RESUMO: Este trabalho busca uma análise estritamente técnica e jurídica sobre a conduta do Deputado Federal Jair Bolsonaro, que, em discurso no Plenário da Câmara e em entrevista concedida a um jornal, afirmou, referindo à Deputada Maria do Rosário, que “não a estupraria, porque ela não merece”. Em que pese o teor reprovável das palavras, a análise será feita sob o aspecto estritamente formal, analisando-se se há tipicidade entre o fato e o tipo penal previsto no artigo 286 do CP e o artigo 140 do CP. Por fim, será abordada também a questão da imunidade parlamentar, trazendo-se sempre o posicionamento da Suprema Corte.
PALAVRAS-CHAVE: Deputado Jair Bolsonaro. Deputada Maria do Rosário. Incitação ao crime. Injúria. Imunidade parlamentar.
INTRODUÇÃO: Recentemente foi veiculado nos canais de comunicação que o STF havia recebido a denúncia e queixa-crime contra o Deputado Jair Bolsonaro, pela suposta prática dos delitos de incitação ao crime e de injúria. A denúncia foi oferecida pela Procuradoria da República e a queixa-crime, pela própria vítima, a Deputada Maria do Rosário.
O presente estudo buscará uma análise imparcial da conduta do deputado, com observância de todas as peculiares que rodeiam o caso, como por exemplo, a questão da imunidade material dos parlamentares. Serão trazidos, também, os ensinamentos da melhor doutrina pátria, o que demonstra que a análise é, de fato, técnica, longe de se configurar qualquer preferência partidária.
Ora, como se sabe, o Direito Penal é regido pelo Princípio da Legalidade, que determina que a lei, quando da cominação de crimes, deve ser clara, estrita, não deixando espaço para subjetivismos, interpretações ampliativas ou dúbias. Ou seja, quando da análise da tipicidade do ato, a conduta perpetrada deve se encaixar de forma perfeita ao fato descrito na norma penal, sob pena de violação aos primados do Direito Penal.
Nesse contexto, de observância aos princípios basilares do Direito Penal, será analisado ponto a ponto da conduta de Bolsonaro, enriquecendo-se, com isso, o debate jurídico acerca do Direito Penal.
1. DOS FATOS
Conforme narrados nos canais de comunicação, em 2014 o Deputado Federal Jair Bolsonaro, em discussão no plenário da Câmara afirmou que, a também Deputada Federal Maria do Rosário, “não merecia ser estuprada”, pois era muito feia.
No dia seguinte, durante uma entrevista concedida em seu gabinete, o Deputado reafirmou as declarações, dizendo que Maria do Rosário “não merece ser estuprada por ser muito ruim, muito feia, não faz meu gênero”. Asseverou ainda que se caso fosse estuprador “não iria estuprá-la porque ela não merece”.
O fato ocorrido na Câmara se deu após o discurso da Deputada Maria do Rosário em defesa das vítimas da ditadura militar. Ato contínuo, Bolsonaro, que é militar da reserva, subiu à tribuna a fim de rebater e criticar as alegações da Deputada.
Diante do ocorrido, a Procuradoria da República ofereceu denúncia contra o Deputado Federal pela suposta prática do crime de incitação ao crime (art. 286 do CP) e a Deputada ofereceu queixa-crime sob a alegação de que teria sido vítima de injúria (art. 140 do CP). Em junho deste ano o STF recebeu ambas as petições acusatórias.
A defesa do Bolsonaro alega que o deputado não poderia ser responsabilizado em razão da imunidade parlamentar. Mas, ainda que não houvesse a imunidade, não restou configurado na hipótese o delito de incitação ao crime, vez que jamais houve intenção de incentivar outras pessoas à prática do estupro. Afirma também que o deputado é autor de vários projetos que aumentam o rigor penal para os autores do crime de estupro, demonstrando-se que não haveria como incitar um crime ao qual ele mesmo repudia e pugna por punições mais severas, seria incongruente.
Após a decisão do Supremo, Bolsonaro afirmou na Câmara que a afirmação dele foi um "ato-reflexo" e que a sociedade precisa ser informada sobre a verdade dos fatos. "Vou ser realmente julgado pelo Supremo Tribunal Federal, basicamente, por apologia ao estupro. Foi uma retorsão o que eu falei para ela [deputada], foi um ato-reflexo. As desculpas que eu peço é para a sociedade, que foi desinformada sobre a verdade dos fatos", disse Bolsonaro. (Disponível em: http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/06/bolsonaro-vira-reu-por-falar-que-maria-do-rosario-nao-merece-ser-estuprada.html).
O STF, por 4 votos a 1 recebeu a denúncia e queixa. O relator do caso, o Ministro Luiz Fux afirmou que as alegações do deputado teriam o condão de menosprezar a dignidade das mulheres, ao implicitamente referir-se ao estupro como algo bom, que algumas mulheres mereciam e outras não. É como se houvesse um merecimento em ser vítima de estupro.
2. ANÁLISE DO CRIME DE INCITAÇÃO AO CRIME – ART. 286 DO CÓDIGO PENAL
O crime de incitação ao crime está previsto no art. 286 do CP, inserido no Título IX que trata dos crimes contra a paz pública.
Art. 286 - Incitar, publicamente, a prática de crime:
Pena - detenção, de três a seis meses, ou multa.
Portanto, o bem jurídico a ser tutelado pela normal penal é a paz pública, que busca proteger o bem-estar social, a convivência pacífica.
O núcleo do tipo penal corresponde ao verbo “incitar”, que significa impelir, mover instigar, estimular, fomentar. (MICHAELIS, Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo, Melhoramentos, 1998, página 1140). Esse ato deve se dar publicamente, ou seja, deve alcançar um número indeterminado de pessoas. Nesse sentido, pode até se dirigir a uma única pessoa, mas se praticado na presença de várias pessoas, preenche-se o requisito “publicamente”. Perceba-se que o bem a ser tutelado é a paz pública, então o fato deve ter esse condão de atingir uma quantidade de pessoas, apto a colocar em risco a paz social.
Destrinchando ainda mais o tipo penal, exige-se que a incitação se refira a crime, ou seja, não haverá o crime do art. 286 quando houver a incitação à prática de contravenção penal.
Como último requisito tem-se a incitação a crime determinado, ou seja, fatos indeterminados ou genéricos não configuram o delito. Nas palavras de Fragoso, “por fato determinado entende-se, por exemplo, um certo homicídio ou um certo roubo, e não roubos ou homicídios in genere” (FRAGOSO, Heleno. Lições de Direito Penal – vol. II. Ed. Forense, página 275).
Nesse sentido ensina Rogério Greco: “Além de dizer respeito tão somente a crimes, esses devem ser determinados pelo agente, a exemplo daquele que incita a multidão a linchar um delinquente que fora preso em flagrante ou, mesmo, a quebrar as vidraças das lojas no centro da cidade. Enfim, a incitação deverá ser dirigida à prática de determinada infração penal, não se configurando o delito quando houver uma incitação vaga, genérica.” (GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. Editora Impetus. Rio de Janeiro, 2013, página 860).
O elemento subjetivo do tipo é o dolo, ou seja, deve haver a intenção/vontade de incitar as pessoas a praticar um determinado crime, estando ciente de que sua conduta se dirige a um número indeterminado de pessoas.
Na conformidade do art. 18, parágrafo único do CP, em não havendo previsão do crime na modalidade culposa, o fato só se pune se praticado com dolo. Portanto, o crime do art. 286 do CP é punido apenas na forma dolosa.
Art. 18 - Diz-se o crime:
Crime doloso
I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;
Crime culposo
II - culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.
Parágrafo único - Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente.
3. ANÁLISE DA SUPOSTA PRÁTICA DO DELITO DE INCITAÇÃO AO CRIME
Primeiramente, registre-se que, este artigo não tem qualquer conotação política, restringindo-se a uma análise estritamente técnico-jurídica.
Conforme narrado no primeiro ponto deste artigo, em síntese, a conduta de Bolsonaro se deu em afirmar que a Deputada Federal Maria do Rosário não merecia ser estuprada, pois era muito feia.
Pelo que se constatou da análise do tipo penal do art. 286 do CP, são elementos do crime:
a) Incitar, estimular, acalentar;
b) De forma pública, ou seja, atingindo um número indeterminado de pessoas;
c) À prática de crime;
d) À prática de fato determinado;
Em uma análise estritamente técnica, seguindo-se os ensinamentos da doutrina, a conduta de Bolsonaro, em pese o teor repugnante das suas palavras, estas não são aptas a fazer incidir o crime do art. 286 do CP. Perceba-se, o tipo exige que o autor faça a incitação à prática de fato determinado, se o fato for genérico ou indeterminado o delito restará afastado.
Observe-se que Bolsonaro, não incitou a prática do crime de estupro. A intenção, ao que nos parece, foi a de humilhar a Deputada Federal, atingindo-lhe em sua honra subjetiva, ou seja, o intuito era o de atingir sua autoestima enquanto mulher.
Não nos parece que houve dolo em estimular que homens venham a estuprar mulheres. Nesse aspecto cabe uma observação: Em que pese o argumento da defesa de que o Deputado é autor de projetos de lei que intensificam o rigor penal aos autores do crime de estupro, para nós esse argumento é inócuo, na medida em que, embora o deputado seja autor de tais projetos, nada impede que ele mesmo, de forma incongruente, venha a estimular pessoas a praticar esse crime. Ou seja, para nós, o delito de incitação ao crime restou afastado diante da ausência de dois requisitos: a) incitação à prática de crime determinado; b) dolo.
A doutrina pátria nos ensina: “Para que se caracterize o delito não basta que o agente incite publicamente a prática de delitos de forma genérica, devendo apontar fato determinado, como por exemplo, conclamar publicamente titulares de determinado direito a fazer justiça cm suas próprias mãos, o que constitui o crime de exercício arbitrário das próprias razões”. (SANCHES, Rogério. Manual de Direito Penal – Parte Especial. Editora JusPodivm. 2015, página. 617).
Portanto, em uma análise estritamente técnica, repita-se, desvinculada de valores morais ou juízos de valor acerca da conduta do deputado, o fato não se enquadra no tipo previsto no art. 286 do CP. Como já afirmado, não há uma incitação à prática do crime de estupro, faltou neste ponto o requisito da especificidade, faltou um direcionamento à estimulação das pessoas a praticar o crime de estupro, em nenhum momento houve a incitação para que as pessoas viessem a praticar um determinado estupro. Nesse sentido, importa citar mais uma vez os ensinamentos de Fragoso: “por fato determinado entende-se, por exemplo, um certo homicídio ou um certo roubo, e não roubos ou homicídios in genere” (FRAGOSO, Heleno. Lições de Direito Penal – vol. II. Ed. Forense, página 275).
Portanto, pelo exposto, considerando o teor dos ensinamentos dos abalizados doutrinadores, não nos parece ter ocorrido, na hipótese, o delito de incitação ao crime. Em que pese tal posicionamento, registre-se que embora não haja a imputação deste crime, o teor das palavras do deputado foi repugnante, vil. Não se justifica que uma pessoa pública, formadora de opiniões, um dos responsáveis pela elaboração da legislação pátria, use de uma retórica tão preconceituosa e desumana. Bolsonaro talvez não tenha dimensão do sofrimento causado a uma vítima do crime de estupro, nem muito menos compartilhe do medo que grande parte das mulheres tem de virem, um dia, a ser vítima desse crime, diga-se, para nós, um dos mais graves previstos no ordenamento pátrio. Ainda que se alegue que suas palavras se deram em momento de euforia, movida pelo calor da discussão, o teor de seus argumentos não se justifica em qualquer hipótese. Entretanto, ainda que moralmente reprovável - cabendo, certamente, a análise de questões quanto à quebra do decoro parlamentar - de acordo com os ensinamentos da doutrina, para nós, a conduta não corresponde ao delito de incitação ao crime.
4. ANÁLISE DA SUPOSTA PRÁTICA DO CRIME DE INJÚRIA
Conforme já exposto, para nós não restam dúvidas da configuração do crime de injúria - art. 140 do CP:
Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
O crime de injúria encontra-se previsto no Capítulo V, que trata dos crimes contra a honra, juntamente com os delitos de calúnia e difamação. Estes últimos atingem a honra objetiva da vítima, enquanto que a injúria, a honra subjetiva. Portanto, o crime de injúria atinge a autoestima da pessoa, sua dignidade e decoro.
Nesse contexto, repita-se, mais uma vez, o teor das palavras de Bolsonaro: “Há poucos dias, tu me chamou de estuprador, no salão verde, e eu falei que não estuprava você, porque você não merece”.
No dia seguinte, em entrevista concedida em seu gabinete ao jornal "Zero Hora", Bolsonaro reiterou as declarações, dizendo que Maria do Rosário “não merece ser estuprada por ser muito ruim, muito feia, não faz meu gênero”. E acrescentou que, se fosse estuprador, "não iria estuprá-la porque ela não merece".
Fácil perceber que é notória a intenção do deputado em desqualificar os atributos físicos da Deputada Maria do Rosário, seu intuito foi o de atingi-la em sua honra subjetiva. No início de sua fala, Bolsonaro afirma que a deputada há alguns dias havia lhe chamado de estuprador. Em razão disso ele quis humilhá-la, afirmando que ainda que fosse estuprador não a estupraria, ou seja, ele intencionou desqualificar por completo os atributos físicos e estéticos da Deputada.
Sobre esse aspecto, interessa pontuar que, conforme pesquisa realizada pelo IPEA, a maior parte das vítimas do crime de estupro são escolhidas não pela aparência, ou pela roupa que vestem, mas por estarem vulneráveis, ou em situação de risco:
“O ambiente onde a vítima está é o fator mais observado pelo criminoso. Quem ouve os depoimentos de mulheres vítimas de violência sexual diz que o agressor não escolhe o alvo pela aparência física ou pelo modo de se vestir. ‘O autor de um estupro ele procura sempre as melhores condições para aquela prática daquele delito. Essas condições estão sempre ligadas ao ambiente. Existem pessoas próximas? Não existem? Lugar ermo, como é que está a iluminação? Ela pode gritar, pode não gritar? Infelizmente todas as mulheres são vítimas em potenciais desse tipo de criminoso’, afirma a delegada Ana Cristina”. (Disponível em: http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2014/04/agressores-nao-escolhem-vitimas-de-estupro-pela-roupa-diz-delegada.html).
Portanto perceba-se a sutileza da questão. Bolsonaro quis atingir de forma muito íntima a Deputada, pois tem consciência de que, em regra, os estupradores escolhem as suas vítimas a depender das circunstâncias fáticas serem-lhe favoráveis ou não. É como se os atributos físicos da vítima fossem irrelevantes. Nesse sentido, ele quis afirmar que, caso fosse um estuprador e as circunstâncias fáticas fossem aptas à prática do crime, ele, ainda assim, não estupraria a deputada, porque a considera muito feia. Não restam dúvidas, a intenção do deputado foi a de atacar a honra subjetiva da deputada.
A defesa do deputado alega que a afirmação dele foi um "ato-reflexo" e que a sociedade precisa ser informada sobre a verdade dos fatos. "Vou ser realmente julgado pelo Supremo Tribunal Federal, basicamente, por apologia ao estupro. Foi uma retorsão o que eu falei para ela [deputada], foi um ato-reflexo. As desculpas que eu peço é para a sociedade, que foi desinformada sobre a verdade dos fatos", disse Bolsonaro. (Disponível em: http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/06/bolsonaro-vira-reu-por-falar-que-maria-do-rosario-nao-merece-ser-estuprada.html).
Ou seja, o deputado afirma que só proferiu aquelas palavras em retorsão ao discurso da deputada, que o teria chamado de estuprador. Nesse ínterim, importante que se faça uma leitura do parágrafo primeiro do art. 140 do CP:
§ 1º - O juiz pode deixar de aplicar a pena:
I - quando o ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente a injúria;
II - no caso de retorsão imediata, que consista em outra injúria.
A lei estabelece certas circunstâncias em que o juiz poderá conceder o perdão judicial. Não obstante o legislador tenha utilizado a palavra “pode”, o entendimento é de que, uma vez presente qualquer das circunstâncias elencadas nos incisos I e II, o juiz deve conceder o perdão judicial.
Para entender melhor quando se operam os seguintes casos, a melhor doutrina ensina: “as duas hipóteses, embora semelhantes, são inconfundíveis: na provocação reprovável há somente uma injúria, a de quem reage à provocação, pois a conduta do provocador não assume a condição de injúria; caso contrário, haveria retorsão; na retorsão imediata, por sua vez, há duas injúrias, a inicial, a originadora do conflito, que é revidada por outra injúria”. (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal 2. Editora Saraiva. Página 352).
A defesa alega que o ato de Bolsonaro se deu em retorsão à primeira injúria proferida pela Deputada, ao ter taxado o deputado como estuprador. Em que pese tais argumentos, em pesquisas realizadas nos jornais e redes sociais, não foi possível encontrar o teor das palavras da Parlamentar, motivo pelo qual não nos cabe, nesse momento, afirmar se seria o caso de aplicar o perdão judicial.
Com isso, resta-nos claro que houve, de fato, a ofensa à honra subjetiva da Deputada, uma vez que Bolsonaro, com suas palavras atingiu sua autoestima, rebaixando sua dignidade moral. Entretanto, será necessária uma análise das circunstâncias em que tudo se operou, bem como do discurso prévio de Maria do Rosário, a fim de se averiguar se será cabível a concessão do perdão judicial, por terem as ofensas do Deputado se dado em ato de retorsão.
5. DA IMUNIDADE MATERIAL DOS PARLAMENTARES
Conforme reza o artigo 53 da CF/88: “Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. Trata-se da chamada imunidade parlamentar absoluta, também chamada de imunidade substancial, material, real ou idenidade.
Para o STF tal imunidade torna o fato atípico:
CRIMES CONTRA A HONRA. REJEIÇÃO DA INICIAL ACUSATÓRIA. FALTA DE JUSTA CAUSA PARA A INSTAURAÇÃO DA AÇÃO PENAL. ATIPICIDADE DA CONDUTA. QUEIXA-CRIME REJEITADA. PREJUDICADO O EXAME DAS PRELIMINARES. 1. O processamento da queixa-crime encontra óbice no inciso III do art. 395 do Código de Processo Penal. Não há justa causa para o exercício da ação penal se o fato increpado ao acusado (detentor de foro por prerrogativa de função) está estreitamente ligado ao exercício do mandato parlamentar, sabido que "os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos" (cabeça do art. 53 da CF/88). Torna-se imperioso, portanto, o reconhecimento da manifesta ausência de tipicidade da conduta descrita na inicial acusatória. 2. No caso, as palavras proferidas pelo querelado (Senador da República) estão acobertadas pela inviolabilidade parlamentar, descrita no art. 53 da Constituição Federal de 1988. E passa ao largo de qualquer dúvida a compreensão de que tal inviolabilidade significa insusceptibilidade de cometimento de crime. Noutros termos: os fatos objeto da queixa-crime se encontram imbricados com a função parlamentar do Senador da República acionado. Fatos que, de imediata percepção, se enquadram no contexto da disputa política, por ocasião das eleições para o Senado Federal, no Estado do Amapá. Em suma: o quadro fático-probatório demonstrou o deliberado intento do querelado de defender a legitimidade de sua própria investidura no cargo de Senador da República, fazendo para os seus eleitores em particular e o público em geral um amplo retrospecto da disputa eleitoral do ano de 2002. Muito mais para o efeito de registro histórico do que propriamente externar propósito violador da honra do querelante. 3. Queixa-crime rejeitada, prejudicado o exame das preliminares defensivas.(STF - Inq: 2674 DF, Relator: Min. CARLOS BRITTO, Data de Julgamento: 26/11/2009, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-035 DIVULG 25-02-2010 PUBLIC 26-02-2010.)
No que toca aos limites da imunidade material, sempre se entendeu que deveria haver conexão entre o teor das palavras dos parlamentares e o exercício da função. Nesse sentido, o STF acabou por pacificar o entendimento de que, uma vez irrogadas nas dependências do Plenário, o nexo seria de caráter absoluto. Entretanto, se o discurso for proferido fora dos limites do Plenário, será necessário que as palavras proferidas guardem conexão, ou seja, não haverá a presunção absoluta.
EMENTA QUEIXA. IMPUTAÇÃO DE CRIME CONTRA A HONRA SUPOSTAMENTE PRATICADO POR SENADOR DA REPÚBLICA NO RECINTO DO SENADO FEDERAL. IMUNIDADE MATERIAL ABSOLUTA. ART. 53, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. PRECEDENTES. 1. O reconhecimento da inviolabilidade dos Deputados e Senadores por opiniões, palavras e votos, segundo a jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal, exige vínculo causal entre as supostas ofensas e o exercício da atividade parlamentar. 2. Tratando-se de ofensas irrogadas no recinto do Parlamento, a imunidade material do art. 53, caput, da Constituição da República é absoluta. Despiciendo, nesse caso, perquirir sobre a pertinência entre o teor das afirmações supostamente contumeliosas e o exercício do mandato parlamentar. Precedentes. 3. Queixa rejeitada.(STF - Inq: 3814 DF, Relator: Min. ROSA WEBER, Data de Julgamento: 07/10/2014, Primeira Turma, Data de Publicação: ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-207 DIVULG 20-10-2014 PUBLIC 21-10-2014).
Portanto, perceba-se que, quando o parlamentar estiver no recinto do Plenário, todas as sua opiniões, palavras e votos estão acobertadas pela imunidade material absoluta, ou seja, sempre vai se presumir que guardam relação de pertinência com o exercício das funções. No entanto, quando as palavras forem preferidas fora do Parlamento, há de se averiguar, no caso concreto, se houve ou não conexão com o exercício das funções, em não havendo nexo, o parlamentar responderá civil e/ou penalmente, pelo teor de suas declarações.
No caso do Deputado Bolsonaro, o STF entendeu que, de fato, no tocante às palavras irrogadas dentro do Parlamento, haveria de incidir a imunidade material absoluta, vez que se presume o nexo entre o teor das ofensas e o exercício das funções. No entanto, no dia seguinte, ao repetir o discurso em entrevista para jornal, o deputado acabou por perder essa presunção absoluta. Para o STF, o fato do parlamentar estar em seu gabinete no momento em que concedeu a entrevista é um fato meramente acidental, de menor importância. Isso porque não foi ali (no gabinete) que as ofensas se tornaram públicas. Elas se tornaram públicas por meio da imprensa e da internet, quando a entrevista foi veiculada. Dessa forma, tratando-se de declarações prestadas em entrevista concedida a veículo de grande circulação não incide o entendimento de que a imunidade material seria absoluta. É necessário avaliar, portanto, se as palavras proferidas estavam ou não relacionadas com a função parlamentar. E, como, no caso concreto não estavam, ele não estará protegido pela imunidade material do art. 53 da CF/88. (Disponível em: http://www.dizerodireito.com.br/2016/07/entenda-decisao-do-stf-que-recebeu.html).
No mesmo sentido da posição adotada pelo STF, ensina o professor Marcelo Novelino:
“Na hipótese de utilização de meios eletrônico (Orkut, Facebook, Twitter, e-mails...) para divulgar mensagens ofensivas à honra de alguém, deve haver vinculação com o exercício parlamentar para que seja afastada a responsabilidade, ainda que a mensagem tenha sido gerada dentro do gabinete. Entendimento diverso daria margem ao exercício abusivo desta prerrogativa que, como destacado, é da instituição e não do parlamentar”. (NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 7ª edição. Editora Gen, 2012. Página 810).
Portanto, uma vez reconhecido que o deputado praticou o crime de injúria não poderá alegar a sua imunidade material absoluta, vez que as ofensas foram proferias, também, por meio de entrevista concedida a meio de comunicação de grande circulação, não alcançado pelo manto da imunidade material absoluta.
CONCLUSÃO
De todo o exposto, e mais uma vez reafirmando o caráter impessoal desta análise, em que pese nossa opinião de total desprezo ao teor das palavras irrogadas pelo Deputado Bolsonaro, não nos parece existente, no caso, a prática do crime previsto no art. 286 do CP (incitação ao crime). Com finco na doutrina mais abalizada, demonstrou-se que a conduta do Deputado, como que numa operação matemática, não se enquadra no tipo penal do art. 286 do CP. Considerando que para o fato ser típico, deve estar presente a tipicidade - que nada mais é do que uma operação de “encaixe” entre a conduta e o fato descrito na norma penal - o fato ocorrido é atípico no tocante a este crime.
No entanto, considerando o intuito do Deputado de atingir a honra subjetiva da Deputada, a princípio, resta configurado o crime de injúria. Observe-se, que, em que pese a alegação da defesa de que o ato de seu em retorsão imediata às ofensas proferidas primeiramente pela deputada (que chamou o Deputado de estuprador), é bastante improvável que o STF acolha tal alegação, vez que o Bolsonaro voltou a proferir as ofensas no dia seguinte, em entrevista a um jornal. Perceba-se, se as ofensas do deputado tivessem sido irrogada apenas em Plenário, muito provavelmente o fato seria atípico em razão da própria imunidade material absoluta, ou seja, não seria necessário averiguar se houve uma ofensa proferida primeiramente pela Deputada. No entanto, ao repetir as ofensas em canal de comunicação, o Deputado o fez despido do manto da imunidade, pelo que deve responder judicialmente.
Com isso, após uma análise técnica, com fundamento em doutrina e jurisprudência, conclui-se que de todo o ocorrido restou configurado o crime de injúria, praticado pelo Deputado Bolsonaro, contra a Deputada Maria do Rosário, devendo incidir, ainda, na hipótese a causa de aumento prevista 141, III, do CP, em razão do caráter público das ofensas irrogadas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal 2. Editora Saraiva.
FRAGOSO, Heleno. Lições de Direito Penal – vol. II. Ed. Forense.
GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. Editora Impetus. Rio de Janeiro, 2013.
MICHAELIS, Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo, Melhoramentos, 1998.
NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 7ª edição. Editora Gen, 2012.
SANCHES, Rogério. Manual de Direito Penal – Parte Especial. Editora JusPodivm. 2015.
http://www.dizerodireito.com.br/2016/07/entenda-decisao-do-stf-que-recebeu.htmlbacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Advogada em Recife.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AZEDO, Larissa Souza de Melo. Análise técnico-jurídica da conduta de Bolsonaro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 out 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47638/analise-tecnico-juridica-da-conduta-de-bolsonaro. Acesso em: 23 dez 2024.
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