RESUMO: O presente artigo analisa a antinomia aparente entre as regras do art. 73 do novo Código de Processo Civil e do art. 16 do Decreto-lei 3.365/1941 acerca da necessidade da citação do cônjuge em ação de desapropriação direta movida por ente público, buscando respaldo nas lições doutrinárias, bem como na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
Palavras-chave: Desapropriação; citação do cônjuge; antinomia aparente.
1 INTRODUÇÃO
Na lição de MEIRELLES, a desapropriação “é a mais drástica das formas de manifestação do poder de império, ou seja, da soberania interna do Estado no exercício de seu domínio eminente sobre todos os bens existentes no território nacional” (2010, p.632).
Ainda, CARVALHO FILHO aduz que a desapropriação “é o procedimento de direito público pelo qual o Poder Público transfere para si a propriedade de terceiro, por razões de utilidade ou de interesse social, normalmente mediante o pagamento de indenização” (2014, p. 830).
Nesse sentido, premida pelo interesse público instrumentalizado na declaração de utilidade pública ou interesse social, a Administração pode proceder à desapropriação da propriedade.
Com efeito, MELLO aduz que “o fundamento político da desapropriação é a supremacia do interesse coletivo sobre o individual, quando incompatíveis” (2008, p. 857).
Não obstante o direito de desapropriar seja conferido ao ente público, referido direito só pode ser exercido com a observância do devido processo legal, seja na esfera administrativa, na hipótese de acordo administrativo, seja na esfera judicial.
Há que ser mencionada, neste ponto, a garantia insculpida no art. 5º, inciso LIV, da Constituição Federal, no qual está expresso que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
Nesse contexto, “a autoexecutoriedade fica, aqui, mitigada, e cede espaço ao devido processo legal prévio, necessário para resguardar a garantia de estabilidade do patrimônio particular, representada pela regra geral da indenizabilidade justa e prévia” (MOREIRA e GUIMARÃES, 2008, p. 597).
2 DA CONTROVÉRSIA ACERCA DO ART. 16 DO DECRETO-LEI 3.365/1941
Delineado o panorama geral do fim almejado pela desapropriação, qual seja, transferir compulsoriamente um bem ao ente público, para a consecução do fim disposto em lei, impende destacar a existência de peculiaridade no que tange ao referido processo quando a desapropriação se dá de forma judicial.
Conforme define abalizada doutrina, a citação é “o ato processual de comunicação pelo qual se convoca o réu (inclusive o executado) e interessado para integrar o processo (art. 238, CPC)” (DIDIER, 2015, p. 607).
Ademais, ensina o mesmo autor que a citação é uma condição de eficácia do processo em relação ao réu e também um requisito de validade dos atos processuais que lhe seguirem.
Dessa forma, a relação processual apenas se considera devidamente formada com a integração da parte adversa por meio da citação.
O revogado Código de Processo Civil de 1973 assim dispunha, de maneira geral, sobre o tema:
Art. 10 (...)
§ 1º Ambos os cônjuges serão necessariamente citados para as ações:
I - reais imobiliárias;
No novo Código de Processo Civil de 2015, a necessidade de outorga marital para ações reais imobiliárias foi mantida:
Art. 73 (...)
§ 1º Ambos os cônjuges serão necessariamente citados para a ação:
I - que verse sobre direito real imobiliário, salvo quando casados sob o regime de separação absoluta de bens;
Ressalva-se no dispositivo, entretanto, a hipótese de os cônjuges terem adotado no casamento o regime da separação absoluta de bens, o que já era o entendimento da doutrina quanto ao anterior diploma processual civil.
Em que pese a disciplina geral trazida tanto pelo antigo quanto pelo novo Código de Processo Civil, o Decreto-lei nº 3.365/1941, que trata especificamente acerca do processo de desapropriação por utilidade pública, assim dispõe:
Art. 16. A citação far-se-á por mandado na pessoa do proprietário dos bens; a do marido dispensa a da mulher; a de um sócio, ou administrador, a dos demais, quando o bem pertencer a sociedade; a do administrador da coisa no caso de condomínio, exceto o de edifício de apartamento constituindo cada um propriedade autonôma, a dos demais condôminos e a do inventariante, e, se não houver, a do cônjuge, herdeiro, ou legatário, detentor da herança, a dos demais interessados, quando o bem pertencer a espólio.
Com efeito, está-se diante de um conflito de normas, ou seja, uma antinomia, haja vista determinada matéria ser regulada por uma lei especial anterior e também por meio lei geral posterior.
No caso em comento, trata-se de antinomia aparente, porquanto pode ser solucionada pela aplicação dos critérios delineados pela doutrina, quais sejam, cronológico, da especialidade ou hierárquico.
É importante distinguir, nesse ponto, que há hipóteses em que a antinomia pode ser resolvida tão só pela aplicação de um dos critérios, quando se denomina antinomia aparente de primeiro grau, ou então quando se deva verificar qual dos critérios prevalecerá quando de sua incidência simultânea, hipótese chamada de antinomia aparente de segundo grau.
Especificamente no que concerne ao conflito entre a regra disposta no art. 73 do novo Código de Processo Civil e a fixada pelo art. 16 do Decreto-lei 3.365/1941, verifica-se, a priori, a possiblidade de solução da antinomia tanto pelo critério cronológico (a prevalecer a norma do Código de Processo Civil) quanto a possibilidade de que a mesma seja resolvida pelo critério da especialidade (a prevalecer a norma a disciplinar o processo de desapropriação).
Reforça-se, assim, a existência de uma antinomia de segundo grau, evidenciada por haver mais de um critério capaz de solucioná-la.
Nesta seara, coube novamente à doutrina estabelecer que “em um primeiro caso de antinomia de segundo grau aparente, quando se tem um conflito de uma norma especial anterior e outra geral posterior, prevalecerá o critério da especialidade, prevalecendo a primeira norma”. (TARTUCE, 2016, p. 41).
Dessa forma, o conflito entre os dispositivos acima expostos deveria ser resolvido em favor daquele contido no Decreto-lei 3.365/1941, por ser especial a previsão nele disposta em relação à prevista no novo Código de Processo Civil.
Sobreleva-se, assim, que a citação em ação de desapropriação direta de um dos cônjuges supre a do outro, ainda que se trate de ação real imobiliária, ante a previsão especial do diploma a disciplinar o procedimento de desapropriação.
Na doutrina, colhe-se a lição de HARADA no sentido de que “os arts. 16 e 17 da Lei de Desapropriação estabelecem normas específicas para a citação, que deverá ser feita por mandado na pessoa do proprietário dos bens; a do marido dispensa a da mulher, qualquer que seja a natureza dos bens [...]” (2014, p. 131).
Entretanto, cumpre mencionar que há autores que consideram tal previsão inconstitucional, entre os quais CUNHA (2012, p. 685-686):
O aludido art. 16 do Decreto-lei nº 3.365/1941 estabelece que a citação do marido dispensa a da mulher. Noutros termos, sendo o proprietário alguém casado, sua citação seria suficiente, sendo desnecessária a citação de sua mulher. Essa regra é inconstitucional, por ofender a garantia do devido processo legal, deixando de conferir à parte um processo justo, com resultado efetivo: se se propõe a demanda apenas em face do marido, a eventual sentença de procedência não seria efetiva, não havendo como ser cumprida, pois não poderia ser imposta contra a mulher, que também é titular do bem, não atingida pela coisa julgada, por não ter sido parte no processo.
O Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial 1.404.085/CE, que consta do informativo 547 da Corte, pôde enfrentar referida questão, cuja ementa do julgado é a seguinte:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. DESAPROPRIAÇÃO POR UTILIDADE PÚBLICA. CITAÇÃO NA PESSOA DO MARIDO.
DISPENSA DA CITAÇÃO DO CÔNJUGE. ART. 16 DO DECRETO LEI 3.365/1941. PREVISÃO ESPECÍFICA.
1. Hipótese em que o Tribunal de origem, com fundamento no art. 10 do CPC, decretou a nulidade da ação expropriatória em virtude da ausência de citação do cônjuge do proprietário do imóvel desapropriado.
2. A solução integral da controvérsia, com fundamento suficiente, não caracteriza ofensa ao art. 535 do CPC.
3. Em se tratando de desapropriação, prevalece a disposição específica do art. 16 do DL 3.365/1941, no sentido de que "a citação far-se-á por mandado na pessoa do proprietário dos bens; a do marido dispensa a da mulher".
4. Conforme dispõe o art. 42 do DL 3.365/1941, o Código de Processo Civil somente incidirá no que for omissa a Lei das Desapropriações. Portanto, havendo previsão expressa quanto à matéria, não se aplica a norma geral.
5. Recurso Especial parcialmente provido.
Verifica-se, assim, que o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o caso concreto acima, prestigiou o entendimento segundo o qual prevalece nas ações de desapropriação a regra específica do art. 16 do Decreto-lei 3.365/1941, ressaltando, ainda, o caráter subsidiário das previsões do Código de Processo Civil em face do disposto no art. 42 do Decreto-lei.
3 CONCLUSÃO
Diante do que foi exposto, não obstante as divergências doutrinárias e o fato de tanto o art. 10 do antigo Código de Processo Civil quanto o art. 73 do novel diploma processual preverem a necessidade de citação do cônjuge em ações reais imobiliárias, o que prevalece no entendimento do Superior Tribunal de Justiça é o disposto no art. 16 do Decreto-lei 3.365/1941, por aplicação do critério da especialidade, no sentido de que a citação de um cônjuge dispensa a do outro.
REFERÊNCIAS
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 27ª ed. São Paulo: Atlas, 2014.
HARADA, Kiyoshi. Desapropriação: doutrina e prática. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 2014.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 36ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 25ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
MOREIRA, Egon Bockmann; GUIMARÃES, Bernardo Strobel. A desapropriação no Estado Democrático de Direito. Em: ARAGÃO, Alexandre Santos de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo (coord.). Direito administrativo e seus novos paradigmas. Belo Horizonte: Fórum, 2008.
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo. 2ª ed. São Paulo: Método, 2014.
TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. 6ª ed. São Paulo: Método, 2016.
Procurador Autárquico do Município de Belo Horizonte/MG. Especialista em Direito Processual pela PUC/MG. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Viçosa.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CIRQUEIRA, Filipe de Oliveira. A citação do cônjuge no processo judicial de desapropriação Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 ago 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47326/a-citacao-do-conjuge-no-processo-judicial-de-desapropriacao. Acesso em: 26 dez 2024.
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