RESUMO: O presente estudo objetiva analisar os temas do ativismo judicial e da judicialização da política adotando como plano de fundo a decisão tomada pelo STF no RE 440.048/SP, no qual determinou que o Estado de São Paulo adaptasse a Escola Estadual Professor Vicente Teodoro de Souza, em Ribeirão Preto, para que pessoas com deficiência física pudessem ter acesso ao prédio. Em sua defesa, o recorrido levantou a questão da separação dos poderes, alegando possuir poder discricionário para decidir como serão aplicadas as políticas públicas. Ocorre que o direito de as pessoas com deficiência acessar prédios públicos está previsto na Constituição, com status de direito fundamental, não cabendo ao Executivo decidir aplicá-lo ou não.
PALAVRAS-CHAVE: Ativismo Judicial. Judicialização da Política. Acessibilidade a prédios públicos. Separação dos Poderes. RE 440.048.
1 INTRODUÇÃO
Um dos assuntos mais debatidos ultimamente é a relação entre os poderes e como manter a separação e a harmonia entre eles, principalmente com o destaque que o Judiciário vem alcançando na decisão de casos difíceis e na realização do controle judicial das políticas públicas.
Há casos em que essa atuação é bem vista, considerada necessária, mas em outras é tida como um desrespeito ao princípio da separação de poderes. Destacam-se, então, os conceitos de judicialização da política e ativismo judicial.
Com o objetivo de verificar essa relação, tomamos como caso a ser estudado o Recurso Extraordinário (RE) 440.048/SP, julgado em 29 de outubro de 2013 pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), no qual foi determinado que o Estado de São Paulo adaptasse escola para alunos com deficiência. O caso mostra-se passível da análise aqui visada. Partimos da hipótese de que em sua decisão o STF agiu corretamente a fim de impor ao Executivo a efetivação de uma garantia constitucional.
Nesse estudo, serão apresentados os conceitos de ativismo judicial, judicialização da política e constitucionalização das políticas públicas, de extrema importância para a resolução do problema.
2 ATIVISMO JUDICIAL E JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA
Barroso (2009) defende que ativismo judicial e judicialização da política são primos, mas não têm as mesmas causas. A fim de diferenciá-los, a seguir serão apresentadas características desses conceitos.
2.1 Ativismo Judicial
A expressão ativismo judicial surgiu, de acordo com Arguelhes, Oliveira e Ribeiro (2012), numa reportagem publicada por um historiador nos Estados Unidos, em 1947, e, portanto, não no mundo acadêmico. Referia-se principalmente ao período em que Earl Warren presidiu a Suprema Corte americana, nas décadas de 1950 e 1960, e era empregado com sentido pejorativo.
O ativismo judicial ocorre quando o Judiciário, incumbido de julgar e guardar a Constituição, por escolha própria, avoca para si o papel de tomar as decisões políticas. Elival Ramos o conceitua como:
O exercício da função jurisdicional para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe, institucionalmente, ao Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições subjetivas (conflitos de interesses) e controvérsias jurídicas de natureza objetiva (conflitos normativos). (apud COELHO, 2010)
Barroso aponta alguns critérios que demonstram uma postura ativista:
A postura ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: (i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas. (2009, p. 5)
O eminente constitucionalista, atualmente um dos onze ministros do STF, lembra que essa linha de atuação se destaca no Brasil recente (após a Constituição de 1988) e cita como exemplos os casos da fidelidade partidária, da vedação ao nepotismo no Legislativo e no Executivo, da verticalização e da distribuição de remédios. A essas se somam outras decisões difíceis: aborto de feto anencefálico, reconhecimento da união homoafetiva, pesquisa com célula-tronco, direito de greve etc. — como lembra Vieira (2008) ao analisar a agenda de casos a serem decididos pelo STF.
Ao papel decisivo que o Pretório Excelso, indubitavelmente, auferiu na última década, Vieira (2008) dá o nome de Supremocracia, mas prefere não emitir juízo de valor. Saul Tourinho Leal (2009), diferentemente, manifesta-se; e defende que o poder não aceita lacunas, sendo, assim, necessária a atuação do Supremo, que deixa de lado uma jurisprudência defensiva, autocontenciosa. Ele compara o momento atual do Brasil com o auge do ativismo judicial nos EUA: “Na época de Warren, uma parcela da sociedade americana dava sinais de insatisfação por causa da dificuldade que seus mandatários tinham para enfrentar problemas graves do país. Esse cenário se assemelha com o que vivenciamos hoje no Brasil” (LEAL, 2009).
A mídia brasileira aponta esse tema como uma maior interferência do Judiciário na esfera de competência dos demais poderes. Diferente é a visão adotada nos Estados Unidos, onde a questão é vista como um problema entre juiz e lei, segundo aduzem Arguelhes, Oliveira e Ribeiro (2012).
2.2 Judicialização da Política
Ao contrário do ativismo judicial, a judicialização da política não é uma alternativa do Judiciário, conforme Barroso, que afirma: “a judicialização constitui um fato inelutável, uma circunstância decorrente do desenho institucional vigente, e não uma opção política do Judiciário” (2010, p. 8, grifo no original). Explica também que:
Judicialização significa que questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral estão sendo decididas, em caráter final, pelo Poder Judiciário. Trata-se, como intuitivo, de uma transferência de poder para as instituições judiciais, em detrimento das instâncias políticas tradicionais, que são o Legislativo e o Executivo. (2010, p. 6)
Werneck Vianna, Burgos e Salles (2007) apontam que esse processo é mundial e iniciou com a falência do welfare state, que levou o legislador a passar ao juiz um papel estratégico na decisão sobre políticas públicas. Sobre esse processo, comentam:
A invasão do direito sobre o social avança na regulação dos setores mais vulneráveis, em um claro processo de substituição do Estado e dos recursos institucionais classicamente republicanos pelo judiciário, visando a dar cobertura à criança e ao adolescente, ao idoso e aos portadores de deficiência física. O juiz torna-se protagonista direto da questão social. Sem política, sem partidos ou uma vida social organizada, o cidadão volta-se para ele, mobilizando o arsenal de recursos criado pelo legislador a fim de lhe proporcionar vias alternativas para a defesa e eventuais conquistas de direitos. A nova arquitetura institucional adquire seu contorno mais forte com o exercício do controle da constitucionalidade das leis e do processo eleitoral por parte do judiciário, submetendo o poder soberano às leis que ele mesmo outorgou. (p. 41)
Nas palavras acima citadas aparecem algumas das causas da judicialização da política no Brasil apontadas por Barroso (2009): a redemocratização do país, a constitucionalização de vários temas e o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade.
O destaque alcançado pelo Judiciário é demonstrado por Garapon (apud WERNECK VIANNA, BURGOS e SALLES, 2007) quando o define como o muro das lamentações do mundo moderno.
A seguir, analisa-se um dessas causas da judicialização, a saber, a constitucionalização das políticas públicas.
3 CONSTITUCIONALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
Como já aludido, um dos fatores para a judicialização da política é a constitucionalização das políticas públicas. No dizer de Maria Paula Dallari Bucci,
Política pública é o programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados – processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial – visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados. (apud XAVIER, 2010, p. 1)
Ao serem constitucionalizados, temas que antes dependeriam apenas de uma decisão política passam a vincular a Administração Pública, tornando possível o controle judicial sobre eles, como defende Marina Corrêa Xavier (2010).
No Brasil, a constitucionalização foi abrangente e analítica, como ressalta Barroso (2010). Inúmeros temas foram levados à Carta Política. Isso se deveu à ampla participação popular no processo constituinte. O grande desafio é fazer com que essa folha de papel, na expressão de Lassalle (2008), possa ser uma constituição real. O Judiciário muito contribui para tanto.
3.1 Constitucionalização do direito de acesso a prédios públicos
O §2º do art. 227 da Constituição afirma: “A lei disporá sobre normas de construção de logradouros e dos edifícios de uso público e de fabricação de veículos de transporte coletivo, a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência”. Mais à frente, assegura o art. 244: “A lei disporá sobre a adaptação dos logradouros, dos edifícios de uso público e dos veículos de transporte coletivo atualmente existentes a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência, conforme disposto no artigo 227, §2º”.
Como se vê, trata-se de normas de eficácia limitada, conforme classificação adotada por José Afonso da Silva (apud LOUREIRO, 2009), uma vez que seus efeitos estão condicionados a uma normatividade posterior.
A lei federal à qual se refere o dispositivo é a de nº 7.853 (Lei de Apoio às Pessoas Portadoras de Deficiência), de 24 de outubro de 1989. Além disso, por se tratar de matéria de competência concorrente (art. 24, XIV), cabe à União dispor caracteres gerais a serem especificados pelos Estados, não podendo haver divergência entre elas. No Estado de São Paulo esse assunto é disciplinado pelas leis de nº 5500/86 e 9086/95.
A essas normas soma-se o artigo 9º da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada no Brasil pelo Decreto-Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008, e promulgada pelo Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Como a aprovação pelo Legislativo se deu conforme o procedimento do §3º do artigo 5º da Constituição, ela é equivalente a uma emenda constitucional.
Soma-se a esse arcabouço normativo o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.105, de 6 de julho de 2015.
Portanto, não eliminar os obstáculos ao acesso de pessoa com deficiência a prédio público constitui uma afronta a um direito fundamental, à Constituição.
4 RE 440.028/SP
O Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) ajuizou Ação Civil Pública objetivando obrigar o Estado de São Paulo a fazer adaptações na Escola Estadual Professor Vicente Teodoro de Souza, em Ribeirão Preto. Aos alunos cadeirantes não era possível acessar os pavimentos superiores, onde estavam as salas; não havia banheiros adaptados; existiam obstáculos para a entrada no local, entre outros problemas.
Em primeira instância a ação foi considerada improcedente. Na apelação feita ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), também foi negado provimento; justificou-se que não havia disponibilidade orçamentária e que obrigar o Poder Executivo a realizar obras e melhorias fere o princípio da separação de poderes, aceitando a tese da defesa.
O MP recorreu ao STF, cuja Primeira Turma acatou por unanimidade o recurso. O relator, Ministro Marco Aurélio, afirmou em seu voto:
Salta aos olhos a relevância deste julgamento. Faz-se em jogo o controle jurisdicional de políticas públicas, tema de importância ímpar para a concretização da Carta da República, ante o conteúdo dirigente que estampa. Segundo a jurisprudência do Supremo, são três os requisitos a viabilizar a incursão judicial nesse campo, a saber: a natureza constitucional da política pública reclamada, a existência de correlação entre ela e os direitos fundamentais e a prova de que há omissão ou prestação deficiente pela Administração Pública, inexistindo justificativa razoável para tal comportamento. No caso, todos os pressupostos encontram-se presentes. (BRASIL, 2013, p. 2)
Disse ainda que as barreiras arquitetônicas deixam as pessoas com deficiência em desvantagem, impedindo o exercício da cidadania e afrontando o princípio da igualdade, além do mais quando o prédio público em questão é uma escola, um ambiente de construção do cidadão.
No tocante à alegação de violação da separação de poderes, o relator falou:
Em deferência ao princípio da separação de Poderes, que funciona não apenas como uma técnica de contenção do arbítrio, consoante sustentou o Barão de Montesquieu na clássica obra O Espírito das Leis, mas também como instrumento de racionalização e eficiência no exercício das funções públicas, mostra-se indispensável reconhecer que a intervenção judicial em políticas públicas deve ser realizada pelo meio menos gravoso possível. (BRASIL, 2013, p. 5)
Ele ressaltou que a prerrogativa de fazer as escolhas quanto às políticas públicas é da Administração Pública; no entanto, cabe ao Judiciário intervir quando se tem em vista garantir o mínimo existencial. Afirmou ainda que a decisão não é importante somente para os alunos, mas para toda a comunidade.
5 À GUISA DE CONCLUSÃO
O ativismo está ligado a uma pretensão do Judiciário em tomar as decisões políticas, enquanto na judicialização da política o próprio ordenamento impõe aos juízes o papel de fazer cumprir as normas.
Quando o STF decide que o Estado de São Paulo, através de seu Poder Executivo, deve realizar obras para a adaptação de uma escola, não está querendo usurpar-lhe a função de administrar; está apenas prezando pelo cumprimento da Constituição, função que lhe é típica.
Assim, nesse caso há um controle judicial decorrente da judicialização da política, que é um fenômeno mundial. Diferentemente do que entendeu o Tribunal de Justiça, não há nisso um caso de ativismo, confirmando-se a hipótese levantada.
REFERÊNCIAS
ARGUELHES, Diego Werneck; OLIVEIRA, Fabiana Luci de; RIBEIRO, Leandro Molhano. Ativismo judicial e seus usos na mídia brasileira. Direito, Estado e Sociedade. Rio de Janeiro, n. 40, p. 34-64, jan/jun 2012. Disponível em: < http://direitoestadosociedade.jur.puc-rio.br/media/2artigo40.pdf>. Acesso em: 30 out. 2013.
BARROSO, Luís Roberto. Retrospectiva 2008 – Judicialização, ativismo e legitimidade democrática. Revista Eletrônica de Direito do Estado (REDE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 18, abril/maio/junho, 2009. Disponível em: . Acesso em: 30 out. 2013.
______. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo. Revista Jurídica da Presidência, Brasília, vol. 12, n. 96, fev./mai. 2010. Disponível em: . Acesso em: 13 nov. 2013.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 440.028-SP. Recorrente: Ministério Público do Estado de São Paulo. Recorrido: Estado de São Paulo. Relator: Ministro Marco Aurélio. Brasília, 29 de outubro de 2013. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE_440_028.pdf>. Acesso em 02 nov. 13.
COELHO, Inocêncio Mártires. Ativismo judicial ou criação do direito? Os Constitucionalistas, 17 mai. 2010. Disponível em: . Acesso em: 13 nov. 2013.
LASSALLE, Ferdinand. A essência da constituição. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008.
LEAL, Saul Tourinho. STF inova ao deixar de lado jurisprudência defensiva. Consultor Jurídico, 18 jan. 2009. Entrevista concedida a Rodrigo Haidar. Disponível em: . Acesso em: 13 nov. 2013.
LOUREIRO, Alexandre Pinto. O direito de greve do servidor público no Brasil diante do princípio do interesse público. 2009. 239 f. Dissertação (Mestrado em Direito do Trabalho e da Seguridade Social) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo.
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VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista DIREITO GV, São Paulo, vol. 4, n. 2, p. 441-463, jul/dez. 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rdgv/v4n2/a05v4n2.pdf>. Acesso em: 02 nov. 2013.
XAVIER, Marina Corrêa. O controle judicial de políticas públicas e o Supremo Tribunal Federal: comentário à decisão proferida na STA 175. Observatório da Jurisdição Constitucional, Brasília, IDP, ano 4, 2010/2011. Disponível em: <http://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/index.php/observatorio/article/view/438/285>. Acesso em: 04 nov. 2013.
Acadêmico do curso de Direito do Centro Universitário AGES - UniAGES, em Paripiranga-BA. Estagiário do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia com lotação na Vara Cível da Comarca de Paripiranga-Bahia.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, José Alisson Sousa dos. Ativismo judicial x judicialização da política: uma análise sobre a relação entre Executivo e Judiciário a partir do RE 440.048 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 out 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47696/ativismo-judicial-x-judicializacao-da-politica-uma-analise-sobre-a-relacao-entre-executivo-e-judiciario-a-partir-do-re-440-048. Acesso em: 23 dez 2024.
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