Conforme o caso a ser enfrentado, a utilização de um ou mais topoi será mais ou menos conveniente, a depender do entendimento prevalecente entre os intérpretes que se debruçam na busca da resposta para o problema.
Dessa forma, a tópica “pura”[16] considera o sistema jurídico como um topos entre os demais a serem ponderados pelo intérprete da norma diante de um problema concreto. Ao lecionar sobre o tema, Luiz Roberto Barroso conclui brilhantemente que “a tópica representa a expressão máxima da tese segundo a qual o raciocínio jurídico deve orientar-se pela solução do problema, e não pela busca de coerência interna para o sistema”[17]. Todavia, é justamente essa premissa metodológica que suscita críticas ao método.
A crítica mais relevante à tópica consiste no risco de esse método conduzir a hermenêutica a um casuísmo sem limites, resultando em insegurança jurídica para os destinatários da norma, bem como a uma maior facilidade de o intérprete adotar uma norma que solucione o problema concreto da forma mais conveniente para atender seus interesses pessoais, uma vez que a coerência do sistema jurídico não é prioridade, sendo, no máximo, um topos a ser (des)considerado. Quando se fala em hermenêutica constitucional, os potenciais danos são mais profundos e podem comprometer a própria estabilidade do sistema jurídico, enfraquecendo a força normativa da Constituição[18] e contaminando o “sentimento constitucional”[19] da sociedade.
Outra crítica doutrinária relevante ao método tópico-problemático, conforme alerta Marcelo Novelino[14], reside na potencial falta de compromisso do intérprete com a jurisprudência formada em torno daquele problema, o que compromete a coerência que se espera do sistema judicial.
Konrad Hesse (1919 – 2005), defensor do Constitucionalismo normativo, desenvolveu o método hermenêutico-concretizador a partir da premissa de que a interpretação da Constituição deve considerar tanto o texto constitucional quanto a realidade em que será aplicada a norma, em um processo de concretização[20]. Não existe interpretação desvinculada do problema concreto. Inspirado na doutrina de Theodor Viehweg sobre o método tópico-problemático, Hesse assevera que a realidade a ser ordenada deve ser considerada no processo de busca pelo conteúdo plurissignificativo da Constituição. O teor da norma só se completa no ato interpretativo diante de um caso real a ser solucionado. Assim, o intérprete constitucional não pode estar alheio ao problema concreto, uma vez que interpretação e aplicação integram um processo unitário de concretização da norma[21].
Entretanto, diferentemente do método tópico-problemático, Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco enfatizam que a hermenêutica concretizadora de Hesse confere primazia não ao problema, mas ao texto constitucional[22]. A interpretação para Hesse parte da concretização da norma constitucional para a solução do problema concreto. A atividade hermenêutica é provocada a partir de um problema concreto, mas, para solucioná-lo, o intérprete deve observar as possibilidades que o texto constitucional comportar. Dessa forma, o método de Hesse não autoriza a interpretação livre, baseada exclusivamente nos conceitos prévios do intérprete[23].
Para concretizar o conteúdo e o alcance da norma, o intérprete utiliza sua pré-compreensão (pressuposto subjetivo) sobre o enunciado positivado, influenciado pelo contexto social e histórico concreto (pressuposto objetivo). Ele atua como mediador entre o texto e o problema prático sobre o qual a norma incidirá. Canotilho observa que a “relação entre o texto e o contexto com a mediação criadora do intérprete [transforma] a interpretação em ‘movimento de ir e vir’ (círculo hermenêutico)” [24].
Esse método orbita ao redor de três elementos-base: a norma que será concretizada, a pré-compreensão do aplicador e o problema a ser resolvido no caso concreto[25]. Conforme destaca Marcelo Novelino, a hermenêutica concretizadora demanda do intérprete uma compreensão prévia justificada e consciente. Para Hesse, a teoria da Constituição fornece parâmetros objetivos de interpretação cujo domínio pelo aplicador é condição necessária para o entendimento da norma e do problema[26]. Assim, não poderá ser considerado um intérprete legítimo da Constituição quem não conhece a teoria da constituição. Essa premissa de Hesse é um elemento diferenciador marcante para o método concretista de Häberle da Constituição aberta, o qual será objeto de estudo na seção 2.4 deste artigo. O paradigma clássico da interpretação se fundamenta na premissa de que o círculo de intérpretes das normas constitucionais e legais é fechado, limitado.
Para auxiliar na utilização do método hermenêutico-concretizador, Hesse desenvolveu princípios de interpretação, que são verdadeiras balizas que conferem maior objetividade ao trabalho do intérprete, mitigando o casuísmo desarrazoado. Conforme lição de Kelly Susane Alflen da Silva[27], os princípios propostos por Hesse são: a) força normativa da Constituição; b) unidade da Constituição; c) concordância prática; c) efeito integrador; e d) exatidão funcional.
As críticas ao método hermenêutico-concretizador, assim como aos demais métodos concretistas, dizem respeito ao fato de se levar com consideração circunstâncias do problema concreto na atividade interpretativa da Constituição, comprometendo a força normativa e a unidade do ordenamento constitucional. Para Ernest-Wolfgang Böckenförde[28], o método hermenêutico-concretizador[29] apresenta uma grave falha metodológica por não delimitar um critério objetivo, claro e vinculante para que o intérprete esteja efetivamente limitado pelas possibilidades semânticas do texto constitucional. O ilustre jurista alemão alerta que
“(...) o problema da interpretação constitucional deriva, por inteiro, da multiplicidade e da indeterminação, da concisão lapidar e da fragmentação da literalidade das normas constitucionais. Obter daí um texto de norma claro e com conteúdo certo é função mesma – função preferencial – da interpretação. Mas, como pode a interpretação estar vinculada ao que ela mesma deve produzir antes de mais nada? Na medida em que a norma é indeterminada, e somente com a interpretação se obtém um conteúdo (...), ela não pode ser ao mesmo tempo elemento de vinculação da interpretação"[30].
Friedrich Müller (1938) desenvolveu o método normativo-estruturante (ou concretista-estruturante) a partir do aprofundamento metodológico da hermenêutica concretizadora de seu mestre Konrad Hesse[31]. Müller estabelece que o processo de interpretação das normas constitucionais deve seguir uma estrutura de concretização que abrange os elementos tradicionais de Savigny e outros acrescidos por ele. Esses elementos de interpretação são organizados da seguinte forma[32]:
a) Elementos metodológicos strictu sensu: abrangem: os elementos clássicos (gramatical, histórico, genético, sistemático e teleológico); os princípios de interpretação da Constituição; os subcasos das regras tradicionais de interpretação (praticabilidade, interpretação a partir do nexo da história das ideias, critério da aferição do efeito integrante, unidade da Constituição, quadro global de direito pré-constitucional, concordância prática e força normativa da Constituição); e problemas da axiomatização do direito constitucional e da lógica formal. Segundo Müller, não há hierarquia normativa entre esses elementos;
b) Elementos do âmbito da norma: não abrange a mera soma de fatos, mas um “nexo formulado em termos de possibilidade real de elementos estruturais que são destacados da realidade social na perspectiva seletiva e valorativa do programa da norma e estão, via de regra, conformados de modo ao menos parcialmente jurídico” [33];
c) Elementos dogmáticos: englobam a jurisprudência e doutrina, os quais devem ser interpretados em decorrência de sua estrutura linguística;
d) Elementos de técnica de decisão: a partir da tópica, reúnem pontos de vista problematizados a fim de se compreender o tipo de argumentação e estrutura no texto da decisão, devendo funcionar como meios auxiliares, sem levar o intérprete a um resultado contrário ou à revelia da norma;
e) Elementos teóricos: envolvem teorias do Direito, da Constituição e do Estado e filosofia do Direito, qualificando as pré-compreensões do intérprete; e
f) Elementos de política constitucional: consideram as consequências da aplicação da norma constitucional ao problema, auxiliando o intérprete com diversos pontos de vista a serem utilizados na ponderação de valores e dos possíveis resultados da interpretação.
O método normativo-estruturante enfatiza que a estrutura de uma norma resulta da conjunção entre o programa normativo, que é texto positivado (a forma pela qual a norma se expressa), e o domínio normativo, que representa a porção da realidade social sobre a qual a norma incide, é o caso “concreto” tratado no texto. É indispensável, na metódica proposta por Müller, que o intérprete considere essa realidade social em sua atividade hermenêutica[34]. O programa da norma é tão-somente a “ponta do iceberg” do problema de interpretação. O intérprete deve ainda delimitar o âmbito da norma que será concretizada. Não há identidade entre o texto da norma e a norma jurídica. Esta passa a existir após a aplicação e interpretação do texto, ou seja, após a sua concretização. A norma jurídica a ser aplicada ao caso (“norma de decisão”) não é um juízo hipotético, mas o produto final de um processo de interpretação concretizante, fruto da conjugação entre o programa e o domínio ou âmbito normativo[35].
Em suma, no método normativo-estruturante, a interpretação do texto da norma é a primeira fase do processo de concretização[36], sendo fundamental por definir o programa normativo, o qual circunscreverá o conteúdo normativo da decisão final para o caso concreto[37]. A delimitação do programa da norma se dá por meio dos elementos de interpretação organizados conforme a estrutura de concretização proposta por Müller. Na segunda fase do método, passa-se à identificação empírica do domínio ou âmbito normativo, o qual abrange os fatos juridicamente relevantes que sejam compatíveis com o programa normativo[38]. Essa identificação resulta da utilização de dados das ciências sociais, políticas, econômicas e outros dados exigidos pelo âmbito normativo da prescrição concretizada.
Müller define um conjunto de critérios para solução de conflitos entre os diversos elementos de concretização, de modo racionalizar o processo de interpretação. Para o eminente jurista alemão, por exemplo, há equivalência hierárquica entre os elementos de interpretação do texto e os elementos do âmbito da norma. Contudo, quanto à definição do limite de resultados permitido ao final do processo de concretização, prevalecem os elementos de interpretação textual. Os limites da decisão são balizados pelos elementos sistemático e gramatical, com a prevalência deste.
A crítica ao método normativo-estruturante é comum aos métodos concretistas: seu emprego pode comprometer a força normativa do texto constitucional, quebrando a unidade da Constituição. Apesar da preocupação metodológica de Müller em racionalizar o processo de concretização, a fim de mitigar o excesso de discricionariedade do intérprete, juristas como Daniel Sarmento consideram que Müller não obteve êxito em sua busca por definir critérios seguros de hierarquização dos elementos de concretização das normas constitucionais[39]. Böckenförde alerta, ainda, para a fragilidade do método em razão do não estabelecimento de um critério preciso para nortear a correlação a ser estabelecida entre o programa normativo e o âmbito normativo, deixando a atividade do intérprete sem um parâmetro de controle objetivo e racional[40].
2.4. Método concretista da Constituição aberta
O método concretista da Constituição aberta se refere à contribuição de Peter Häberle[41] (1934) à hermenêutica constitucional, conforme lições de Paulo Bonavides[42] e Inocêncio Mártires Coelho[43], entre outros. Marcelo Novelino[44], todavia, entende que o eminente jurista alemão não tratou propriamente de um método hermenêutico, mas de uma teoria acerca dos sujeitos legitimados para interpretar a Constituição.
Enquanto a doutrina hermenêutica clássica (especialmente Konrad Hesse) assevera que a interpretação legítima da Constituição é atividade de um círculo restrito (fechado) de intérpretes, Peter Häberle desenvolve sua teoria rompendo com esse paradigma, defendendo um círculo aberto de intérpretes (ou sociedade aberta de intérpretes), abrangendo todos os cidadãos e grupos sociais que vivem a Constituição.
Considerando que as normas constitucionais se dirigem não somente ao Estado, mas a toda a sociedade, é inevitável admitir que esta possa interpretar a Constituição para aplicá-la. A interpretação constitucional deve ser democratizada. Härbele assevera que esse procedimento democrático deve permear tanto a criação quanto a interpretação da Constituição[44].
O método concretista da Constituição aberta se desenvolve em torno de três premissas: a) a abertura do círculo de intérpretes das normas constitucionais; b) a concepção de que o processo interpretativo é essencialmente público e aberto; e c) a correlação desse processo público e aberto com a construção da realidade constitucional. Quanto mais plural for determinada sociedade, mais abertos devem ser os critérios de interpretação constitucional.
A doutrina aponta a realização de audiências públicas (art. 9º, § 1º, Lei no 9.868/99) e a figura do amicus curiae (art. 7º, § 2º, Lei no 9.868/99) como meios de publicização do processo de interpretação constitucional no Brasil, viabilizando o direito de participação democrática no controle de constitucionalidade no direito brasileiro. A ampliação da participação da sociedade pluraliza o debate constitucional, elevando o grau de legitimidade democrática nas decisões do STF.
A principal crítica[44] à sociedade aberta de intérpretes diz respeito ao risco de quebra da unidade da Constituição e mitigação de sua força normativa, em decorrência de divergência de entendimentos nesse círculo ampliado de intérpretes. Para Häberle, os cidadãos são pré-intérpretes, sendo a interpretação final da Constituição realizada pelo Tribunal Constitucional. Nesse sentido, os pré-intérpretes conferem legitimidade aos intérpretes definitivos, auxiliando-os no processo de concretização da Constituição.
Conforme alerta Paulo Bonavides, o sucesso desse método em determinada sociedade depende de instituições sólidas, uma cultura desenvolvida politicamente e uma democracia madura. Tais requisitos, na visão do eminente jurista, são “sem dúvida difíceis de achar nos sistemas políticos e sociais de nações subdesenvolvidas ou em desenvolvimento [...]. Até mesmo para a Constituição dos países desenvolvidos sua serventia e torna relativa e questionável, com um potencial de risco manifesto[45]”.
Foi apresentado no presente artigo um estudo sobre os métodos concretistas de interpretação constitucional (tópico-problemático, hermenêutico-concretizador, normativo-estruturante e método concretista da Constituição aberta), a partir das contribuições trazidas por Theodor Viehweg, Konrad Hesse, Friedrich Müller e Peter Häberle. Diferentemente dos métodos sistemáticos (jurídico e científico-espiritual), os métodos concretistas adotam um raciocínio aporético, partindo da reflexão sobre o problema a ser resolvido e não sobre o sistema normativo.
Em síntese, pode-se concluir que:
a) o método tópico-problemático, de Theodor Viehweg, está centrado no problema e não na norma. O intérprete verifica os diversos topoi (pontos de vista) a respeito do problema, analisando-os a fim de solucionar o caso. Esse método é criticado pelo casuísmo exagerado e insegurança jurídica, uma vez que a coerência do sistema jurídico é apenas um topos a ser ponderado;
b) o método hermenêutico-concretizador, de Konrad Hesse, assevera que a interpretação da Constituição deve considerar tanto o texto quanto a realidade em que será aplicada a norma, em um processo de concretização. O intérprete utiliza sua pré-compreensão (pressuposto subjetivo) sobre o enunciado positivado, influenciado pelo contexto social e histórico concreto (pressuposto objetivo). Diferentemente do método tópico, Hesse confere primazia não ao problema, mas ao texto constitucional;
c) o método normativo-estruturante, de Friedrich Müller, estabelece que a estrutura de uma norma resulta da conjunção entre o programa normativo, que é texto positivado (a forma pela qual a norma se expressa), e o domínio normativo, que representa a porção da realidade social sobre a qual a norma incide. Não há identidade entre o texto da norma e a norma jurídica. Esta passa a existir após a aplicação e interpretação do texto, ou seja, após a sua concretização. O processo de interpretação das normas constitucionais deve seguir uma estrutura de concretização, considerando diversos elementos metodológicos; e
d) o método concretista da Constituição aberta, de Peter Häberle, se desenvolve em torno de três premissas: i) a abertura do círculo de intérpretes das normas constitucionais (sociedade aberta de intérpretes); ii) a concepção de que o processo interpretativo é essencialmente público e aberto; e ii) a correlação desse processo público e aberto com a construção da realidade constitucional. Quanto mais plural for determinada sociedade, mais abertos devem ser os critérios de interpretação constitucional.
As críticas aos métodos concretistas dizem respeito ao risco de comprometimento da força normativa da Constituição e quebra de sua unidade. A valorização exacerbada de pontos de vista extrajurídicos, de dados empíricos do problema e do subjetivismo do intérprete pode conduzir o processo de interpretação a um casuísmo desarrazoado.
Por fim, é oportuno ressaltar que há consenso na doutrina de que não existe um método de interpretação constitucional com primazia absoluta sobre os demais. Mesmo os elementos tradicionais de interpretação não podem ser considerados ultrapassados pelos métodos modernos criados pela hermenêutica constitucional.
BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. Escritos sobre derechos fundamentales. Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 1993.
COELHO, Inocêncio Mártires. Métodos - Princípios de interpretação constitucional. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 230, p. 163-186, fev. 2015. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/46340>. Acesso em: 04 Ago.
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e "procedimental” da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997.
MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. Trad. Peter Naumann. 2. ed. ver. São Paulo: Max Limonad, 2000.
NOVELINO, Marcelo. Manual de direito constitucional. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Método. 2014.
SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Claudio Pereira de. Direito Constitucional: Teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2014.
SILVA, Kelly Susane Alflen da. Hermenêutica jurídica e concretização judicial. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2000
[1] MAXIMILIANO, Carlos. Op. Cit. p.21.
[2] SAVIGNY, Friedrich Carl von. Sistema del diritto romano attuale, 1886, v. 1, cap. 4, p. 225 e ss. A edição original alemã, de 1840, tinha como título Das System des heutigen römischen Rechts.
[3] BARROSO, Luiz Roberto. Op. Cit. p. 290.
[4] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. Cit. p. 1.136.
[5] COELHO, Inocênio Mártires. Op. Cit. 2015. p. 89.
[6] VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência, 1979 (a 1ª edição do original Topik und Jurisprudenz é de 1953).
[7] BONAVIDES, Paulo. Op. Cit. p. 446.
[8] CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação, p. 148.
[9] LEITE, Georges Salomão. Op. Cit. p. 68.
[10] SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Claudio Pereira de. Op. Cit. cap. 10.5.2.
[11] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op. Cit. p. 103.
[12] LEITE, Georges Salomão. Op. Cit. p. 65.
[13] SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Claudio Pereira de. Op. Cit. p. 420.
[14] NOVELINO, Marcelo. Op. Cit. Cap. 8.2.1.
[15] VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência, 1979. p. 37.
[16] Segundo Daniel Sarmento, “é como ‘tópica pura’ que Hesse denomina a metodologia jurídica de Viehweg. Cf. HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha, p. 65. Na obra de Hesse, bem como na de Friedrich Müller, a tópica sofrerá certas correções de ordem normativa; será, portanto, uma tópica mitigada.” (SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Claudio Pereira de. Direito Constitucional: Teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2012. cap. 10.5.2).
[17] BARROSO, Luiz Roberto. Op. Cit. p. 279.
[18] SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Claudio Pereira de. Op. Cit. p. 421: “No domínio constitucional, estes problemas são ainda mais agudos, pois a não vinculação do intérprete à norma ou ao sistema põe em risco a força normativa da Constituição, ao reduzir os seus comandos a meros argumentos de caráter não obrigatório”.
[19] VERDÚ, Pablo Lucas. O sentimento constitucional: aproximação ao estudo do sentir constitucional como de integração política; tradução e prefácio Agassiz Almeida Filho. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense. 2004. p.127-152.
[20] SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Claudio Pereira de. Op. Cit. cap. 5.2.7.
[21] HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha, p. 62.
[22] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op. Cit. p. 92.
[23] PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo. Op. Cit. p. 115.
[24] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. Cit. p. 214.
[25] BONAVIDES, Paulo. Op. Cit. p. 482.
[26] NOVELINO, Marcelo. Op. Cit. cap. 8.2.4.
[27] SILVA, Kelly Susane Alflen da. Op. Cit. p. 365-368.
[28] BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. Op. Cit. p. 32.
[29] Assim como os demais métodos concretistas.
[30] BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. Op. Cit. p. 32.
[31] SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Claudio Pereira de. Op. Cit. cap. 5.2.7.
[32] MÜLLER, Friedrich. Op. Cit. p. 59-90.
[33] MÜLLER, Friedrich. Op. Cit. p. 58.
[34] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op. Cit. p. 93.
[35] MÜLLER, Friedrich. Op. Cit. p. 59.
[36] MÜLLER, Friedrich. Op. Cit. p. 45.
[37] MÜLLER, Friedrich. Direito, linguagem, violência: elementos de uma teoria constitucional, p. 44. No mesmo sentido: MÜLLER, Friedrich. Concepções modernas e a interpretação dos direitos humanos. In: CONFERÊNCIA NACIONAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, 15, p. 104.
[38] MÜLLER, Friedrich. Direito, linguagem, violência: elementos de uma teoria constitucional, p. 43.
[39] SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Claudio Pereira de. Op. Cit. cap. 5.2.7.
[40] BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. Op. Cit. p. 34.
[41] HÄBERLE, Peter. Op. Cit.
[42] BONAVIDES, Paulo. Op. Cit. p. 509.
[43] COELHO, Inocêncio Mártires. Op. Cit.
[44] NOVELINO, Marcelo. Op. Cit. cap. 8.4.
[45] BONAVIDES, Paulo. Op. Cit. p. 516.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, Marcio Scarpim de. Métodos concretistas de interpretação constitucional: contribuições de Viehweg, Hesse, Müller e Häberle Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 ago 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47263/metodos-concretistas-de-interpretacao-constitucional-contribuicoes-de-viehweg-hesse-muller-e-haberle. Acesso em: 23 dez 2024.
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