RESUMO: A relativização da “coisa julgada inconstitucional” é um tema atual e polêmico entre a doutrina processualista e constitucionalista. Este artigo discute a possibilidade da revisão das decisões transitadas em julgado nos casos em que há inconstitucionalidade em seu conteúdo, abordando os fundamentos legais e doutrinários tanto dos posicionamentos favoráveis à relativização, como dos contrários ao tema, fazendo uma explanação entre a doutrina clássica e moderna, percorrendo estudos de grandes nomes do Direito brasileiro, apresentando os meios cabíveis para a relativização da coisa julgada, assim como a contraposição entre o princípio da segurança jurídica e o da dignidade da pessoa humana, levando também em consideração outros princípios constitucionais.
PALAVRAS-CHAVE: Coisa julgada. Inconstitucionalidade. Dignidade da pessoa humana. Segurança Jurídica. Ação rescisória. Teoria da relativização.
ABSTRACT: The relativization of "unconstitutional res judicata" is a current and controversial topic among the proceduralist and constitutional doctrine. This article discusses the possibility of reviewing final decisions in cases where there is unconstitutional objects on its content, addressing the legal and doctrinal foundations of both favorable positions to relativization, as opposed to the subject, with an explanation between classical and modern doctrine, covering studies of the greatest authors of Brazilian law, presenting appropriate means for relativization of res judicata, as well as the contrast between the principle of legal certainty and of the dignity of the human person, also taking into account other constitutional principles.
KEYWORDS: Thing judged. Unconstitutional. Human dignity. Legal security. Rescission action. Theory of relativity.
INTRODUÇÃO
A jurisdição tem como escopo primário a pacificação social, a qual se dá através da solução dos litígios. Partindo deste princípio, o ordenamento jurídico brasileiro adotou a imutabilidade das decisões transitadas em julgado, aplicando a teoria da coisa julgada para que fosse garantida a segurança jurídica em um Estado Democrático de Direito. Assim, após manifestação final do Poder Judiciário, não pode o mesmo caso ser rediscutido novamente, seja por meio judicial, ou administrativo, nem ser afetado por lei superveniente.
A doutrina clássica direciona-se para a adoção do brocardo romano res iudicata facit de albo nigrum, de quadrata rotundis (a coisa julgada faz o branco tornar-se preto e o quadrado, redondo), pondo um fim ao litígio após a decisão transitada em julgado, não importando se esta é adequada ou não ao caso, valorizando prioritariamente a segurança jurídica, acabando com a possibilidade da perpetuação dos litígios.
Já na doutrina e jurisprudência modernas há uma crescente tendência em se mitigar os limites definidos pela doutrina clássica acerca da coisa julgada. Isto é, novas teorias estão sendo aplicadas a casos concretos em que as decisões proferidas foram, a priori, inadequadas e prevendo a possibilidade da revisão da res iudicata mesmo tendo corrido o prazo decadencial de dois anos para propositura da ação rescisória.
Assim, o presente artigo traz uma abordagem sobre a evolução da doutrina clássica à moderna acerca da coisa julgada, apresentando a problemática da “coisa julgada inconstitucional”, a existência de fundamentos para a modificação da teoria clássica da imutabilidade, as críticas e etc.
1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA COISA JULGADA
A doutrina, em geral, adota como marco histórico inicial da coisa julgada a tratativa dada pelo Direito Romano. O processo romano é estudado sendo dividido em três períodos: período da legis actiones; período per formulas e período da extraordinaria cognitio.
No primeiro período, da legis actiones, não havia uma autonomia da ciência processual, e sim, apenas a consideração do direito material. Esclarecendo este pensamento, Marcelo Cunha de Araújo cita Tucci e Azevedo afirmando:
Os romanos não diziam ‘eu tenho um direito’ (e, por via de consequência, uma ação para tutelá-lo), mas diziam simplesmente: ‘eu tenho uma ação’. E, assim, considerava-se titular da actio, não qualquer cidadão que preenchesse certos requisitos, mas, somente, aquele que lograsse demonstrar, nos esquemas preestabelecidos, uma situação de direito material realmente existente. (ARAÚJO, 2007, p.76).
Neste período, havia duas fases procedimentais: a in iure e a apud iudicem. A primeira ocorria perante o pretor, este que realizava papel de magistrado e tinha função de fixar os pontos controvertidos, e a segunda, a qual um cidadão romano, com papel de árbitro particular, julgava soberanamente o conflito.
O segundo período, o per formulas, o qual iniciou-se a partir da instituição da República, era caracterizado pelo fornecimento de uma fórmula ao iudex (árbitro particular), que era redigida pelo pretor e continha o resumo, os limites e objetos da demanda, o nome do árbitro escolhido pelos litigantes e o compromisso a ser assinado pelas partes de cumprirem a decisão proferida pelo árbitro.
Porém, a coisa julgada apenas começou a ser tratada pelo Direito Romano a partir do terceiro período, o da extraordinaria cognitio. Isto porque, anteriormente, a sentença era considerada um acordo extraprocessual de submissão à decisão do magistrado, e portanto, não atingia a terceiros. Somente a partir do momento em que a sentença passou a ser decorrente do poder estatal, em virtude da oficialização da justiça no período da cognição extraordinária, os romanos perceberam que os efeitos das decisões passariam a afetar não só às partes mas também a terceiros.
A partir daí, após a exaustão dos recurso cabíveis à época, operava-se a coisa julgada, que era a presunção de veracidade na causa analisada, surgindo assim o brocado romano res iudicata facit de albo nigrum, de quadrata rotundis (a coisa julgada faz o branco tornar-se preto e o quadrado, redondo).
Assim, adotando os ensinamentos romanos, os autores clássicos, de forma geral, aqui trazidos como exemplo Carnelutti e Chiovenda, conceituaram a coisa julgada como uma eficácia especial da sentença, que lhe conferia certeza e autoridade em virtude da presunção absoluta de veracidade.
2. ASPECTOS GERAIS SOBRE A COISA JULGADA
2.1 CONCEITO
A coisa julgada é trazida na Carta Magna de 1988 como garantia constitucional expressa em seu art. 5º, XXXVI (“a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”) teve sua definição no aspecto material dada pelo Código de Processo Civil de 1973, em seu art. 467, in verbis “Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário”, posteriormente corrigida pelo Novo Código de Processo Civil, em seu art. 502, o qual afirmou que o que se torna indiscutível é a decisão de mérito, e não a sentença, da qual não cabe mais recursos em geral.
Para o ilustre doutrinador Pontes de Miranda:
Quando da sentença não mais cabe recurso, há res iudicata. As questões que havia, de fato e de direito, foram julgadas. Passa em julgado a decisão e não os fundamentos, e o que se julga de quaestiones facti apenas concerne a decisão.” (1974, p.143 e 144).
Assim, fica claro o conceito clássico de coisa julgada, que nada mais é que a qualidade da decisão que tornou-se imutável pelos meios recursais de impugnação após o seu trânsito em julgado. Tal imutabilidade, para o Excelentíssimo Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, se dá devido a aplicação da técnica da preclusão.
Ontologicamente, preclusão significa “fechar, impedir”. Esta é classificada de três maneiras: preclusão temporal, lógica ou consumativa. Para Fux:
A possibilidade de recorrer pode precluir em função da perda do tempo próprio para impugnar a decisão, ‘preclusão temporal’, como, v.g., ocorre quando a sentença, apelável em 15 (quinze dias), sofre impugnação no 17º dia após a sua intimação às partes. Destarte a prática de ato incompatível com a vontade de recorrer, como v.g., a aceitação da decisão, gera ‘preclusão lógica’, também obstativa de recurso. E, finalmente a ‘preclusão consumativa’ que se opera pela prática de um ato que exclui o recurso, como v.g., o cumprimento da decisão judicial.” (2001, p.693 e 694).
2.2 COISA JULGADA FORMAL E MATERIAL
A doutrina nos traz um complemento ao conceito de coisa julgada o qual o art. 467 do CPC/73 e 502 do NCPC quedaram-se em definir: a coisa julgada formal. Esta difere do referido fenômeno descrito no Código de Processo Civil e segundo Humberto Theodoro Júnior (2009, p. 526), a coisa julgada formal decorre simplesmente da
imutabilidade da sentença dentro do processo em que foi proferida pela impossibilidade de interposição de recursos, quer porque a lei não mais o admite, quer porque esgotou o prazo estipulado pela lei sem interposição pelo vencido, quer porque o recorrente tenha desistido do recurso interposto ou ainda tenha renunciado a interposição.
Assim, a coisa julgada formal opera-se de maneira endoprocessual, porém sem impedir que o objeto da demanda seja discutido em outro processo.
Já a coisa julgada material, conceito trazido pela legislação processual civil, produz seus efeitos dentro e fora de qualquer processo, proibindo o reexame do mérito, por este já ter sido apreciado e julgado.
É importante ressaltar que a coisa julgada formal pode operar-se de maneira independente, ou seja, sem a necessidade da existência da coisa julgada material. Isto ocorre exatamente nos casos em que a sentença proferida é meramente terminativa. Assim, como não há resolução do mérito, não há trânsito em julgado material, inexistindo assim a coisa julgada material, a qual para existir depende obrigatoriamente da res iudicata formal.
3. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E A COISA JULGADA
A coisa julgada é um instituto, assim como outros, que encontra guarida na Constituição Federal e torna estável a relação jurídica regulada pelo pronunciamento judicial. Portanto, a simples violação infundada da coisa julgada é, além de profanação a índole processual, uma verdadeira afronta a uma garantia constitucional, tendo em vista que nem mesmo alterações na legislação ordinária podem ofender tal instituto, devido a força do art. 5º, XXXVI, da CF.
Porém, nossa Carta Magna trouxe alguns princípios que ao serem ponderados em relação a outros, devem manter-se em maior evidência. Isto porque nenhum princípio, inclusive os constitucionais, é absoluto, sendo obrigatório, em caso de conflitos, que seja avaliado o caso concreto para aplicação do direito prevalecente.
Um exemplo clássico para este assunto é a permissão do aborto nos casos previstos no art.128 do Código Penal[1] e aplicação da pena de morte, hipótese elencada no art. 5º, XLVII, “a” da Constituição[2], pois até mesmo o direito constitucional à vida é relativo.
O princípio da segurança jurídica é utilizado como argumento para a existência da coisa julgada imutável, ou seja, uma decisão proferida da qual não cabe recurso algum deve tornar-se estável, propiciando, assim, o fim da lide.
Este princípio visa garantir a estabilidade das relações sociais, seja por meio do direito adquirido, ato jurídico perfeito, coisa julgada, bem como prescrição e decadência, para assim evitar-se a perpetuação dos litígios.
Porém, vale ressaltar os pensamentos de Cármen Lúcia Antunes Rocha, a qual afirma que:
a segurança não é imutabilidade, pois esta é própria da morte. A vida, esta, rege-se pelo movimento, que é próprio de tudo que vive. A sociedade, como o direito que nela e para ela se cria, é movível. O que se busca é a segurança do movimento. Ele pode se produzir no sentido do incerto, o que é contrário ao direito, gerando desconforto e instabilidade para as pessoas. (2004, p 169)
Portanto, em determinados casos em que a coisa julgada forma-se de maneira espúria, tornando-se insuportável para o direito, não há segurança, e sim, desconforto às partes, pois chega a ofender princípios como o da moralidade, legalidade e dignidade da pessoa humana, os quais devem se sobrepor à coisa julgada.
Neste sentido está o posicionamento do Professor José Augusto Delgado:
A moralidade está ínsita em cada regra posta na Constituição e em qualquer mensagem de cunho ordinário ou regulamentar. Ela é comando com força maior e de cunho imperativo, reinando de modo absoluto sobre qualquer outro princípio, até mesmo sobre o da coisa julgada. A moralidade é da essência do direito. A sua violação, quer pelo Estado, quer pelo cidadão, não gera qualquer tipo de direito. Este inexiste, por mais perfeito que se apresente no campo formal, se for expresso de modo contrário à moralidade.[3]
Assim, segurança jurídica deve consistir na inviolabilidade da Constituição, devendo prevalecer os princípios da dignidade da pessoa humana, moralidade e legalidade, e não se contrapor a tais princípios garantindo a imutabilidade das decisões, mesmo injustas, apenas por força de lei ordinária a qual estipulou prazo decadencial e determinadas hipóteses para a rescisão dos julgados irrecorríveis.
4. MEIOS PREVISTOS NA LEGISLAÇÃO PARA QUESTIONAR A COISA JULGADA
Para o Ordenamento Jurídico Brasileiro, a coisa julgada não é absoluta. Por vezes, a decisão transitada em julgado pode conter vícios insuportáveis para o Direito pelo fato de ter sido constituída de maneira espúria. Assim, ordenamento jurídico pátrio previu meios para que a “imutabilidade” da coisa julgada fosse questionada.
É pacífico na doutrina o entendimento de que é possível rever a coisa julgada nos casos de ação rescisória, revisão criminal, impugnação ao cumprimento de sentença e, antes do advento do NCPC, por embargos à execução oferecidos pela Fazenda Pública, hipótese esta substituída pela impugnação ao cumprimento de sentença nos termos do art. 535 do referido diploma legal.
A ação rescisória está prevista em nosso Código de Processo Civil de 2015. Porém, este meio de impugnação a coisa julgada pode apenas ser utilizados nas hipóteses seguintes:
Art. 966. A decisão de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando:
I - se verificar que foi proferida por força de prevaricação, concussão ou corrupção do juiz;
II - for proferida por juiz impedido ou por juízo absolutamente incompetente;
III - resultar de dolo ou coação da parte vencedora em detrimento da parte vencida ou, ainda, de simulação ou colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei;
V - violar manifestamente norma jurídica;
VI - for fundada em prova cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou venha a ser demonstrada na própria ação rescisória;
VII - obtiver o autor, posteriormente ao trânsito em julgado, prova nova cuja existência ignorava ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável;
VIII - for fundada em erro de fato verificável do exame dos autos.
A revisão criminal, prevista no Código de Processo Penal, é uma ação impugnativa que tem como objetivo rever uma sentença já transitada em julgado para beneficiar o réu. Cabível nas hipóteses expressas no art. 621, do CPP:
I - quando a sentença condenatória for contrária ao texto expresso da lei penal ou à evidência dos autos;
II - quando a sentença condenatória se fundar em depoimentos, exames ou documentos comprovadamente falsos;
III - quando, após a sentença, se descobrirem novas provas de inocência do condenado ou de circunstância que determine ou autorize diminuição especial da pena.
A impugnação ao cumprimento de sentença é “um incidente processual. Não trata de demanda incidental ou de processo incidente. Constitui defesa do executado na fase de cumprimento da sentença condenatória ao pagamento de quantia por execução forçada” (MARINONI e MITIDIERO, 2011, p 470.) atualmente cabível nas hipóteses do art. 525 do Novo Código de Processo Civil.
A impugnação ao cumprimento de sentença pela fazenda pública é um novo meio de questionar à coisa julgada, o qual substituiu os embargos à execução após o advento do Novo CPC. Trata-se de procedimento de cognição parcial, ou seja, não pode ser alegada nenhuma matéria estranha àquelas posta no art.535, NCPC[4] sob pena de não ter o pedido conhecido ou de indeferimento de plano da petição inicial, nos casos em que toda matéria alegada seja estranha ao dispositivo citado.
5. A COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL
A divergência sobre os meios de impugnação das decisões que transitaram em julgado é existente ao tratar da relativização da “coisa julgada inconstitucional”. Este tema foi tratado pioneiramente no Brasil pelo ex-ministro do Superior Tribuna de Justiça José Augusto Delgado, o qual entende que todo provimento jurisdicional deve guardar conformidade com a Constituição, sob pena de se configurar uma não-decisão.
Neste sentido, o referido autor afirma que “a grave injustiça não deve prevalecer em época nenhuma, mesmo protegida pelo manto da coisa julgada, em um regime democrático, porque ela afronta a soberania da proteção da cidadania.”(DELGADO, apud NOJIRI, 2006, p. 311.).
O termo “coisa julgada inconstitucional” acaba sendo criticado por alguns doutrinadores pelo fato de a coisa julgada ser a qualidade dada a uma sentença, não podendo, portanto, ser constitucional ou inconstitucional. Neste sentido, Paulo Henrique dos Santos Lucon (2006, p. 300), ensina que:
As expressões “coisa julgada inconstitucional” e “relativização da coisa julgada” merecem ser criticadas pelos motivos a seguir expostos: I) a coisa julgada é uma qualidade da sentença, não podendo, por isso, ser constitucional ou inconstitucional; II) a inconstitucionalidade pode estar na sentença ou em qualquer ato do poder, nunca na coisa julgada; III) a sentença incompatível com a Constituição Federal assim já é, antes mesmo do trânsito em julgado; IV) não se “relativiza” a coisa julgada, quando há “a ampliação do terreno ‘relativizado’” ou “o alargamento dos limites da ‘relativização’”49; V) aliás, “não faz sentido que se pretenda ‘relativizar’ o que já é relativo50, uma vez que a lei não confere nem nunca conferiu valor absoluto à coisa julgada material; VI) pelo contrário, a coisa julgada só prevalece dentro dos limites dispostos expressamente pelo ordenamento jurídico.
Assim, conforme este entendimento doutrinário, a coisa julgada jamais obteve valor absoluto, pois, o ordenamento jurídico pátrio sequer a conferiu tal grau, bem como previu sua prevalência apenas dentro dos limites legais.
Para uma outra corrente doutrinada, representada por autores como Cândido Rangel Dinamarco, Humberto Theodoro Júnior, Carlos Valder do Nascimento, dentre outros, a coisa julgada pode ser relativizada devido a prevalência dos princípios constitucionais da moralidade, razoabilidade proporcionalidade, mesmo em hipóteses não previstas na legislação ordinária[5], pois “sentença que ofende a Constitução nunca terá força de coisa julgada” (DELGADO, 2003, p. 52).
Dinamarco afirma que a sentença absurdamente lesiva não é sentença, e portanto, não pode alcançar o trânsito em julgado (2001, p.160). Já para Humberto Theodoro Júnior, uma decisão que transita em julgado tendo o seu conteúdo eivado de vícios insuportáveis para o Direito, tais como inconstitucionalidade, é nula, e não inexistente, e possui apenas aparência de coisa julgada.[6]
Apesar da divergência citada acima, apenas sobre inexistência ou nulidade da decisão, ambos doutrinadores acreditam na prevalência dos princípios constitucionais citados, bem como no princípio da dignidade da pessoa humana sobrepondo-se à segurança jurídica visto que
Se o justo é o caminho, não importam os meios processuais, para a relativização e, com isso, tem-se a amplitude instalada pelo Prof. Candido Dinamarco7, o qual conclui que pode ser relativizada por simples petição nos autos, via ação rescisória, embargos à execução, objeção/exceção de executividade, querela nullitatis, ou seja, qualquer meio processual que se atinja a dimensão ética do processo... (GÓES, 2006, p. 144). (Grifo nosso).
A partir desse entendimento, tais autores afirmam que não é possível atribuir prazo para a relativização de uma decisão transitada em julgado a qual possui desconformidade com a Constituição Federal, pois essa poderá ser revista caso haja violações de princípios da Carta Magna por qualquer meio processual que se atinja a dimensão ética do processo.
5.1 A RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA
Como já exposto, “existe uma irritação do subsistema social do direito gerada por decisões de aplicação do código lícito/ilícito que geram uma visível inconsistência com os princípios gerais do próprio ordenamento jurídico” (ARAÚJO, 2007, p.198).
Na prática, os casos mais importantes e que propugnam a teoria da relativização da coisa julgada inconstitucional são os de investigação de paternidade que tiveram suas sentenças proferidas antes do advento do exame de DNA, e que posteriormente, ficou comprovado a paternidade (ou não) com o referido exame.
Para o professor Dinamarco (2003, p.36) “a ordem constitucional não tolera que se eternizem injustiças a pretexto de não eternizar litígios”. Portanto, toda injustiça deve ser sanada, mesmo que a segurança jurídica seja violada.
Assim, os autores que defendem a possibilidade de relativização da coisa julgada inconstitucional, além da utilização dos meios legalmente previstos (ação rescisória, revisão criminale impugnação ao cumprimento de sentença), apresentam outros instrumentos para questioná-la mesmo após os prazos legais.
A querela nullitatis é uma ação declaratória de vício insanável, de competência do juízo de 1º grau e que não está sujeita a prazo. Por este meio, é possível questionar o vício havido no processo, quando o posicionamento doutrinário afirma que a sentença é nula por ser contrária a constituição.
Para a doutrina representada por Dinamarco, a sentença contrária a Constituição é inexistente, e portanto, é possível utilizar-se qualquer meio processual que atinja a dimensão ética do processo, inclusive, por ação declaratória negativa.
Assim, na prática, o mais comum é a utilização dos meios previstos na legislação, citados no item 4, porém, mesmo com a decadência dos prazos, ainda é, segundo a doutrina, possível que a coisa julgada seja relativizada visando as garantias constitucionais já apresentadas.
6. NOVO CONTEXTO TRAZIDO PELO CPC/2015
No tocante à possibilidade de questionamento da coisa julgada por meio da ação rescisória, o Novo Código de Processo Civil trouxe uma nova hipótese de renovação para a contagem do prazo decadencial para propositura da mencionada ação.
Esclareceu-se no §12 do art. 525 e §5º do art. 535 que os títulos e obrigações fundados em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais ou incompatíveis com a CF pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de controle difuso ou concentrado, são inexequíveis e inexigíveis, respectivamente, e por conta disso, caberá impugnação ao cumprimento de sentença.
Sendo esta inconstitucionalidade ou incompatibilidade declaradas após o trânsito em julgado, será cabível ação rescisória, sendo o prazo decadencial desta iniciado após a manifestação definitiva da Corte Suprema, nos termos dos §15 do art. 525 e §8º do art. 535, do NCPC.
Desta forma, consolidou-se uma nova hipótese para propositura da ação rescisória, bem como para impugnação ao cumprimento de sentença, sendo estas cabíveis a depender do momento em que se firmou o posicionamento do STF.
7. JURISPRUDÊNCIA
Como já tratado neste artigo, é cada vez mais frequente a hipótese de flexibilização da coisa julgada, e, principalmente, nos casos de investigação de paternidade já transitados em julgado, porém, anteriores ao advento do exame de DNA. Os meios comumente utilizados para a desconstituição dos julgados são: uma nova ação de investigação de paternidade; ação declaratória de nulidade da decisão anterior; e até mesmo ação rescisória sem a observância do prazo decadencial de dois anos.
O caso abaixo demonstra o entendimento da possibilidade de propositura de uma nova ação para discutir a coisa julgada com base no advento do exame de DNA:
Resp 226.436 / PR
Min.-Relator: Sálvio de Figueiredo Teixeira; 4ª Turma; DJ: 04/02/02 (p. 370)
Ementa:
“PROCESSO CIVIL. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. REPETIÇÃO DE AÇÃO ANTERIORMENTE AJUIZADA, QUE TEVE SEU PEDIDO JULGADO IMPROCEDENTE POR FALTA DE PROVAS. COISA JULGADA. MITIGAÇÃO. DOUTRINA. PRECEDENTES. DIREITO DE FAMÍLIA. EVOLUÇÃO. RECURSO ACOLHIDO.
I – Não excluída expressamente a paternidade do investigado na primitiva ação de investigação de paternidade, diante da precariedade da prova e da ausência de indícios suficientes a caracterizar tanto a paternidade como a sua negativa, e considerando que, quando do ajuizamento da primeira ação, o exame pelo DNA ainda não era disponível e nem havia notoriedade a seu respeito, admite-se o ajuizamento de ação investigatória, ainda que tenha sido aforada uma anterior com sentença julgando improcedente o pedido.
II – Nos termos da orientação da Turma, ‘sempre recomendável a realização de perícia para investigação genética (HLA e DNA), porque permite ao julgador um juízo de fortíssima probabilidade, senão de certeza’ na composição do conflito. Ademais, o progresso da ciência jurídica, em matéria de prova, está na substituição da verdade ficta pela verdade real.
III – A coisa julgada, em se tratando de ações de estado, como no caso de investigação de paternidade, deve ser interpretada modus in rebus. Nas palavras de respeitável e avançada doutrina, quando estudiosos hoje se aprofundam no reestudo do instituto, na busca sobretudo da realização do processo justo, ‘a coisa julgada existe como criação necessária à segurança prática das relações jurídicas e as dificuldades que se opõem à sua ruptura se explicam pela mesmíssima razão. Não se pode olvidar, todavia, que numa sociedade de homens livres, a Justiça tem de estar acima da segurança, porque sem Justiça não há liberdade’.
IV – Este Tribunal tem buscado, em sua jurisprudência, firmar posições que atendam aos fins sociais do processo e às exigências do bem comum.”(grifo nosso). (ARAÚJO, 2007, p. 171 e 172.)
DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL – AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE – COISA JULGADA – RENOVAÇÃO DO PEDIDO – POSSIBILIDADE- EXAME DE DNA.
I - A jurisprudência tem atenuado a rigidez da coisa julgada nas hipóteses de investigação de paternidade, para possibilitar a realização do exame de DNA, dando uma solução mais justa à matéria. Precedentes.
II - O reconhecimento do estado de filiação, nos termos do art.27 do ECA, é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, tornando-se necessário apurar a veracidade dos fatos, para não deixar um filho sem pai ou pai sem filho, admitindo, na mesma linha de raciocínio das ações de alimentos, a ocorrência apenas da coisa julgada formal e não material, impeditiva do reexame da matéria no mesmo processo.
III - Recurso reconhecido e provido. Unânime. Conhecer e dar provimento. (TJDF – APC 19990910029102 – 5ªT.Cív – Relatora Dês. Haydevalda Sampaio – DJU 22.11.2000.) (ARAÚJO, 2007, p. 174).
A jurisprudência trazida abaixo remonta a propositura de uma nova ação, porém, em busca da verdade material, tendo em vista que a decisão que transitou em julgado baseou-se apenas na verdade formal, devido a confissão ficta. Segue:
Resp 427.117 / MS
Ministro-Relator: Castro Filho; 3ª Turma; DJ: 16/02/04 (p. 241)
Ementa:
“PROCESSO CIVIL. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. PROPOSITURA DE
AÇÃO ANTERIORMENTE AJUIZADA, QUE TEVE SEU PEDIDO JULGADO IMPROCEDENTE PELO NÃO COMPARECIMENTO DA REPRESENTANTE LEGAL DO INVESTIGANDO À AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO. CONFISSÃO. COISA JULGADA. AFASTAMENTO. DIREITO INDISPONÍVEL.
I - Na primitiva ação de investigação de paternidade proposta, a improcedência do pedido decorreu de confissão ficta pelo não comparecimento da mãe do investigando à audiência de instrução designada. Considerando, assim, que a paternidade do investigado não foi expressamente excluída por real decisão de mérito, precedida por produção de provas, impossível se mostra cristalizar como coisa julgada material a inexistência do estado de filiação, ficando franqueado ao autor, por conseguinte, o ajuizamento de nova ação. É a flexibilização da coisa julgada.
II – Em se tratando de direito de família, acertadamente, doutrina e jurisprudência têm entendido que a ciência jurídica deve acompanhar o desenvolvimento social, sob pena de ver-se estagnada em modelos formais que não respondem aos anseios da sociedade. Recurso especial conhecido e provido.” (grifo nosso).
O próximo julgado trazido a baila não adota a possibilidade de reabertura do processo, porém, admite, mesmo assim, revisão da coisa julgada utilizando outros meios. Assim, prevê que havendo nulidade na decisão anterior, seja por violação aos princípios constitucionais ou qualquer outro vício processual, a coisa julgada pode ser superada.
INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. DECISÃO DE IMPROCEDÊNCIA DA TRANSITA. AÇÃO RESCISÓRIA NÃO PROPOSTA. PEDIDO DE REABERTURA PARA A REALIZAÇÃO DE EXAME DE DNA, ENTÃO DESCONHECIDO NA ÉPOCA DA INSTRUÇÃO. DECISÃO INDEFERITÓRIA. COISA JULGADA. Descabe pedido de reabertura de ação de investigação de paternidade, para operar-se exame por técnica hoje prestigiada, inexistente quando da instrução original, se a decisão de improcedência cobriu-se com o manto de sua própria autoridade. Somente em situações teratológicas, onde se vislumbre nulidade essencial na demanda singular, é que se admite superação da coisa julgada, em genuflexa obediência à garantia constitucional da filiação. Agravo improvido. (Agravo de Instrumento nº 70000218313, 7ª Câmara Cível do TJRS, Lagoa Vermelha, Rel. Des. José Carlos Teixeira Giorgis. j. 10.11.1999.
Portanto, é possível perceber a que ponto tende a evolução jurisprudencial acerca da relativização da coisa julgada. Pois, na decisão acima, o relator já entende que nos casos em que há nulidade essencial na demanda a coisa julgada pode ser superada.
8. CONCLUSÃO
No decorrer do presente estudo ficou clara a evolução do conceito de coisa julgada. O instituto anteriormente tratado pelo Direito Romano e basicamente definido pelo brocado “a coisa julgada faz o branco tornar-se preto e o quadrado, redondo”, era considerado de caráter absoluto, porém, a doutrina moderna nos mostra a relativização do referido instituto.
Com a constitucionalização do direito processual, os princípios trazidos pela Carta Magna, obrigatoriamente, devem estar presentes nas relações processuais. Assim, não só a segurança jurídica deve ser aplicada ao instrumento da jurisdição, mas também o princípio da dignidade da pessoa humana, moralidade, legalidade dentre outros.
Como visto, o instituto da coisa julgada tem como objetivo dar um fim a lide, evitando a perpetuação dos litígios e assim garantindo às partes a aplicação da segurança jurídica. Porém, a ordem constitucional não tolera que se eternizem injustiças a preceito de não se perpetuarem os litígios, e por isso, nos casos em que a coisa julgada ofende os princípios constitucionais, estes devem ser ponderados para analisar se é possível sobrepujarem-se à segurança jurídica.
Portanto, nosso entendimento está conforme os autores citados acima, os quais afirmam que há possibilidade de relativizar a coisa julgada inconstitucional, seja pelos meios previstos na legislação, tratados no item 4, quais sejam: ação rescisória, revisão criminal, impugnação ao cumprimento de sentença; bem como nos termos do item 5.1, mesmo esgotando-se os prazos decadenciais previstos na legislação, utilizando-se da ação declaratória de vício insanável (querela nullitatis) ou, segundo Dinamarco, utilizando-se de qualquer meio processual que atinja a dimensão ética do processo, inclusive, por ação declaratória negativa, pois a justiça deve estar acima da segurança jurídica.
REFERÊNCIAS
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BAPTISTA, Ovídio, GÓES, Gisele, JÚNIOR, Humberto Theodoro, MARINONI, Luiz Guilherme, NOJIRI, Sérgio, et. al. Relativização da Coisa Julgada: Enfoque Crítico. 2. ed. Bahia: Jus Podivm, 2006.
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[1]Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:
Aborto necessário
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
[2] XLVII - não haverá penas:
a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;
[3] DELGADO, José Augusto. Os efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais. Disponível em: http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/ambiental3/painel4.htm. Acesso em: 07 jan. 2014.
Art. 535. A Fazenda Pública será intimada na pessoa de seu representante judicial, por carga, remessa ou meio eletrônico, para, querendo, no prazo de 30 (trinta) dias e nos próprios autos, impugnar a execução, podendo arguir:
I - falta ou nulidade da citação se, na fase de conhecimento, o processo correu à revelia;
III - inexequibilidade do título ou inexigibilidade da obrigação;
IV - excesso de execução ou cumulação indevida de execuções;
V - incompetência absoluta ou relativa do juízo da execução;
VI - qualquer causa modificativa ou extintiva da obrigação, como pagamento, novação, compensação, transação ou prescrição, desde que supervenientes ao trânsito em julgado da sentença.
[5] GÓES, 2006. p. 143 e 144.
[6] GÓES , 2006, p. 144 .
Advogado no escritório Amaral, Marques, Villar, Protásio Advocacia. Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Anhanguera-Uniderp.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AMARAL, Gustavo Costa do. A possibilidade de relativização da "coisa julgada inconstitucional" Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 nov 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47735/a-possibilidade-de-relativizacao-da-quot-coisa-julgada-inconstitucional-quot. Acesso em: 23 dez 2024.
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