Resumo: Tem-se como objetivo a análise da ação cível ex delicto, caracterizada por afetar intensamente o patrimônio moral e econômico da pessoa com direito lesionado, de modo a abordar as suas generalidades, a sua prejudicialidade, seu objeto, sua legitimação, sua subordinação temática e a sua eficácia preclusiva.
Palavras-chave: Crime. Responsabilidade Cível. Dano Cível.
Introdução
Partindo do entendimento de que uma lesão oriunda de um crime pode atingir tanto a coletividade social, como também acontece de afetar patrimonialmente, pelo viés econômico e moral, determinada pessoa. Conforme Eugênio Pacelli de Oliveira (2010, p. 205), quando a repercussão da infração houver de atingir também o campo da responsabilidade civil, terá lugar a chamada ação civil ex delicto, que outra coisa não é senão o procedimento judicial voltado à recomposição do dano civil causado pelo crime.
Inevitavelmente, por tratar de uma ação que abarca os ramos cível e criminal, há que se falar em independência entre o juízo penal e o juízo cível, que consiste na possibilidade de obtenção de decisões judiciais diversas sobre um mesmo e único fato. Haverá casos em que será permitido o ajuizamento simultâneo dos pedidos (penal e cível) em um único juízo (em regra, o penal), enquanto que em outros prevalece a separação entre as instâncias, verificando-se maior ou menor grau de independência entre elas.
Para Eugênio Pacelli de Oliveira (2010, p. 205), no Brasil, adota-se o sistema de independência relativa ou mitigada, em razão da existência de uma subordinação temática de uma instância a outra, especificamente em relação a determinadas questões.
Com o intuito de aprofundar a temática, será abordado diante, de maneira mais profunda, as generalidades, a prejudicialidade, o objetivo, a legitimação, a subordinação temática, dentre outros tópicos importantes.
1. GENERALIDADES
De modo a complementar o que já foi explicitado, cabe ressaltar que a Lei nº 11.719/08 alterou o art. 387 do Código de Processo Penal (CPP), de modo a incluir no inciso IV o dever de o juiz, na sentença condenatória, fixar o valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido. De acordo com Eugênio Pacelli de Oliveira,
Consoante os termos do previsto no art. 63, parágrafo único, com a redação dada pela Lei nº 11.719/08, a vítima ou legitimados arrolados no caput do mesmo dispositivo (art. 63, CPP) poderão executar, desde logo, no Juízo Cível, a parcela mínima reparatória constante do art. 387, IV, CPP, sem prejuízo de prosseguir na apuração do montante efetivamente devido. (2010, p. 206).
A via judicial a ser escolhida para ajuizar a ação reparatória depende das regras de subordinação temática, podendo ser a executória, quando houver execução da sentença penal condenatória (art. 475-N, II, do CPC) e parcela mínima para reparação dos danos sofridos pela vítima (art. 63, parágrafo único, CPP); ou mediante processo de conhecimento, em que devem ser encaminhados ambos os pedidos ao juízo cível, de acordo com o previsto art. 63 do CPP.
Alguns doutrinadores processuais penais levantam objeções quanto à validade da imposição de valor mínimo na condenação, que são: (1) a necessidade, ou não, de um pedido expresso na denúncia ou queixa, para a obtenção do título quanto à parcela mínima; (2) a questionável legitimidade do Ministério Público para promover a recomposição patrimonial da vítima, uma vez que seria competência da Defensoria Pública a defesa dos interesses dos necessitados; (3) a impossibilidade de se discutir os prejuízos causados à vítima, sem prejuízo da ação penal.
Partindo do entendimento de que são efeitos secundários da sentença penal o reconhecimento da certeza e a obrigação de indenização do dano causado pelo crime (art. 91, I, CP), ainda que não tenha sido pedido pela vítima no processo, está essa autorizada legalmente à formação de título executivo no juízo cível, sendo a obrigação de indenizar resultante da prolação de sentença penal condenatória, pois na esfera cível restaria apenas a liquidação do valor devido. (OLIVEIRA, 2010, p. 206).
Portanto, conforme Eugênio Pacelli de Oliveira (2010, p. 206), não se trata de cumulação de instâncias (cível e penal), mas simplesmente da especificação de valor mínimo, devida e cabalmente demonstrado no desenvolvimento da ação penal, sobretudo quando resultante da própria imputação. Ou seja, os prejuízos materiais oriundos de crime de dano, quando efetivamente comprovados em ação penal, dispensam discussões na esfera cível.
O valor passível de ser fixado em sentença penal condenatória será: (a) aquele que tiver sido objeto de discussão ao longo do processo, desde que expresso o pedido de reparação na petição inicial; ou (b) aquele relativo aos prejuízos materiais efetivamente comprovados.
Justamente por não ser cumulação de pedidos (um de natureza penal condenatória e outro de fins indenizatórios) é que é legítima a atuação do Ministério Público.
Ainda há que se observar a Lei nº 10.406/02 (Código Civil) conservou a essência de todas as disposições referidas pelo CPP à legislação civil. Dentre todas relacionadas à ação civil ex delicto, a mais importante diz respeito à separação de instâncias, com o reconhecimento da supremacia do juízo criminal em relação a algumas matérias. Isto quer dizer que não mais se discutirá na esfera cível a decisão criminal que reconheça a existência do fato e da sua autoria. (OLIVEIRA, 2010, p. 208).
2. PREJUDICIALIDADE
Com o intuito de esclarecer sobre possíveis dúvidas relacionadas à uniformidade das soluções judiciais para casos idênticos, principalmente quando tratar-se de um único caso, submetido a competências distintas (juízo criminal e cível), elucida o parágrafo único do art. 64 do CPP: “[...] intentada a ação penal, o juiz da ação civil poderá suspender o curso desta, até o julgamento definitivo daquela”.
Conforme Eugênio Pacelli de Oliveira,
Tratando-se de julgamento de um mesmo fato e da mesma causa de pedir, a busca de uma única solução para ambas as instâncias deve passar necessariamente pelo modelo processual para o qual sejam previstas menores restrições à prova e em que o grau de certeza a ser obtido na reconstrução dos fatos seja elaborado a partir de provas materialmente comprovadas. Por isso, o caminho a ser escolhido deve ser o do processo penal. (2010, p. 209).
Por essa razão, na ação civil ex delicto deve-se admitir, em regra, uma hipótese de dependência do juízo cível perante o juízo criminal, pois é a verdade processual é obtida a partir de critérios mais rigorosos do que os da esfera cível.
A partir do art. 64, parágrafo único, do CPP pode-se entender que, uma vez proposta à ação no juízo criminal, o juiz cível poderá suspender o curso desta até a solução final da ação penal, sendo que essa não poderá ultrapassar o prazo de um ano (art. 265, IV, § 5º, CPC). Decorrido o prazo referido, o juiz retomará obrigatoriamente a sua jurisdição. Cabe ressaltar aqui que essa suspensão da ação cível trata-se de puro poder discricionário do juiz que está sujeito à conveniência da suspensão do processo naquela instância.
A suspensão da ação cível será muito oportuna e conveniente quando ambas as ações estiverem nas mesmas fases procedimentais e também quando ocorrer de a ação cível estar mais adiantada (mas sem ter a fase instrutória concluída), uma vez que determinadas questões resolvidas no juízo criminal subordinam o conteúdo decisório da esfera cível, assim evitando um posterior ajuizamento de ações rescisórias (quando cabíveis).
No entanto, excepcionalmente, especificamente as provas relacionadas ao estado de pessoa (art. 155, parágrafo único, CPP) coloca a instância criminal subordinada à civil. Nessas situações, esclarece Eugênio Pacelli de Oliveira (2010, p. 210), o Juiz Criminal deverá obrigatoriamente suspender (art. 92, CPP, questão prejudicial obrigatória) a ação penal até a solução definitiva, passada em julgado, no cível, não correndo, por isso, o prazo prescricional para a ação penal (art. 116, I, CP).
3. OBJETO
São quatro modalidades para a recomposição civil do dano causado pela infração penal: restituição, ressarcimento, reparação e indenização.
Quando o dano for de natureza econômica, poderá o objeto constituir-se de (a) uma restituição do bem apropriado indevidamente, de modo a recompô-lo patrimonialmente em decorrência da ilicitude também cível; ou (b) de um ressarcimento, com o intuito de satisfazer os danos emergentes e os lucros cessantes.
Quando o dano atingir o patrimônio moral do ofendido tratar-se-á de uma reparação civil do ilícito (conhecido por danos morais) por atentar valores atinentes à dignidade, à individualidade e à personalidade da vítima.
Já quando o dano for causado por ato ilícito do Estado consistirá em uma indenização por ser uma recomposição por uma falha de quem, em regra, não poderia errar. No entanto, destaca-se que a Constituição Federal tem uma conceituação mais abrangente, compreendendo como indenização “qualquer pedido de natureza ressarcitória ou reparatória” (art. 5º, V, CF e art. 68, CPP).
4. LEGITIMAÇÃO
Em casos de incapacidade, para Eugênio Pacelli de Oliveira (2010, p. 211) tanto a execução da sentença penal condenatória passada em julgada, quanto o ajuizamento da ação de conhecimento no juízo cível poderão ser propostos pelo ofendido ou seu representante legal.
Quanto tratar-se de pretensão de natureza civil, com repercussões na esfera patrimonial, na falta do ofendido ou de seu representante legal, tem-se que a legitimação para a ação é atribuída aos seus herdeiros, conforme expresso no art. 63, caput, CPP.
5. SUBORDINAÇÃO TEMÁTICA E EFICÁCIA PRECLUSIVA
5.1. NAS DECISÕES CONDENATÓRIAS
Como já foi dito anteriormente, o Brasil adota o modelo da independência relativa. Por mais que se pretenda uma jurisdição una, nem todas as decisões proferidas em uma instância serão aproveitadas em outras. O legislador adotou os critérios da eficiência probatória e da extensão material do julgado para a determinação da subordinação temática.
Conforme o art. 935 do Código Civil, uma vez comprovada no juízo criminal a existência do fato, bem como a sua autoria, tais questões não poderão ser mais discutidas na instância cível. Nesse caso, forma-se uma decisão com eficácia preclusiva subordinante, pois impede a reabertura da discussão em outro processo ou em outro juízo por ter como base a unidade de jurisdição.
No entanto, quando tratar dos demais casos, como sustenta Eugênio Pacelli de Oliveira (2010, p. 212), é perfeitamente possível a alegação, no cível, da concorrência de culpa no evento danoso, ainda que tal questão não tenha sido abordada no juízo criminal, ou, se abordada, não tenha se mostrado suficiente para afastar a responsabilidade penal.
5.2.NAS DECISÕES ABSOLUTÓRIAS
Ainda baseando-se nos critérios da suficiência probatória e da extensão material do julgado, o Código de Processo Penal, no art. 65, prevê que há formação de coisa julgada na esfera cível quando a sentença penal reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular do direito. Trata-se de excludentes de tipicidade, de ilicitude e de culpabilidade previstos nos arts. 22, 23, 26 e 28 do CP, abarcando, para alguns doutrinadores, inclusive as putativas. (OLIVEIRA, 2010, p. 213).
Levando em consideração que para fins de absolvição, devem-se interpretar extensivamente as regras que constam no art. 65 do CPP, a Lei nº 11.690/08 incluiu entre as possibilidades de absolvição contidas no art. 386, VI, CPP, a fundada dúvida sobre a existência das aludidas excludentes, de modo a dar uma decisão certa baseada em uma incerteza.
No entanto, Eugênio Pacelli de Oliveira alerta:
Impõe-se registrar que, embora seja vedada a reabertura da discussão acerca da matéria então decidida (excludentes reais), a responsabilidade civil não será afastada quando houver expressa previsão legal neste sentido, ou seja, prevendo a recomposição do dano, mesmo nas hipóteses de legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular do direito. (2010, p. 214).
Já quando houver uma sentença absolutória penal em que esteja provada a inexistência do fato, não se poderá mais discutir tal questão no juízo cível, estando definitivamente afastada a responsabilidade civil, tudo em conformidade com o disposto no art. 66 do CPP. (OLIVEIRA, 2010, p. 214).
5.3.A NEGATIVA DE AUTORIA
Com a mudança trazida pela Lei nº 11.690/08, o CPP passou a compreender como dispositivo de absolvição: estar provado que o réu não concorreu para a infração penal (art. 386, IV, CPP). Assim sendo, na sentença poderá constar se há ausência de prova de autoria, se o réu não poderia ter praticado a infração ou se outra pessoa teria sido a autoria do crime.
Eugênio Pacelli de Oliveira (2010, p. 215) entende que nos casos em que houver ausência de prova de autoria poderá ser aberta uma nova discussão na esfera cível sobre a possível caracterização da infração, visto que não ficou provado que o acusado não era o autor, pelo contrário, criou-se dúvida sobre a negativa de autoria.
Contudo, quando for dada a negativa de autoria não será cabível qualquer tentativa de responsabilização cível pelo fato, devendo ambas as esferas condizer, conforme o postulado da unidade da jurisdição.
6. RESPONSABILIDADE CIVIL DE TERCEIROS
Conforme Eugênio Pacelli de Oliveira,
O direito brasileiro atribui não só ao autor do ato ilícito a responsabilidade de civil pelos danos casados ao titular ao patrimônio – material ou moral – atingido. Prevê também que determinadas pessoas, em razão de parentesco ou do mau desempenho de atividade laborativa, respondam pelo risco assumido com a escolha de mandatário, empregado ou prestador de serviço (art. 932, III, CC), bem como do exercício do poder familiar (arts. 1630 e seguintes, do CC) ou da assistência devida aos descendentes, tutelados e curatelados, nos termos do art. 932, I e II, do CC. (2010, p. 216).
No viés criminal, de acordo com o exposto no art. 64 do CPP, percebe-se previsão legal para ação de ressarcimento de dano na esfera cível contra o autor do crime, e se for o caso, contra o responsável civil.
Tem-se uma questão problemática, relacionada com a possível responsabilidade civil de terceiros, quando tratar-se da subordinação temática existente entre a instância cível e criminal e também ao responsável civil, não integrante da relação processual penal.
Nos casos de execução penal condenatória, o título executório é dirigido, necessariamente, contra o condenado. No entanto, quando houver ação de conhecimento, poderá esse ser proposta contra o autor do fato e o responsável civil.
Parte da doutrina sustenta a impossibilidade de extensão dos efeitos erga omnes da decisão criminal condenatória para atingir a pessoa responsável civil. Porém, Eugênio Pacelli de Oliveira (2010, p. 217) compreende que por não haver intervenção de terceiros na esfera processual penal - apenas assistência reservada ao ofendido -, e devido ao fato de a sanção penal não ter interesse jurídico para o responsável civil não poderá a pena passar da pessoa do acusado (art. 5º, XLV, CF), uma vez que é vedada a formação de litisconsórcio passivo.
Para Eugênio Pacelli de Oliveira (2010, p. 218), quando for o caso de uma ação civil reparatória proposta contra o autor do fato e o seu responsável civil e, não existindo ação penal ou se existir, mas não tiver sido sentenciada com trânsito em julgado, admite-se que o terceiro (responsável civil) possa impugnar a própria existência do fato e a sua autoria. Já na esfera criminal, devido a necessidade de preservar a unidade de jurisdição, não se pode discutir à autoria e à materialidade do fato após o trânsito em julgado, justamente por ser a intervenção estatal ultima ratio.
7. A LEGITIMAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Outra questão que necessita ser aborda é fruto do dispositivo do art. 68 do CPP, que prevê legitimação ativa do Ministério Público para a propositura de ação civil oriundo do delito nos casos em que o titular do direito à reparação do dano não puder custeá-la.
Por ser o Código de Processo Penal anterior ao Texto Constitucional em vigor, aparentemente haveria um conflito de normas, uma vez que é dever da Defensoria Pública a orientação jurídica e a defesa dos necessitados (art. 134, CF). Além disso, sabe-se que a intervenção do Ministério Público, principalmente no que referir-se à iniciativa processual, só é legítima quando oriunda da contextualização coletiva.
No entanto, tem entendido a Suprema Corte que poderá o Ministério Público, nesses casos específicos, tutelar interesses particulares por ainda não existir em todos os foros do país uma Defensoria Pública. Por essa razão, o art. 68 do CPP mantém-se em vigência.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL, Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de Setembro de 1940. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm>. Acesso em: 22 de junho de 2014.
BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de Outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm>. Acesso em: 22 de junho de 2014.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 22 de junho de 2014.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 22 de junho de 2014.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 13ª edição, revisada e atualizada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande - FURG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VELASCO, Liziane Bainy. Ação civil ex delicto Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 out 2016, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47675/acao-civil-ex-delicto. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Nathalia Sousa França
Por: RODRIGO PRESTES POLETTO
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
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