Resumo: O artigo tem por finalidade analisar o direito à igualdade e o disposto na Lei Maria da Penha, Lei nº 11.340/06. Com isto busca-se compreender se a norma é constitucional ou se é discriminatória, ou ainda, se tal discriminação é constitucional. Para tanto, realizou-se pesquisa bibliográfica e jurisprudência. Do resultado da pesquisa conclui-se que a Lei promove o direito constitucional a igualdade.
Palavras chaves: Penal. Lei Maria da Penha. Igualdade.
INTRODUÇÃO
Poderíamos pensar que a constitucionalidade da Lei “Maria da Penha” se encontra pacificada. Ledo engano. Medidas de proteção da mulher vítima de violência doméstica são reiteradamente questionadas por uma sociedade ainda profundamente marcada pelo patriarcalismo e conservadorismo. Cabendo destacar as palavras de Maria Berenice Dias (2007) ao afirmar que: “A violência doméstica é a chaga maior da nossa sociedade e berço de toda a violência que toma conta da nossa sociedade. Os filhos reproduzem as posturas que vivenciam no interior de seus lares”.
A luta pela igualdade material entre homens e mulheres, bandeira dos movimentos sociais feministas, e determinada na Constituição de 1988, será aqui analisada no que concerne ao previsto na Lei 11.340 de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha.
A Lei nº 11.340/06 foi criada com a finalidade de criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, e assim, atender a determinação contida no § 8º do art. 226 da Constituição Federal, bem como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (BRASIL, 2016).
Para tanto, a Lei prevê a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, de modo a concretizar de forma eficaz a previsão legal, e assim, se verifica que o legislador tratou de pensar na criação e execução de meios e modos de proteger a mulher vítima de violência (BRASIL, 2016).
Isto porque é fato público e notório que mulheres de todas as raças e classes sociais são alvo da violência doméstica e vítimas de uma cultura machista a muito arraigada na sociedade brasileira.
Deste modo, e levando tal contexto em relevância, o interprete e o aplicador da lei devem ter sensibilidade e percepção para compreender a mens legis da lei e sua legitimidade frente ao direito a igualdade, previsto no art. 5º, caput, da Constituição Federal.
1 A IGUALDADE ALCANÇADA PELA CONCRETIZAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA
A muito se discute sobre a observância ou não do direito a igualdade na criação da Lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, e mesmo após o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal o tema não se encontra pacificado socialmente, sendo frequentes as alegações de inconstitucionalidade devido à previsão do direito a igualdade na Constituição de 1988.
O direito a igualdade está previsto no art. 5º, caput, da Constituição, que preconiza que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, nos termos da lei”.
É fato que a igualdade não se concretiza por meio de enunciados normativos, exigindo a implementação conjunta do aprimoramento das leis e políticas públicas de intervenção social, de modo a reduzir a distância entre os fatos sociais e o direito. Importante frisar que a desigualdade de gênero pode ser facilmente vislumbrada na medida em que a mulher é objeto de políticas de igualdade em que o homem é o paradigma deste almejado sistema de coisas, e assim, qualquer tentativa de normatização terá por base o discurso do masculino (PEREIRA, 2016, p. 2).
O direito a igualdade é um direito/dever, o que poderia levar a crer, a princípio, que não se pode realizar ações discriminatórias em detrimento de uma pessoa ou segmento social. No entanto, o tratamento legal diferenciado não comporta necessariamente uma inconstitucionalidade, pois a própria Constituição Federal dá tratamento diverso a determinadas situações e pessoas, o que se denomina restrições constitucionais diretas, como por exemplo o tratamento diferenciado dado a mulher e ao homem no que tange a direitos previdenciários e licença maternidade, sendo destaques os artigos 5º, XX, art. 40, art. 143 §2º e art. 201, todos da Constituição Federal de 1988.
A igualdade formal deve ser ultrapassada pelo interprete para se entender a igualdade enquanto realidade a ser vivenciada, único meio de superar a cultura patriarcal e machista consolidada no Brasil. O Professor Kildare Gonçalves Carvalho aduz que:
a igualdade formal, entendida como igualdade de oportunidades e igualdade perante a lei, tem sido insuficiente para que se efetive a igualdade material, isto é, a igualdade de todos os homens perante os bens da vida, tão enfatizada nas chamadas democracias populares, e que, nas Constituições democráticas liberais, vem traduzida em normas de caráter programático, como é o caso da Constituição brasileira (CARVALHO, 2008, p.731).
Em que pese o art. 5º prever igualdade entre homens e mulheres, tal perspectiva beira a utopia diante da visível desproporção encontrada no dia a dia. A observação da história do direito da mulher nos mostra que a ela sempre foi relegado o “não-lugar”, assim entendido por ser uma história de ausência, uma vez que fora submetida ao mando do pai e do marido, marcada por longo período pelo regime da incapacidade jurídica. O movimento feminista busca de fato um lugar de sujeito e para o sujeito (PEREIRA, 2016, p. 3).
A Lei Maria da Penha foi pensada, e é importante frisar, é fruto de mobilização nacional e internacional para sua aprovação, consolidada para apresentar ao mundo um discurso feminino próprio, em que pese ainda fortemente amparado pelo masculino, tendo-o enquanto paradigma a ser alcançado.
Manifestações sociais se mostram essenciais para que as mulheres possam se mostrar presentes no decorrer da história da humanidade e apresentar a realidade em que vivem, destacando as desigualdades, identificando as diferenças e apresentando seus próprios objetivos enquanto sujeito de direitos (PEREIRA, 2016, p. 5).
A Lei “Maria da Penha” é resultado da luta de movimentos sociais em torno do caso de Maria da Penha, formada em Farmácia e Bioquímica em 1966, na Universidade Federal do Ceará. Após reiteradas agressões de seu marido, este somente veio a ser condenado 8 anos depois, em 1991, que, no entanto, conseguiu liberdade. Através da divulgação de seu caso no livro que escreveu, “Sobrevivi...posso contar”, estabeleceu contato com o CEJIL-Brasil (Centro para a Justiça e o Direito Internacional) e o CLADEM-Brasil (Comitê Latino-Americano do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher) (GAMA, 2015).
Em 1998, através desta parceria encaminharam à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) uma petição contra o Estado brasileiro, relatando a impunidade frente a violência doméstica. Por meio do informe 54, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos declarou a responsabilidade do Estado brasileiro por negligência, além de omissão e tolerância em relação à violência doméstica (GAMA, 2015).
A Lei 11.340/06, homenageada com o nome “Maria da Penha”, devido à sua luta pela criação de medidas protetivas às mulheres vítima de violência doméstica, tem o fim de conferir proteção à mulher, de modo a coibir a “ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial” (BRASIL, 2006). Consta no:
[...] uso da força física, psicológica ou intelectual para obrigar outra pessoa a fazer algo que não está com vontade; é constranger, é tolher a liberdade, é incomodar, é impedir a outra pessoa de manifestar sua vontade, sob pena de viver gravemente ameaçada ou até mesmo ser espancada, lesionada ou morta. É um meio de coagir, de submeter outrem ao seu domínio, é uma forma de violação dos direitos essenciais do ser humano. (CAVALCANTI, 2010, p. 11)
Assim, há que se pensar que a igualdade genérica, ao contrário do que se possa imaginar, reforça a desigualdade, ao passo que identificar as diferenças é possibilitar a busca pelo equilíbrio. É certo que uma análise superficial poderia apontar evidente caráter discriminatório, no entanto, não se pode perder de vista a premissa aristotélica disposta na máxima “deve-se tratar os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual na medida de sua desigualdade” (PEREIRA, 2016, p. 5).
Deste modo, o tratamento diferenciado destinado à mulher pela Lei 11.340/06 não fere o direito a igualdade previsto na Constituição Federal de 1988. Tal interpretação se confirmou durante a análise do Habeas Corpus 106212, em que, por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade do art. 41 da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), que dispõe: “Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995” (grifo nosso).
A tese da inconstitucionalidade, devido a violação do direito a igualdade, foi rechaçado sob o seguinte argumento:
O princípio da igualdade não traz em seu bojo a obrigatoriedade de tratar a todos exatamente da mesma forma. Pelo contrário. Esse valor apenas se concretiza quando, as desigualdades são consideradas. Importa, na verdade, está em desigualar os desiguais na medida da sua desigualdade. Essa é a igualdade material (BRASIL. HC 106212, RT v. 100, n. 910, 2011, p. 307-327)
E ainda, a norma cumpre sua função ao dar concretude ao art. 226, parágrafo 8º da Constituição da República, que afirma que: “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. ”
A mulher, ao sofrer a violência no lar, na verdade encontra-se em situação de desigualdade frente ao homem. Analisando sob esta ótica, vai se perceber que a finalidade da lei é justamente promover a igualdade, protegendo a mulher contra discriminação, e assim, um dos principais argumentos pela inconstitucionalidade da norma é justamente a fonte do reconhecimento de sua constitucionalidade. Pois “demagógico, para não dizer cruel, é o questionamento que vem sendo feito sobre a constitucionalidade de uma lei afirmativa” (DIAS, 2007).
Tal pode ser observado no julgado do Tribunal de Justiça de Minas Gerais abaixo, como se nota:
EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL - LEI MARIA DA PENHA - VIAS DE FATO/AGRESSÃO - FILHO CONTRA MÃE - INDEFERIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS - RECURSO MINISTERIAL - PRELIMINAR DE ILEGIMITIDADE ARGUIDA EM SEDE DE CONTRARRAZÕES - REJEIÇÃO - MÉRITO RECURSAL - CONSTITUCIONALIDADE DA LEI E SUFICIÊNCIA PROBATÓRIA - IMPERATIVIDADE NA CONCESSÃO - AUTONOMIA E SATISFATIVIDADE DAS MEDIDAS - RECURSO MINISTERIAL PROVIDO. 1. O art.25 da Lei nº 11.340/2006 prevê a intervenção do Parquet nos processos que tramitam sob a sua égide, razão pela qual está imbuído de legitimidade e interesse recursal. 2. Contrariando as assertivas feitas pelo magistrado, a inserção no ordenamento jurídico de lei que intente alcançar a igualdade material, por meio da exclusão de situações que impeçam o nivelamento entre homens e mulheres e que possibilita, em contrapartida, maior equiparação entre iguais/desiguais não pode ser tachada de inconstitucional. Ora, debater-se em prol da inconstitucionalidade da lei ao argumento de que acatá-la atenta contra o princípio da isonomia constitui, data venia, argumento simplista, haja vista que a lei apenas pretende dar maior eficácia ao principio da igualdade, possibilitando, assim, que tal postulado se torne cada vez mais efetivo. 3. Restando constatada a violência, a palavra da vítima assume sobrelevada importância, não apenas porque os crimes ocorridos no âmbito doméstico e familiar são comumente praticados longe dos olhos de possíveis testemunhas, mas, também, em razão da própria condição peculiar da vítima, razão pela qual são suficientes para balizar o fumus boni iuris e o periculum in mora, razão pela qual não há como chancelar a ingerência estatal na esfera volitiva privada e, consequentemente, negar à vítima a proteção almejada. (TJMG - Apelação Criminal 1.0105.14.017747-5/001, Relator(a): Des.(a) Kárin Emmerich , 1ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 24/03/2015, publicação da súmula em 31/03/2015)
A história nos mostra que a mulher foi subjugada e colocada na situação de vulnerabilidade social, e deste modo, alvo da violência pelo homem. Na aludida decisão do STF, a Ministra Carmem Lúcia aduz que:
O preconceito continua, o preconceito gera raiva, raiva gera violência. E essa violência de dentro de casa é muito pior, porque ela é silenciosa e ela não quebra - e talvez isso, neste habeas corpus, especificamente, se deixa apenas entrevê -, não é a carne de uma de nós, até porque, todas as vezes que uma de nós é atingida, todas as mulheres do mundo são. É a circunstância de que se quebra a psiquê de cada uma de nós. É a autoestima que vai abaixo, é esta mulher que não tem mais condições de cumprir o seu papel com a dignidade - estamos falando, na verdade, da dignidade humana (BRASIL. HC 106212, RT v. 100, n. 910, 2011, p. 307-327)
Para tanto, ações afirmativas, também denominadas discriminações positivas, são estabelecidas pelos textos normativos de modo a diluir a desigualdade de gênero, pois consistem em preceitos balizadores para superação das desigualdades, resguardando a existência de diferenças entre as pessoas (PEREIRA, 2016, p. 9).
CONCLUSÃO
Por todo o exposto, percebe-se que a proteção conferida à mulher vítima de violência doméstica, na Lei 11.340/06, não viola o direito a igualdade previsto na carta constitucional, o que se extrai dos motivos de suas elaboração e das suas finalidades, pois a igualdade verdadeiramente se dá pela proteção da mulher no exercício de seus direitos de autonomia, liberdade e vida digna.
Conferir a devida proteção a mulher e de fato realizar a igualdade prevista constitucionalmente.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Lei Maria da Penha Lei 11.340 de 07 de agosto de 2006.
BRASIL. HC 106212, Relator(a): Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 24/03/2011, processo eletrônico dje-112 divulg 10-06-2011 public 13-06-2011 RTJ vol-00219-01 PP-00521 RT v. 100, n. 910, 2011, p. 307-327.
CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. Teoria do Estado e da Constituição – Direito Constitucional Positivo. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.
CAVALCANTI, Stela Valéria Soares de Farias. A Violência Doméstica como Violação dos Direitos Humanos. Jus Navigand, Teresina, 10, n.901, 21 dez. 2005. Disponível em www.jus.com.br. Acesso julho/2016.
DIAS, Maria Berenice. Lei Maria da Penha, afirmação da igualdade. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, X, n. 46, out 2007. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leituraHYPERLINK "http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=2397"&HYPERLINK "http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=2397"artigo_id=2397>. Acesso em ago 2016.
GAMA, Alessandra de Saldanha da. Lei Maria da Penha esquematizada: Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006, 2ª Ed. Rio de Janeiro: Ed. Ferreira, 2015.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. A desigualdade dos gêneros, o declínio do patriarcalismo e as discriminações positivas. Disponível em http://www.gontijo-
familia.adv.br/tex151.htm Acesso em 08/Agost 2016.
TJMG - Apelação Criminal 1.0105.14.017747-5/001, Relator(a): Des.(a) Kárin Emmerich , 1ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 24/03/2015, publicação da súmula em 31/03/2015
Bacharel em Direito. Analista do Ministério Público de Minas Gerais.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FONSECA, Gisele Adriane. A igualdade concretizada através da proteção a mulher na Lei Maria da Penha Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 ago 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47368/a-igualdade-concretizada-atraves-da-protecao-a-mulher-na-lei-maria-da-penha. Acesso em: 23 dez 2024.
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