RESUMO: Há uma divergência advinda de estudiosos e correntes conservadoras acerca do fenômeno da reforma agrária. Este artigo busca esclarecer o caráter capitalista e liberal que uma reforma agrária possui, bem como os benefícios (justificados por uma visão classicista e econômica) que este fenômeno pode causar.
Palavras-chave: Reforma Agrária, Regularização Fundiária, Terras Públicas, Terras Devolutas, Direito Fundiário.
INTRODUÇÃO
Como apresentado por Toledo (2004), o plano de governo de João Goulart defendia reformas de base (dentre elas, a reforma agrária), apresentando-as como indispensáveis para o capitalismo industrial brasileiro alcançar um novo patamar de desenvolvimento. Tratando, portanto, a reforma agrária como catalisadora de um processo capitalista industrial.
É importante destacar que, já àquela época, havia a preocupação em aumentar a produção agrícola (alimentos, insumos e matérias-primas para a indústria), bem como ampliar o mercado interno para os bens manufaturados (TOLEDO, 2004). O teórico Darcy Ribeiro sintetizou da seguinte forma: “Jango, latifundiário, queria fazer a reforma agrária para defender a propriedade e assegurar a fartura, evitando desespero popular e a convulsão social.” (DANTAS MOTA apud TOLEDO, 2004, p. 22).
Ou seja, o fenômeno de reforma agrária pode ser exatamente o oposto de uma “comunização” do país, sobretudo se for realizado em terras públicas e devolutas. Podendo, assim, ser tratado até como uma “privatização” de terras públicas, pois estas serão destinadas a indivíduos (em forma de minifúndios) que as tornarão produtivas e poderão se inserir no mercado.
Estudiosos como Guanziroli et al (2001) destacam um denominador comum entre os países capitalistas com os maiores indicadores de desenvolvimento no mundo: a forte presença da agricultura familiar, “[...] cuja evolução desempenhou um papel fundamental na estruturação de economias mais dinâmicas e de sociedades mais democráticas e equitativas” (GUANZIROLI, et al. 2001, p. 15).
“A expansão e dinamismo da agricultura familiar baseou-se na garantia do acesso à terra que em cada país assumiu uma forma particular, desde a abertura da fronteira oeste americana aos farmers até a reforma agrária compulsória em Coréia e Taiwan.” (GUANZIROLI, et al. 2001, p. 15).
Além disto, Guanziroli et al (2001) destaca coerentemente que, além de auxiliar na dinamização das economias locais, a agricultura familiar contribuiu para uma transição salutar e equilibrada entre uma economia de base rural para uma economia industrial e majoritariamente urbana.
Não havendo uma estratégia de desenvolvimento socioeconômico neste sentido, a urbanização e a industrialização possuem o risco de manterem ou aumentarem a pobreza rural, e ao ocorrer o êxodo, há a provável formação da pobreza urbana (BISWANGER apud GUANZIROLI et al, 2001), pois tratam-se de cidadãos que emigrarão para os grandes centros sem qualificação e sem patrimônio.
É importante destacar que com a reforma agrária, há concomitantemente um amplo processo de regularização fundiária, o que enseja em segurança jurídica, formalização e arrecadação de impostos pelo Estado.
Breve histórico legal-normativo
Salienta-se que o direito à terra consta no arcabouço legal do Brasil desde o Império, em sua Constituição de 1824:
Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte. [..]
XXII. É garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. [..] (BRASIL, 1824 – grifo do autor)
Os textos legais continuaram a ser aprimorados e este direito fundamental perdura, sendo expresso nas conseguintes Cartas Magnas de nosso país. A Constituição de 1988 determina, no caput do seu art. 5º, o direito à propriedade como inviolável (BRASIL, 1988). Além disto, destina um Capítulo inteiro para o tema: da Política Agrícola e da Reforma Agrária.
Nesta seção, há o delineamento da destinação de terras, bem como a política agrícola e o plano nacional de reforma agrária.
Outro avanço da chamada Constituição cidadã é a premissa da propriedade atender sua função social. Como bem destacado por Cardoso (2010), o constituinte optou por associar definitivamente propriedade e função social, tratando-as como conceitos de ligação intrínseca.
É relevante lembrar que a propriedade é considerada, na visão dos classicistas liberais, um direito natural. A propriedade, “[...] numa primeira acepção genérica utilizada por Locke, designava simultaneamente a vida, a liberdade e os bens como direitos naturais do ser humano” (MELLO, 1993, p. 85).
O processo de Reforma Agrária “às avessas”
O jornalista econômico Aloysio Biondi abordou o processo de distribuição de terras brasileiras da seguinte forma:
Já as doações de terras públicas às elites, por parte de governadores, tiveram seu auge há apenas 20 anos, no começo dos anos 80. [...] Moral da história: principalmente desde o começo dos anos 60, o Brasil fala em ‘reforma agrária’. O governo da União e dos Estados tinham milhões e milhões de alqueires de sua propriedade, para fazer essa reforma. Enquanto o falatório prosseguia, essas terras, nossas, da população ‘evaporaram’, doadas, diretamente ou por omissão, às elites. Não é surpresa nenhuma, assim, que os sem-terra estejam perdendo a paciência. PS – E se todos os contribuintes, cidadãos, exigissem que o Congresso investigasse e tomasse providências para a devolução das terras públicas? (BIONDI, 2000 apud CARDOSO, 2010, p. 62 – grifo do autor).
Ou seja, percebe-se que a distribuição de terras públicas ocorreu com critérios possivelmente distorcidos, e o país não conseguiu promover uma reforma agrária de minifúndios para os indivíduos. Contudo, estima-se ainda um número significativo de terras públicas e/ou devolutas que podem sim, ser alvo de reforma agrária e regularização fundiária.
A acadêmica Patrícia Menezes de Cardoso destaca que a Constituição de 1934 permitia a doação de áreas superiores a 10 mil hectares. Essa autorização foi ‘reduzida’ a 2.500 hectares, magnitude que continua sendo superestimada: “[...] qual critério que justifica a doação de 2.500 hectares de terras públicas, ao mesmo tempo em que a concessão de uso especial para fins de moradia de áreas públicas é limitada a 250 metros quadrados?” (CARDOSO, 2010, p. 62).
Portanto, a despeito de haver ocorrido a reforma agrária em diversas nações capitalistas, tal fenômeno não foi realizado no Brasil, mesmo tratando-se de “[...] medida imprescindível para criar condições para a manutenção do homem no campo.” (CARDOSO, 2010, p. 64).
Com isto, houve a formação significativa de cidadãos sem-terra no meio rural, acarretando um efeito colateral no meio urbano: grande êxodo e favelização, além da acentuação da pobreza urbana. Inflaram-se as favelas, bem como a concentração demográfica nos grandes centros se tornou insustentável e impraticável.
Considerações Finais
Desta forma, percebe-se que a reforma agrária, sobretudo de terras públicas e devolutas, consiste em um fenômeno que pode ser catalisador do desenvolvimento socioeconômico de um país e/ou região. Contudo, tal reforma deve ser feita de maneira a permitir que os cidadãos, em sua totalidade, alcancem o direito inviolável da propriedade, tornando-a produtiva.
Enfim, uma distribuição de terras públicas e devolutas em forma de minifúndios e policulturas pode ser um passo fundamental para o desenvolvimento rural, e consequentemente, urbano sustentável.
Portanto, torna-se fundamental a discussão acerca do tema, a fim de que se possa desenhar uma estratégia de execução da reforma agrária de terras públicas, assim como foi realizada em diversos países capitalistas atualmente desenvolvidos.
Referências:
BRASIL. Constituição (1824). Constituição Política do Império do Brazil. Rio de Janeiro, 1824. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm>. Acesso em 20 ago.2016.
BRASIL. Constituição (1934). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, 1934. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm>. Acesso em 24 ago.2016.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 35. Ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
CARDOSO, P. M. Democratização do acesso à propriedade pública no Brasil: função social e regularização fundiária. 2010. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Disponível em: <https://tede.pucsp.br/bitstream/handle/9122/1/Patricia%20de%20Menezes%20Cardoso.pdf>. Acesso em: 15 ago. 2016.
GUANZIROLI, C. E. Agricultura familiar e reforma agrária no século XXI. Rio de Janeiro: Ed. Garamond, 2001.
MELLO, L. I. A. John Locke e o individualismo liberal. Os clássicos da política, v. 1, n. 13, p. 79-110, 1993. Disponível em: <http://s3.amazonaws.com/academia.edu.documents/30355065/537006_4_-_jonh_locke.pdf?AWSAccessKeyId=AKIAJ56TQJRTWSMTNPEA&Expires=1475086955&Signature=2uZNKIFaori9jXZ9hhHYSp4%2FAU8%3D&response-content-disposition=inline%3B%20filename%3DJohn_Locke_eo_individualismo_liberal.pdf>. Acesso em: 28 ago. 2016.
TOLEDO, C. N. 1964: o golpe contra as reformas e a democracia. Revista Brasileira de História, v. 24, n. 47, p. 13-28, 2004. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbh/v24n47/a02v2447.pdf>. Acesso em: 25 ago. 2016.
Bacharel em Administração Pública pela Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho da Fundação João Pinheiro. Ocupa o cargo de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental no Estado de Minas Gerais. Atualmente, trabalha como Assessor Institucional no Gabinete da Subsecretaria de Acesso à Terra e Regularização Fundiária da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Agrário (SEDA/MG). Possui experiência nas áreas de planejamento governamental, agricultura familiar, regularização fundiária e gestão pública.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SARMENTO, Caio de Vasconcelos. Reforma agrária: uma visão liberal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 out 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47639/reforma-agraria-uma-visao-liberal. Acesso em: 23 dez 2024.
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