RESUMO: Este trabalho analisa o Marco Civil da Internet e demonstra que a legislação atual permite que as autoridades investigatórias – polícias e o Ministério Público – tenham acesso direto, para instrução de investigações criminais, aos dados cadastrais de usuários da internet.
PALAVRAS-CHAVE: Lei 12.965/14. Marco Civil da internet. Acesso a dados cadastrais. Polícias e Ministério Público.
1. INTRODUÇÃO
De acordo com a Lei 12.965, de 23 de abril de 2014, conhecida como Marco Civil da Internet, o endereço de protocolo de internet (endereço IP[1]) é o código atribuído a um terminal de uma rede para permitir sua identificação, definido segundo parâmetros internacionais (artigo 5º, III). Todo computador que acessa a Internet possui um identificador, conhecido como endereço IP.
O Marco Civil da Internet dividiu os provedores em duas categorias: provedores de conexão à internet e provedores de aplicação de internet.
O provedor de conexão é a pessoa jurídica fornecedora de serviços que consiste em possibilitar o acesso de seus consumidores à internet, isto é, estabelecendo a conexão dos terminais de seus clientes à internet. Em nosso país os mais conhecidos são: Net Virtua, Brasil Telecom, GVT, Oi e operadoras de telefonia celular como TIM, Claro e Vivo (artigo 5º, VI e artigo 13).
Já os provedores de aplicação de internet são qualquer empresa, organização ou grupo que forneça um conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à internet. Os provedores de aplicação mais populares são Gmail (Google), Yahoo, Hotmail (Microsoft) e redes sociais como Facebook, Twitter e Google (artigo 5º, VII e artigo 15).
Partindo do endereço de protocolo de internet (IP), data e hora da conexão, as autoridades investigatórias conhecerão a empresa provedora de conexão ou de conteúdo de internet, e, a analisando os dados de que elas dispõem, identificarão o autor do delito praticado pela internet. Em outros casos, por exemplo, será necessário identificar o endereço vinculado a um e-mail para lançar luzes sobre a autoria de um crime.
Este breve estudo analisará sistematicamente, com base na Constituição Federal e no Marco Civil da Internet, se as autoridades investigatórias – polícias e o Ministério Público – podem requisitar diretamente dos provedores de conexão e de conteúdo os dados cadastrais dos usuários da internet, ou se é necessária autorização judicial para tal fim.
2. PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DOS DADOS CADASTRAIS
Os dados cadastrais dos usuários de serviços de telecomunicações – incluindo o número de IP[2] – não estão protegidos pela cláusula de reserva jurisdicional, pois não se referem a informações sobre status, modus vivendi ou teor de conversações da pessoa. A proteção constitucional desses dados não está abrangida na inviolabilidade das comunicações de dados (artigo 5º, XII), mas na proteção do sigilo dos dados como projeção do direito à privacidade (artigo 5º, X)[3].
Há precedente do Supremo Tribunal Federal[4] no sentido de que a proteção a que ser refere o artigo 5º, XII, da Constituição Federal assegura a inviolabilidade dos dados, não dos dados em si mesmos, ainda quando armazenados em computador. O STJ assentou que “a simples titularidade e o endereço do computador do qual partiu o escrito criminoso não estão resguardados pelo sigilo de que cuida o inciso XII do artigo 5º da Constituição da República, nem tampouco pelo direito à intimidade prescrito no inciso X, que não é absoluto”.
Outro argumento importante é que, a partir do momento em que determinada pessoa expôs livremente seu pensamento na Internet, ela poderá ser investigada legalmente pelas autoridades brasileiras caso tenha praticado algum crime. A lei, nesse passo, deverá facilitar a apuração das infrações penais praticadas na Internet, uma vez que a Constituição Federal veda o anonimato.
Se por um lado o conhecimento desses dados, por autoridades públicas no exercício de seus deveres funcionais, não atinge de fato a intimidade ou a vida privada de ninguém[5], por outro lado, em muitos casos, somente com a obtenção dos dados cadastrais referentes ao endereço do IP será possível avançar nas investigações e identificar o autor do delito. Logo, trata-se de medida indispensável à efetividade das investigações e de mínima lesividade aos interesses do investigado, o que demonstra a proporcionalidade do permissivo legal e legitima a atuação das autoridades públicas.
3. DISPOSITIVOS DO MARCO CIVIL DA INTERNET SOBRE O ACESSO AOS DADOS CADASTRAIS DOS USUÁRIOS
Não há dúvidas de que o Marco Civil da Internet prestigiou a proteção da privacidade, intimidade e dados pessoais em seus princípios e dispositivos legais.
Nesse passo, o artigo 10, §1º da referida lei dispõe que o provedor somente será obrigado a disponibilizar os registros de conexão e de acesso a aplicações, de forma autônoma ou associados a dados pessoais ou a outras informações que possam contribuir para a identificação do usuário ou do terminal, mediante ordem judicial.
O §3º do mesmo artigo, no entanto, diz que a preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas não impede o acesso aos dados cadastrais que informem qualificação pessoal, filiação e endereço, na forma da lei, pelas autoridades administrativas que detenham competência legal para a sua requisição.
Justamente na norma geral que trata da proteção de registros, dados pessoais e comunicações privadas, a lei expressamente ressaltou o poder de requisição das autoridades administrativas de obter diretamente os dados que informem a qualificação pessoal, filiação e endereço dos investigados, em outros termos, dados que possam identificar o autor do fato investigado, em consonância com a diretriz constitucional da liberdade do pensamento, sendo vedado o anonimato (CF 88, artigo 5º, V).
Assim, por exemplo, se o Ministério Público precisar obter o número de determinado endereço de IP de um provedor de aplicação (exemplo: Gmail ou Facebook) ou os dados cadastrais de um provedor de conexão (exemplo: Net Virtua ou Claro), para instrução de uma investigação criminal, poderá requisitar tais dados diretamente, com fundamento no artigo 10, §3º do Marco Civil da Internet.
Por outro lado, se a autoridade administrativa pretender obter o conteúdo de determinada troca de e-mails, deverá fazê-lo judicialmente. Isso porque o conteúdo de um e-mail constitui comunicação privada para a lei, a qual somente poderá ser disponibilizada mediante ordem judicial (artigo 10, §2º).
A interpretação sistemática dos artigos 13 e 15 do Marco Civil da Internet, que tratam, respectivamente, da guarda de registros de conexão e da guarda de registros de acesso a aplicações de internet na provisão de aplicações, levam à conclusão inequívoca de que a lei não impôs reserva de jurisdição ao acesso dos dados cadastrais dos investigados.
Com efeito, apesar da péssima técnica legislativa, percebe-se que o legislador utilizou os termos “autoridade administrativa ou policial ou Ministério Público” de um lado, e “requerente” ou “parte interessada” de outro, para tratar de situações distintas.
Assim, as autoridades administrativas podem requisitar diretamente o acesso aos dados cadastrais que informem qualificação pessoal, filiação e endereço (artigo 10, §3º). Somente devem requerer judicialmente que os registros de conexão e de acesso a aplicações de internet sejam guardados por prazo superior ao previsto na lei (artigos 13, §2º e 15, §2º).
De outra parte, o particular, denominado pela lei de “requerente” ou “parte interessada” somente terá acesso aos dados cadastrais de determinado usuário da internet para formar conjunto probatório em processo judicial cível ou penal, mediante prévia autorização judicial, não podendo requerer judicialmente que os registros de conexão e de acesso a aplicações de internet sejam guardados por prazo superior ao previsto na lei, nos termos dos artigos 13, §5º, 15, §3º e 22 do Marco Civil da Internet.
Uma interpretação que exija sempre ordem judicial para o acesso exclusivo dos dados cadastrais dos investigados pelas polícias ou Ministérios Públicos tornaria completamente inútil a ressalva contida no artigo 10, §3º do Marco Civil da Internet.
Com efeito, embora tenha consagrado a proteção da intimidade, a lei prestigiou também o poder requisitório das autoridades administrativas: utilizou a expressão “requisição judicial de registros” na Seção IV para os demais casos, aqueles em que a “parte interessada”, ou seja, o particular, que não possui tal poder legal, deverá necessariamente formular requerimento judicial.
Esse poder conferido às autoridades policiais e ao Ministério Público, ressalte-se, não é absoluto. A divulgação indevida de dados cadastrais pelas autoridades administrativas pode configurar o crime previsto no artigo 21, parágrafo único da Lei 12.850/2014.
4. CONCLUSÃO
O Marco Civil da Internet não estabeleceu cláusula de reserva de jurisdição para o acesso de dados cadastrais pelas autoridades policiais e membros do Ministério Público – inclusive referentes ao endereço do IP – para instrução de investigações criminais.
Apesar dos erros de técnica legislativa, a interpretação constitucional e sistemática da Lei 12.965/2014 não deixa dúvidas: a novel legislação preservou o poder de requisição das autoridades administrativas em relação aos dados cadastrais dos usuários de internet.
O endereço de IP é considerado como dado cadastral, uma vez que se refere à identificação de determinado computador que acessou a internet, indispensável à identificação da autoria do delito.
Além disso, nos casos em que o próprio investigado optou conscientemente por postar determinado conteúdo criminoso na internet (como imagens pornográficas de crianças ou mensagens racistas), a obtenção do endereço do IP pelas autoridades investigatórias em nada afeta a intimidade ou vida privada, já que a Constituição Federal brasileira permite a manifestação livre do pensamento, porém veda o anonimato.
Será extremamente importante que o Supremo Tribunal Federal reconheça de uma vez por todas o poder requisitório das polícias e dos Ministérios Públicos na obtenção dos dados cadastrais dos usuários da internet.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 29ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012.
BRASIL, Ministério Público Federal. 2ª Câmara de Coordenação e Revisão. Roteiro de atuação: crimes cibernéticos. 2ª ed. rev. – Brasília: MPF/2ª CCR, 2013.
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Sigilo de dados: o Direito à privacidade e os limites à função fiscalizadora do Estado. Revista da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, 88:452, 1993.
GARCIA, Emerson. Ministério Público. 3ª ed – Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 8ª ed – Rio de Janeiro: Forense, 1999.
MIRABETE, Julio Fabrini. Processo Penal. 10ª ed. rev. e atual – São Paulo: Atlas, 2000.
ROSSINI, Augusto. Informática, Telemática e Direito Penal. São Paulo: Memória Jurídica, 2004.
[1] Trata-se de um número inteiro de 32 bits, separado em quatro porções de 8 bits cada. BRASIL, Ministério Público Federal. 2ª Câmara de Coordenação e Revisão. Roteiro de atuação: crimes cibernéticos. 2ª ed. rev. – Brasília: MPF/2ª CCR, 2013, p. 23.
[2] Sobre a reserva de jurisdição e a obtenção de dados cadastrais de usuário de computador, o STF julgará o Recurso Extraordinário nº 772.319/DF, cujo relator é o Min. Celso de Mello.
[3] Conforme parecer da Subprocuradora-Geral da República Helenita Caiado de Acioli, em parecer ofertado nos autos do HC 83.338/DF, Rel. Ministro Hamilton carvalhido, Sexta Turma, julgado em 29/09/2009, DJe 26/10/2009.
[4] STF. Plenário. RE 418.416/SC. Rel.: Ministro Sepúlveda Pertence. 10/05/2006, maioria. DJ, 19 dez. 2006.
[5] Registre-se que tramita no STF a ADI 5.063/DF, que julgará, dentre outros pedidos, se o artigo 15 da Lei 12.850/2013 (que define organização criminosa e dispõe sobre investigação criminal), que permite ao delegado de polícia e ao Ministério Público requisitarem diretamente dados cadastrais dos investigados, é constitucional.
Mestre em Direito Público pela PUC-SP, Procurador da República.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, Paulo Gomes Ferreira. Apontamentos sobre o acesso aos dados de usuários da internet para instrução de investigações criminais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 out 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47631/apontamentos-sobre-o-acesso-aos-dados-de-usuarios-da-internet-para-instrucao-de-investigacoes-criminais. Acesso em: 23 dez 2024.
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