RESUMO: O poder constituinte originário é o poder para a criação de uma nova ordem constitucional. Tradicionalmente, diz-se que do poder constituinte originário decorrem o poder constituinte derivado reformador e o poder constituinte derivado decorrente. Atualmente, fala-se também em poder constituinte difuso. Para compreensão do conceito de poder constituinte difuso, necessário é a contextualização do assunto a partir do relacionamento com temas correlatos. Nessa perspectiva, são aspectos fundamentais o neoconstitucionalismo, o controle de constitucionalidade, a força normativa da constituição, o poder constituinte originário e o poder constituinte reformador.
PALAVRAS-CHAVE: neoconstitucionalismo, controle de constitucionalidade, força normativa da constituição, poder constituinte originário, poder constituinte reformador, poder constituinte difuso.
1. INTRODUÇÃO
O poder constituinte originário é aquele que estabelece uma nova ordem constitucional, traçando, pois, na medida em que rompe com o modelo de Estado anteriormente adotado, as linhas mestras da organização política e dos direitos fundamentais.
No entanto, uma vez instituída a Constituição, tem-se que o poder constituinte originário, em que pese permaneça vivo em estado de latência, abre cena ao surgimento do poder constituinte decorrente e do poder constituinte reformador, os quais derivam daquele (poder originário) e são responsáveis, respectivamente, pela elaboração das constituições dos estados membros e pela reforma do texto constitucional.
Ocorre que, além dos citados poder constituinte decorrente e poder constituinte reformador, reconhece-se o chamado poder constituinte difuso. É desse poder constituinte difuso que trataremos no presente artigo, estabelecendo seu conceito a partir de uma prévia análise de elementos jurídicos de contextualização do assunto, a saber, o neoconstitucionalismo, o controle de constitucionalidade, a força normativa da constituição, o poder constituinte originário e o poder constituinte reformador.
2. ELEMENTOS DE CONTEXTUALIZAÇÃO
2.1. Neoconstitucionalismo e força normativa da Constituição
O neoconstitucionalismo é uma etapa da evolução constitucional, isto é, do constitucionalismo. O constitucionalismo, cujos primórdios remontam à antiguidade clássica, traduz-se como sendo a busca pela limitação do poder do Estado, e o neoconstitucionalismo é a expressão dessa busca em um contexto de reaproximação entre direito e moral e de preocupação com o aspecto justo do direito.
Desse modo, a Constituição, antes relegada a um documento de caráter meramente político (pelo menos no que se refere aos países de tradição europeia), passa a ser dotada de normatividade, experimentando, desde então, eficácia jurídica e força vinculante. Uma Constituição dotada, portanto, de uma supremacia a ser resguardada por órgãos jurisdicionais, órgãos estes a quem incumbem o controle de constitucionalidade.
Precisamente aqui reside o ponto de confluência entre o objeto de nosso estudo – poder constituinte difuso – e o neoconstitucionalismo. A Constituição, dotada de força normativa e vinculante, precisa, a um só tempo, ter resguardada sua normatividade e se adaptar às novas realidades sociais.
2.2. Controle de constitucionalidade
A ideia básica relacionada ao controle de constitucionalidade, qual seja, a característica de supremacia da Constituição, é autoexplicativa. A Constituição está no ápice do ordenamento jurídico, e, para o resguardo de sua superioridade, valemo-nos do controle de constitucionalidade.
Em linhas gerais, importa dizer que toda Constituição, seja flexível ou rígida, goza de supremacia material, porquanto trata de assuntos considerados materialmente constitucionais. A supremacia formal, no entanto, restringe-se às constituições rígidas, estas caracterizadas justamente pela exigência de um procedimento complexo de alteração das normas constitucionais. É a essa supremacia formal que se refere o controle de constitucionalidade.
Nessa toada, temos que a ideia de controle de constitucionalidade, consistente na averiguação de compatibilidade existente entre o objeto do controle (uma lei em abstrato, por exemplo) e o texto da Carta Magna, decorre das constituições rígidas e nelas encontra ambientação propícia ao seu desenvolvimento.
O controle de constitucionalidade, portanto, almeja verificar a adequação do objeto do controle de constitucionalidade (seja uma lei, um ato normativo, uma ação ou uma omissão) com as disposições constitucionais, e isso, no Brasil, pode ser realizado pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, seja preventiva ou repressivamente.
2.3. Poder constituinte originário e poder constituinte derivado reformador
Pode-se conceituar poder constituinte originário como sendo o poder para a criação de uma nova ordem constitucional. No escólio do magistério de Pedro Lenza, explica o próprio autor:
O poder constituinte originário (chamado por alguns de inicial ou inaugural) é aquele que instaura uma nova ordem jurídica, rompendo por completo com a ordem jurídica precedente.
O objetivo fundamental do poder constituinte originário, portanto, é criar um novo Estado, diverso do que vigorava em decorrência da manifestação do poder constituinte precedente.[1]
Instituída uma nova constituição, decorrem desse poder constituinte originário o poder constituinte derivado decorrente e o poder constituinte derivado reformador, este responsável pela alteração das disposições constitucionais e aquele, pela elaboração das constituições estaduais. Nas constituições rígidas, o poder constituinte reformador é exercido segundo um rito diferenciado que lhes assegure um procedimento mais dificultoso do que aquele experimentado pelo legislador ordinário.
Nessa perspectiva, a Constituição Federal de 1988, sendo classificada como rígida, estabelece, no artigo 60, o procedimento a ser observado pelo poder constituinte derivado reformador quando da formulação de emendas constitucionais. Estatui-se, entre outras disposições, um rol de legitimados para a propositura do projeto de emenda constitucional, os requisitos formais de votação e deliberação, bem assim a forma especial de promulgação.
Ademais, ao contrário do que ocorre com o poder constituinte originário (que é juridicamente ilimitado), o poder constituinte derivado reformador tem o seu regime estatuído pelo citado poder constituinte originário, o qual lhe impõe limitações de ordem formal (tais são aquelas já referidas no parágrafo anterior), material, temporal e circunstancial.
3. CONCEITO E TEORIZAÇÃO
Para além do poder constituinte derivado reformador, reconhece-se o poder constituinte difuso, do qual trataremos adiante.
Pois bem. Consoante premissas acima fixadas, é possível concluir que o neoconstitucionalismo nos legou a ideia de supremacia da Constituição, e isso significa que a Carta Magna deve ter preservada sua força normativa, de modo a ter eficácia jurídica e não ser alterada segundo as conveniências diuturnas e/ou ordinárias do jogo político e/ou social. Ínsito a essas ideias está o fenômeno do controle de constitucionalidade, que almeja verificar a adequação do objeto do controle (seja uma lei, um ato normativo, uma ação ou uma omissão) com as disposições constitucionais.
Ocorre que, embora não deva ser alterada ordinariamente (o que, em contrapartida, traduz-se no dever de que seja respeitado o teor de suas prescrições por quaisquer instrumentos normativos ou administrativos), a Constituição, até mesmo para se adequar aos novos tempos, precisa implementar mudanças.
É no contexto dessas mudanças que se insere a problemática do poder constituinte difuso.
Ora, em regra, as constituições são modificadas de forma a se promover alteração textual de suas prescrições, o que, no Brasil, uma vez que dispomos de uma constituição rígida, dá-se pela edição de emendas constitucionais. Denominam-se formais tais alterações porque há uma efetiva alteração do texto constitucional, devendo-se, ainda, conforme já ressaltado, respeitar todo um rito pré-estabelecido pela própria Constituição, a exemplo do rol de legitimados e do quórum de votação.
Para além dessas modificações formais, no entanto, são reconhecidas as modificações informais, isto é, aquelas que modificam não o texto da Constituição, mas o significado dos dispositivos nela inseridos.
Eis, aqui, precisamente, o ponto central do estudo a que nos propusemos. Enquanto que as modificações formais são implementadas pelo poder constituinte reformador, as informais derivam do poder constituinte difuso.
O poder constituinte difuso, logo, é o responsável pelos processos informais de modificação da Constituição, isto é, as ditas mutações do texto constitucional.
Poder constituinte difuso, portanto, é aquele que realiza mudanças relacionadas ao conteúdo e ao alcance das normas constitucionais, embora sem alteração do texto formal. Em outras palavras, trata-se do poder de modificar o sentido das disposições constitucionais, às quais, para que se adapte às novas realidades, não obstante permaneçam textualmente inalteradas, ganham nova significação e alcance. A respeito do assunto, são ilustrativas as palavras do Professor Uadi Lammêgo Bulos:
Enquanto o poder originário é a potência, que faz a Constituição, e o poder derivado, a competência, que a reformula, o poder difuso é a força invisível que a altera, mas sem mudar-lhe uma vírgula sequer.[2]
Esse poder constituinte difuso não pode, obviamente, ser exercido de forma a negar a força normativa da Constituição (antes deve buscar a maior efetividade das disposições constitucionais). Além disso, como o próprio nome está a sugerir, é exercido de maneira difusa pelos vários intérpretes e aplicadores da Lei Maior (aliás, as mutações constitucionais são reconhecidas, comumente, por órgãos públicos no exercício do controle de constitucionalidade a que lhes atribui a Constituição Federa), e, como tal, não encontra previsão explícita na Carta nem está sujeito às limitações formais a que se submete o poder constituinte derivado reformador.
4. CONCLUSÃO
Além das alterações formais, a Constituição conhece as mudanças informais. Estas, sem alterar o texto constitucional, promovem modificações em seu sentido e alcance. Essas mudanças são produto do poder constituinte difuso, o qual pode ser conceituado da seguinte maneira: é o poder que realiza mudanças relacionadas ao conteúdo e ao alcance das normas constitucionais, embora sem alteração do texto formal (as chamadas mutações constitucionais). Trata-se, pois, do poder de modificar o sentido das disposições constitucionais, às quais, para que se adapte às novas realidades, não obstante permaneçam textualmente inalteradas, ganham nova significação e alcance.
5. REFERÊNCIAS
LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 15ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
BULOS, Uadi Lammêgo. Apud PAULO, Vicente e ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Constitucional descomplicado. 7. ed. São Paulo: Método, 2011.
BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997.
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos informais de mudança da Constituição: mutações constitucionais e mutações inconstitucionais. São Paulo: Max Limonad, 1986.
[1] LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 15ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 173.
[2] BULOS, Uadi Lammêgo. Apud PAULO, Vicente e ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Constitucional descomplicado. 7. ed. São Paulo: Método, 2011, p. 89.
advogado e Fiscal do Município de Fortaleza com atuação no PROCON. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Pós-graduado em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Aprovado nos concursos públicos para Defensor Público do Estado do Ceará (2015) e Juiz Substituto do Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba (2016).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PORTO, José Cláudio Diógenes. Poder constituinte difuso: contextualização e conceito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 set 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47499/poder-constituinte-difuso-contextualizacao-e-conceito. Acesso em: 23 dez 2024.
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