RESUMO: A Constituição Federal de 1988, sendo classificada como rígida, prevê a forma como as alterações em seu texto possam ser efetuadas. Ocorre que existem também os chamados processos informais de modificação da Constituição. São reconhecidos limites à modificação formal. Os processos informais também se submetem a limitações.
PALAVRAS-CHAVE: processos formais, processos informais, limites.
1. INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988 estabelece um processo formal para a modificação de suas prescrições, consignando um rol taxativo de legitimados para a propositura de emendas constitucionais e requisitos objetivos referentes ao procedimento a ser observado.
No entanto, para além dessa possibilidade de modificação formal, são reconhecidos os processos informais de modificação da Constituição, sobre os quais não há qualquer disposição legal ou constitucional expressa.
Nesse sentido, o presente estudo tem como objetivo averiguar se, a despeito do caráter informal, esses processos reconhecem limitações ao seu exercício. Analisaremos, assim, se aos processos informais são dispensados os mesmos limites estabelecidos para o procedimento formal de modificação, bem como, e independente de se sujeitarem a essas limitações, se são evidenciados limites de outra ordem.
2. ASPECTOS GERAIS
Existe uma tensão inerente ao fenômeno constitucional. Ao tempo em que surge com a pretensão de durabilidade e estabilidade, o Texto Magno, com o passar dos anos, necessita adaptar-se às novas demandas sociais. Trata-se, em outras palavras, do chamado elemento dinâmico e do elemento estático.
Um equilíbrio entre esses dois elementos é de fundamental importância para que a Constituição não perca sua normatividade e aplicabilidade. Aqui, pois, é que se insere a temática dos limites à modificação da Constituição, e, no presente artigo, para além das restrições a alterações formais, trataremos dos limites a que se possam se submeter os processos informais de modificação da Constituição no Brasil contemporâneo.
3. LIMITES À MODIFICAÇÃO FORMAL
Como que promovendo um equilíbrio entre o elemento estático e o dinâmico, as constituições rígidas, na medida em que estabelecem um procedimento mais dificultoso para a alteração das disposições constitucionais, presta um enorme papel à força normativa dos Textos Magnos, a saber: ao passo em que permitem que o texto constitucional seja formalmente alterado pelo poder constituinte reformador, possibilita também que haja limites à reforma constitucional.
Com efeito, sobretudo nas constituições ditas rígidas (tal é o caso da Constituição Federal atual), conhecemos, além dos limites formais à alteração constitucional (o que é próprio mesmo da rigidez constitucional), restrições de ordem material, circunstancial e temporal a essa mesma alteração.
Sem embargo da ausência de previsão de limitações temporais (isto é, aquelas em que há a fixação de um prazo durante o qual a Constituição não pode sofrer alterações), a Carta Republicana de 1988, segundo entendimento pacífico da doutrina, estabelece limitações formais, circunstanciais e materiais.
Os limites circunstanciais estabelecidos pela Lei Maior decorrem da regra expressa segundo a qual a Constituição não pode ser emendada quando da vigência de intervenção federal, estado de sítio e estado de defesa. Vigentes essas situações, portanto, a Constituição Federal não pode sofrer emendas.
Outrossim, conhecemos os limites ditos formais, procedimentais ou implícitos. Esses limites, como já ressaltado, decorrem do fato de que o processo para a alteração das normas constitucionais é mais dificultoso do que aquele exigido para a legislação ordinária. Logo, na medida em que se determina que a Constituição somente pode ser alterada através de um procedimento específico e solene, impede-se implicitamente que alterações deem-se de formas variadas. Referido procedimento se encontra estabelecido no artigo 60 e parágrafos da Carta Magna, donde decorre a subdivisão em limites subjetivos (relacionados a um rol taxativo de legitimados, a exemplo do Presidente da República) e objetivos (referentes aos demais aspectos do procedimento, tal a exigência de dois turnos de votação e aprovação por três quintos dos membros de cada casa do Congresso Nacional).
Por derradeiro, os limites materiais ou substanciais são aqueles que conhecemos por cláusulas pétreas, isto é, matérias sobre as quais o Congresso Nacional, no exercício do poder constituinte reformador, não poderá alterá-las de forma a aboli-las ou, como entende o Supremo Tribunal Federal, atingir-lhes o núcleo essencial.
De forma expressa, identificamos tais cláusulas na regra do artigo 60, § 4º, da Constituição Federal, que estatui que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir” “a forma federativa de Estado”, “o voto direto, secreto, universal e periódico”, “a separação dos Poderes” e “os direitos e garantias individuais”.
A doutrina, no entanto, também se refere a cláusulas pétreas implícitas, sendo tais aquelas que decorrem da disciplina instituída pela Constituição Federal acerca do próprio processo de alteração e suas limitações. Nesse sentido, impende falarmos que as regras que tratam das limitações circunstanciais, dos requisitos formais do processo de emenda e dos limites materiais expressos (todos já examinados), configuram, elas próprias, cláusulas imodificáveis pelo poder constituinte reformador. O Congresso Nacional, assim, não poderia alterar o rol do citado artigo 60, § 4º, da Constituição Federal, porquanto isso implicaria uma dupla revisão inaceitável (modificar-se-ia o rol para, posteriormente, efetuaram-se as mudanças que o constituinte originário proibiu).
Em síntese: o constituinte reformador, quando do procedimento formal de modificação da Constituição, vê-se limitado material, formal e circunstancialmente. A Constituição Federal de 1988, portanto, impõe limites à alteração de seus preceitos.
4. LIMITES À MODIFICAÇÃO INFORMAL
No tópico anterior, tratamos dos limites à modificação da Constituição pelo poder constituinte derivado reformador. No que se refere ao poder constituinte difuso, porém, a doutrina se apresenta um tanto quanto tímida sobre a temática. Eis, pois, o objeto de nosso estudo: averiguar se os processos informais de modificação da Constituição se submetem a limitações e, em caso positivo, quais sejam esses limites.
Tendo em vista que o poder constituinte difuso não muda a literalidade do texto constitucional, somos, e isso é pacífico, pela inexistência de limites formais. Aliás, a própria terminologia que adotamos (processos informais, processos indiretos ou processos não formais de modificação da Constituição) está a demonstrar a obviedade dessa premissa. As mutações constitucionais e inconstitucionais, portanto, não obedecem a limites formais.
Todavia, não obstante a inexistência de limites formais, é possível que reconheçamos limitações de outra ordem? Analisemos.
Tratando das mutações constitucionais, Uadi Lammêgo Bulos, afirmando inexistir um tratamento sistemático em relação ao tema (porquanto a doutrina não teria se aprofundado no assunto), assevera não ser possível precisar os limites a que se sujeitam os processos informais de modificação da Constituição. In verbis:
Em verdade, não é possível determinar os limites da mutação constitucional, porque o fenômeno é, em essência, o resultado de uma atuação de forças elementares, dificilmente explicáveis, que variam conforme acontecimentos derivados do fato social cambiante, com exigências e situações sempre novas, em constante transformação[1].
Na mesma linha, Konrad Hesse ressalta que uma teoria das limitações somente poderia ser formulada se estabelecêssemos uma separação entre direito e realidade, traçando, assim, parâmetros jurídicos pelos quais se determinem os limites aos processos informais de modificação da Constituição. O próprio autor, no entanto, conclui que a pretensão esbarraria em um problema extrajurídico, qual seja, o fato de que a realidade se mostra sempre juridicamente relevante.
Voltando ao pensamento de Uadi Lammêgo Bulos[2], ter-se-ia por conclusão que as mutações informais do Texto Magno não encontram limites em seu exercício. A única limitação que poderia existir às mutações constitucionais, prossegue o autor, seria uma de ordem subjetiva ou psicológica, residente na consciência do intérprete de não efetuar interpretações deformadoras da Constituição. Assim procedendo-se, evitar-se-iam as mutações inconstitucionais.
Por seu turno, Anna Cândida da Cunha Ferraz, tratando da problemática sobre a qual nos detemos, refere-se como que a uma inatingibilidade jurídica dos processos informais, na medida em que o controle de constitucionalidade não logra lhes abarcar. Para a autora, o único tipo de controle a que se submetem as mutações seria o resultante da atuação de grupos e atores sociais em geral. Nesse sentido, esclarecedoras são suas próprias palavras:
...ou porque esse controle não logra atingir o universo de atos e práticas desenvolvidas no âmbito dos poderes constituídos, ou porque pela própria natureza do processo ele se subtrai, sem possibilidade de sanção, a qualquer controle de constitucionalidade, exercido por órgão ou poder constituído. O único tipo de controle que poderá incidir sobre tais mutações é o controle não organizado, isto é, acionado por grupos de pressão, pela opinião pública, pelos partidos políticos etc. [3].
Entendemos pela pertinência das considerações acima consubstanciadas. Os processos informais de modificação da Constituição, decorrentes da realidade social que são, insere-se numa temática de difícil compreensão. A realidade é múltipla e dinâmica, e isso decerto interfere nos processos indiretos ora em exame.
Todavia, ao nosso sentir, é mister não nos esquecermos de que a concretização da Lei Maior dá-se principalmente pela interpretação orgânica, e os órgãos estatais, sobretudo quando do exercício do poder constituinte difuso, necessitam de limites a lhes permitir uma atuação legítima.
Mormente quanto ao Poder Judiciário, a quem se reconhece uma jurisdição constitucional e um controle de constitucionalidade caracterizados pela obrigatoriedade e definitividade, a questão se mostra de maior importância ainda. Expliquemo-nos: o neoconstitucionalismo possibilitou uma grande abertura para a interpretação constitucional, e o ativismo judicial decorrente dessa abertura, deveras quando importar em declaração de mutações constitucionais, não pode significar um agir descortinado de quaisquer parâmetros.
Ora, conforme se depreende das elucubrações que já fizemos, as mutações inconstitucionais, porquanto não se adequam à letra nem ao espírito da Constituição, devem ser rechaçadas. Acontece que é o Poder Judiciário que, com força definitiva, dirá se houve ou não mutação. Uma mudança informal que contradiga literal disposição constitucional poderia, por essa ótica, ser declarada constitucional por entenderem os magistrados pela não violação ao espírito da Carta Magna. Há, pois, pelo menos do ponto de vista da função jurisdicional do Estado, uma línea tênue entre mutação constitucional e mutação inconstitucional.
Do exposto, principalmente considerando a atuação do Judiciário quando do exercício do poder constituinte difuso, entendemos, em dissenso às opiniões trazidas à baila, que, para além de um limite de consciência ou de controle de natureza social, é possível, conquanto sem qualquer pretensão de esgotamento da matéria, traçarmos limites aos quais os processos informais se sujeitem.
Nesse sentido, inclusive com supedâneo na doutrina dos próprios autores de quem discordamos, julgamos que um primeiro limite se mostra intransponível, a saber: para serem consideradas constitucionais, é imprescindível que as mutações não contrariem o texto nem o espírito da Constituição. Logo, sob a perspectiva da constitucionalidade, são inaceitáveis os costumes contra constitutionem ou mutações decorrentes de interpretação deformadora do Texto Constitucional.
De igual modo, em conformidade com o pensamento de Uadi Lammêgo Bulos[4], as mutações se desenvolvem em momentos cronologicamente distintos, perante situações diferentes daquelas que ensejaram a formação do dispositivo constitucional. Assim, tanto no que se refere à mutação por práticas constitucionais como no que diz respeito às mutações por interpretação, impende reconhecermos, ao nosso olhar, um limite de ordem temporal, segundo o qual um dado dispositivo não pode ser objeto de modificação informal sem que, para tanto, tenha decorrido lapso temporal suficiente de maturação de suas prescrições.
Baseando-se, ainda, no pensamento de Uadi Lammêgo Bulos[5] a respeito das características dos processos informais de modificação da Constituição, entendemos também pela ocorrência de uma limitação de ordem fática, consistente na natureza da mutação constitucional. Assim, uma vez que as mudanças ocorrem natural e espontaneamente, mostra-se como limite à mutação por interpretação a inexistência de substrato fático que lhe dê embasamento.
Outrossim, cremos que as limitações circunstanciais de que tratamos anteriormente, centradas no fato de que a Constituição Federal não pode ser emendada quando do estado de sítio, estado de defesa ou intervenção federal, também se aplicam às mutações constitucionais quando estas for decorrentes de interpretação. Ao nosso olhar, portanto, as mutações por interpretação constitucional, sob pena de provocarem modificações indesejadas e proibidas ao próprio poder constituinte reformador, não devem ser declaradas quando da vigência das circunstâncias a que a nos referimos.
Por fim, compreendemos que as mutações, quer por interpretação quer pela ocorrência de práticas constitucionais, devem, para que possam ser qualificadas pela constitucionalidade, respeitar as cláusulas pétreas e os princípios estruturantes da Carta Magna (limitações materiais), a exemplo de que temos a separação de poderes e o princípio democrático. Aliás, quanto a estes (separação de poderes e princípio democrático), convém ressaltarmos que guardam íntima relação com os limites de ordem fática tratados há pouco. Conquanto exerça um papel não raro contra majoritário, julgamos que o Poder Judiciário, senão por afronta à premissa majoritária e consequentemente à separação de poderes, deve se abster de mutações que não embasadas em modificações fáticas de cunho majoritário.
5. CONCLUSÃO
Tendo por base o objetivo a que nos propusemos, qual seja, verificarmos a existência ou não de limites aos processos informais de modificação da Constituição, temos por conclusão, a despeito da inexistência de restrições formais, a afirmação de variados limites.
Sob pena de serem consideradas inconstitucionais (modalidade a que não se deve reconhecer guarida jurídica), as mutações não podem contrariar o texto nem o espírito da Constituição, e isso implica considerarmos, numa perspectiva tangencial entre constitucionalidade e inconstitucionalidade, a existência de limitações ao poder constituinte difuso.
Conquanto sem pretensão de esgotamento da matéria, referimo-nos, aqui, que as mutações constitucionais, para que assim sejam consideradas (isto é, constitucionais), devem obedecer a uma premissa fática, um lapso temporal que permita a maturação da norma constitucional, aos limites circunstanciais de que trata a Lei Maior (isso quando de mutações por interpretação constitucional), bem assim às cláusulas pétreas e aos princípios estruturantes do sistema constitucional (a exemplo da separação de poderes e do princípio democrático). Reconhecemos, pois, limites fáticos, temporais, circunstanciais e materiais.
Outrossim, não obstante devam ser rechaçadas (sob pena de afronta à força normativa da Constituição), as mutações inconstitucionais, na medida em que se lhe reconhece uma existência fática inegável e independente de sua predisposição a se coadunar ou não com o Texto Magno, também estariam, ao nosso sentir, abarcadas pelos limites fáticos e temporais (embora a elas não caiba falarmos de limites circunstanciais ou materiais).
Por fim, tracemos algumas parcas linhas sobre o risco de que o Poder Judiciário chancele mutações inconstitucionais. Vejamos:
A Constituição é elaborada pelo poder constituinte originário, o qual define alguns temas como “imutáveis” (cláusulas pétreas) e, quanto aos demais, estabelece a forma pela qual dá-se o processo de mudança. Temos, então, o embate entre duas sociedades separadas pelo tempo: uma, que elaborou a constituição e, no bojo de um momento ímpar, disse quais temas não poderiam ser alterados; outra, que, através de seus representantes eleitos, poderá realizar emendas ao texto constitucional. Ora, nos dois casos, temos o respeito a uma premissa majoritária. Possíveis mutações inconstitucionais que venham a ser chanceladas pelo Poder Judiciário configurarão, em verdade, exceção a essa premissa majoritária, o que, dependendo do que esteja em jogo, poderá não somente intensificar a tensão entre os poderes, como também gerar uma crise perigosa de legitimidade entre a sociedade e a Corte Constitucional.
6. REFERÊNCIAS
BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997.
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos informais de mudança da Constituição: mutações constitucionais e mutações inconstitucionais. São Paulo: Max Limonad, 1986.
HESSE, Konrad. Apud BULOS, Uadi Lammêgo. Op Cit.
[1] HESSE, Konrad. Apud BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 88.
[2] BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 91.
[3]FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos informais de mudança da Constituição: mutações constitucionais e mutações inconstitucionais. São Paulo: Max Limonad, 1986, p. 213-214.
[4] BULOS, Uadi Lammêgo. Op Cit., p. 61.
[5] BULOS, Uadi Lammêgo. Op Cit., p. 61.
advogado e Fiscal do Município de Fortaleza com atuação no PROCON. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Pós-graduado em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Aprovado nos concursos públicos para Defensor Público do Estado do Ceará (2015) e Juiz Substituto do Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba (2016).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PORTO, José Cláudio Diógenes. Limites aos processos informais de modificação da constituição Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 set 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47507/limites-aos-processos-informais-de-modificacao-da-constituicao. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: WALKER GONÇALVES
Por: Benigno Núñez Novo
Por: Mirela Reis Caldas
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
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