RESUMO: Este trabalho pretende demonstrar que a impossibilidade constitucional de interposição de recurso em ações penais originárias não importa prejuízo para o pleno exercício, pelo réu, da garantia da ampla defesa no processo penal. Para tal fim, estabelece-se uma comparação entre o rito das ações ordinárias que tramitam de acordo com o Código de Processo Penal e aquele previsto na Lei 8.038/90 para processamento das ações penais originárias nos tribunais superiores.
PALAVRAS-CHAVE: ação penal originária – duplo grau de jurisdição – ampla defesa – contraditório – Lei 8.038/90 – Código de Processo Penal.
1. INTRODUÇÃO
O princípio do duplo grau de jurisdição estabelece que o acusado em processo penal possui o direito de reexame das decisões judiciais por órgão jurisdicional diverso daquele que as proferiu.
A Constituição do Império de 1824 previa expressamente o duplo grau: “Art. 158. Para julgar as Causas em segunda, e ultima instancia haverá nas Provincias do Imperio as Relações, que forem necessarias para commodidade dos Povos.”
A Constituição Federal de 1998 não previu expressamente o princípio em tela.
O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Dec. 592, de 6/7/92) em seu artigo 14.5 dispõe o seguinte: “Toda pessoa declarada culpada por um delito terá direito de recorrer da sentença condenatória e da pena a a instância superior, em conformidade com a lei. ”
No mesmo sentido estabelece o Pacto de São José da Costa Rica (Dec. 678, de 6/11/92): “8.2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: (…) h) direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior. ”
O STF teve a oportunidade de analisar e decidir pela prevalência da Constituição Federal sobre a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José), em julgamento relatado pelo Ministro Sepúlveda Pertence[1], que consignou que, à falta de órgãos jurisdicionais ad quem previstos no sistema constitucional, indispensáveis a viabilizar a aplicação do princípio do duplo grau de jurisdição aos processos de competência originária dos tribunais, o princípio do duplo grau não será aplicável.
Consolidando esse entendimento, o Ministro Nelson Jobim foi taxativo[2]: “no ordenamento jurídico brasileiro não existe a garantia do duplo grau de jurisdição. A Constituição concede aos Prefeitos foro especial por prerrogativa de função. Determina que sejam julgados originariamente pelo Tribunal de Justiça” (CF, art. 29, X).
Mais importante do que definir se o duplo grau é princípio garantia constitucional, decorrente dos tratados internacionais de direitos humanos, ou princípio implícito, como prevalece na doutrina[3], o importante é analisar se sua mitigação, nos casos estabelecidos constitucionalmente para as ações penais originárias, implica prejuízo à ampla defesa dos acusados. É o que se pretende neste breve artigo.
2. AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA E EXERCÍCIO DA AMPLA DEFESA
A Constituição Federal estabelece competência para julgar, originariamente: as infrações penais praticadas pelo Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República (STF, artigo 101, I, b”); os crimes comuns praticados pelos Governadores dos Estados e do Distrito Federal, e, os crimes comuns e de responsabilidade praticados pelos desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, e os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais (STJ, artigo 105, I, “a”); os crimes comuns e de responsabilidade praticados pelos juízes federais da área de sua jurisdição, incluídos os da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho, e os membros do Ministério Público da União, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral (TRF, artigo 108, I, “a”).
Todas as autoridades acima elencadas ostentam foro por prerrogativa de função, ou seja, a garantia funcional (e não pessoal) destinada a garantir o exercício da função pública livre de coações e ameaças políticas, atendendo ao interesse estatal de preservar a prestação regular das relevantes atividades desempenhadas pelos ocupantes de tais cargos.
O fato dessas autoridades serem submetidas a julgamento originário pelos tribunais superiores elencados na Constituição leva à impossibilidade de ampla revisão do caso por órgão jurisdicional superior, uma vez que, em tais casos, o condenado não poderá recorrer para outra instância por ausência de previsão constitucional. Como sabido, os recursos especial e extraordinário poderão ser interpostos, mas se prestam somente à análise, respectivamente, da adequação do direito à legislação federal ou à Constituição.
O STF entende que não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do co-réu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados (Súmula 704).
Hodiernamente, o princípio constitucional da ampla defesa, intimamente relacionado com o princípio do contraditório, diz com a ciência dos atos processuais e a possibilidade de contraditá-los, além do direito de presença, direito de audiência, direito de postular pessoalmente e a necessidade de tempo hábil para preparar o exercício da defesa em juízo[4].
Em relação às ações penais originarias que tramitam perante o STJ e o STF, a Lei 8.038/90 permite a realização de defesa de forma mais ampla do que nos processos ordinários e sumários que seguem o Código de Processo Penal.
Logo após ser cientificado da acusação (direito à informação), o acusado em ação penal originária do STJ ou STF possui o prazo de 15 (quinze) dias para apresentar resposta (artigo 4º da Lei 8.038/90).
Além disso, o recebimento da denúncia no STJ ou STF ocorrerá por decisão coletiva, sendo facultada à defesa a realização de sustentação oral durante o julgamento (artigo 6º da Lei 8.038/90).
É importante destacar aqui a ampla possibilidade de participação e influência do acusado no procedimento penal, antes mesmo do recebimento da ação penal originária e do início da relação processual, o que não ocorre com a mesma intensidade no processo comum.
Após o recebimento da denúncia ou queixa, o acusado em ação penal originária perante o STJ e STF terá o prazo de cinco dias para apresentação de defesa prévia (artigo 8º da Lei 8.098/90), ao passo que no processo ordinário e sumário pelo rito do CPP o prazo é de 10 (dez) dias (artigo 396 do CPP).
A Lei 8.038/90 prevê também o prazo de 5 (cinco) dias para requerimento de diligências finais (artigo 10) e o prazo de 15 (quinze) dias para apresentação de alegações escritas (artigo 11). Por outro lado, o CPP não mais prevê prazo para diligências finais, que deverão ser requeridas assim que terminada a instrução (artigo 402), e as alegações finais devem ser apresentadas oralmente em até 10 (dez) minutos, sendo facultada a apresentação de memoriais escritos no prazo de 5 (cinco) dias em casos complexos (artigo 403).
Por fim, a Lei 8.038/90 concede à defesa prazo de uma hora para sustentação oral durante a sessão de julgamento (artigo 12).
Eugênio Pacceli anota ainda que, de acordo com o Regimento Interno dos Tribunais, o julgamento da ação penal originária ocorrerá pelo plenário do tribunal, o que levaria à uma vantagem para o acusado tendo em vista a apreciação coletiva do caso penal[5].
Comparando-se os ritos processuais do CPP e da Lei 8.038/90 [6] a conclusão é inequívoca no sentido de que as possibilidades de defesa nas ações penais originárias são amplamente dilatadas no processamento das ações penais originárias, na medida em que a defesa possui prazos maiores e efetivas possibilidades de influir diretamente no julgamento do feito.
Além de permitir a plena defesa dos acusados em ações penais originárias, o foro privilegiado tem gerado enorme morosidade na tramitação dos feitos, seja em razão da sobrecarga de trabalho dos tribunais, seja em razão da falta de expertise para instruir e julgar os processos penais. A consequência, nefasta, é a impunidade e aplicação diferenciada da lei penal, que, em nosso país, insiste em atingir concretamente somente pessoas desfavorecidas economicamente.
Segundo dados levantados[7], dos 500 (quinhentos) processos e investigações que foram abertos de 1988 a 2015 no STF, apenas 16 (dezesseis) resultaram em condenação (a 1ª só se deu em 2010). Mais de 100 (cem) casos prescreveram. Dos 16 (dezesseis) condenados, 5 (cinco) prescreveram. Em 8 (oito) houve execução efetiva e 3 (três) ainda estão com recursos pendentes.
Infelizmente, casos como o “Mensalão” e a “Operação Lava-Jato” são minorias absolutas no panorama jurídico brasileiro, exceções que confirmam a regra vigente: impunidade para autoridades com foro por prerrogativa de função.
3. CONCLUSÃO
A Constituição Federal de 1988 não estabelece a garantia absoluta do duplo grau de jurisdição.
Os detentores de foro por prerrogativa que têm seus crimes julgados pelos tribunais poderão interpor, se presentes os demais requisitos legais, recursos especial e extraordinária dos julgamentos realizados originariamente nas cortes superiores.
Nesses casos, previstos pela própria Constituição Federal, não há que se falar em violação a qualquer garantia constitucional. Pelo contrário: há mais possibilidades para o exercício da ampla defesa no processamento das ações penais originárias do que no trâmite das ações penais que seguem o rito previsto no Código de Processo Penal.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALEXY, Robert. Epílogo a la teoría de los derechos fundamentales. Revista Espanola de Derecho Constituional 66:31. 2002, p. 31.
ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 166
BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. São Paulo: Editora RT, 2016.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 29ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012.
GARCIA, Emerson. Ministério Público. 3ª ed – Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
GRINOVER, Ada Pellegrini ; GOMES FILHO, Antônio Magalhães ; FERNANDES, Antônio Scarance . Recursos no processo penal. 6. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2009.
JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 8ª ed – Rio de Janeiro: Forense, 1999
MENDONÇA, Andrey Borges de. Prisões e outras medidas cautelares pessoais. São Paulo:Método, 2011.
MENDONÇA, Andrey Borges de. Prisão preventiva na Lei 12.403/2011. São Paulo: Juspodium, 2016.
MIRABETE, Julio Fabrini. Processo Penal. 10ª ed. rev. e atual – São Paulo: Atlas, 2000.
OLIVEIRA, Eugênio Pacceli de. Curso de Processo Penal. 16ª ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 224.
PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Os imperativos de Razoabilidade e Proporcionalidade. In: BARROSO, LUÍS ROBERTO. A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 153-216.
[1]RHC 79785, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 29/03/2000, DJ 22-11-2002 PP-00057 EMENT VOL-02092-02 PP-00280 RTJ VOL-00183-03 PP-01010
[2] RHC 80.919, NELSON JOBIM, STF.
[3] Por todos: GRINOVER, Ada Pellegrini ; GOMES FILHO, Antônio Magalhães ; FERNANDES, Antônio Scarance . Recursos no processo penal. 6. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2009.
[4] BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. 4ª ed. São Paulo: Editora RT, 2016.
[5] OLIVEIRA, Eugênio Pacceli de. Curso de Processo Penal. 16ª ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 224.
[6] O trâmite das ações penais originárias no Tribunal Regional Federal da 2ª Região, previsto no Regimento Interno, é semelhante ao previsto na Lei 8.038/90.
[7] Disponível em: http://luizflaviogomes.com/pelo-fim-do-foro-privilegiado-criacao-de-uma-vara-especializada-excelente-ideia-do-ministro-barroso/ Acesso em 30/09/2016, as 11:00h.
Mestre em Direito Público pela PUC-SP, Procurador da República.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, Paulo Gomes Ferreira. Ações penais originárias, duplo grau de jurisdição e o exercício efetivo da ampla defesa Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 out 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47666/acoes-penais-originarias-duplo-grau-de-jurisdicao-e-o-exercicio-efetivo-da-ampla-defesa. Acesso em: 23 dez 2024.
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