RESUMO: O presente trabalho pretende ilustrar como imprecisões legislativas podem causar divergências doutrinárias e práticas, especificamente no crime do art. 311-A do CP, na modalidade “cola eletrônica” com expert passando informações. De modo que se uma corrente doutrinária for utilizada pelo magistrado no caso concreto, o sujeito pode estar diante de uma reclusão de até 4 anos, e caso a segunda corrente seja escolhida, de um mero fato atípico. Por tanto a utilização de conceitos jurídicos indeterminados ou ambíguos podem causar tremendas injustiças, seja numa proteção deficiente, seja num “hiperpunitivismo”.
Palavras chaves: Fraude. Certames. Concurso. Cola eletrônica.
1 INTRODUÇÃO
O Crime do artigo 311-A do CP foi adicionado pela lei 12.550 de 15 de dezembro de 2011, sem período de vacatio legis. A referida adicionou o capítulo V, “Das fraudes em certames de interesse público” no Título X do Código Penal, “Dos crimes contra a fé pública”. Importante para contextualizar a falta de técnica e ambiguidade que a redação do crime previsto no novo tipo penal implicará, o modo como a lei foi elaborada mereceu duras críticas do ilustre Guilherme de Souza Nucci (2015, p. 1265).:
“A Lei 12.550, de 15 de dezembro de 2011, autoriza o Poder Executivo a criar a empresa pública denominada Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares. São 17 artigos cuidando do tema, que diz respeito à saúde e à administração pública. Eis que, de repente, aproveita-se um espaço qualquer, em lei absolutamente estranha, para editar matéria penal, criando-se um tipo penal incriminador e uma nova pena restritiva de direitos (arts. 18 e 19). O legislador brasileiro não aprende mesmo. Um tema tão relevante como esse, tratado de maneira secundária, atirado numa lei de criação de empresa pública na área da saúde.
No mesmo sentido escreveu Damásio de Jesus (2014, p. 1024):
Deve-se destacar que em todos os textos apresentados pelo Executivo não havia uma disposição sequer destinada a modificar o Código Penal. Cuidava-se de regras estritamente ligadas à constituição da EBSERH. Durante a tramitação na Casa de origem, porém, foi apresentado um substitutivo, no qual se deu a proposta de inclusão no Código Penal do inciso V do art. 47 e do art. 311-A. A intenção, no mérito, mostrou-se louvável, pois visava “coibir o cometimento de fraudes e promover a observância dos princípios da moralidade e da impessoalidade”, consoante destacou o Relator do Projeto, Deputado Danilo Forte, mas não se pode deixar de registrar o franco desrespeito às diretrizes preconizadas na Lei Complementar n. 95, de 1998, notadamente o art. 7º, I e II, segundo o qual, “excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto” e “a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão”.
Não bastando o estranho modo em que a norma incriminadora entrou no ordenamento jurídico, ainda há críticas justas do mesmo doutrinador à sua posição no Código Penal (NUCCI, 2015):
Não bastasse, com vários erros, como já é hábito em leis penais. Inseriu-se o Capítulo V, após vários outros tratando de falsidades, no Título X, referente à fé pública. Ora, em primeiro lugar, a fraude em certames públicos não diz respeito ao bem jurídico tutelado pelo Título X. A fé pública, como já se disse, ocupa-se da credibilidade existente em moedas, papéis e documentos, por força de lei (ver a nota 1 ao Título IX). Os crimes que podem afetar o referido bem jurídico dizem respeito às falsidades em geral – e não às fraudes. Estas são capazes de afetar o patrimônio ou o interesse da administração pública, nos seus aspectos material e moral. Logo, está deslocado este Capítulo V no Título IX. Deveria ter sido inserido no Título XI (Dos crimes contra a administração pública), especificamente no Capítulo II (Dos crimes praticados por particular contra a administração em geral).
Apesar dos erros já expostos, a grande problemática que este artigo abordará é acerca da sua aplicabilidade no caso específico de “Cola Eletrônica”, que é basicamente quando com uma escuta acoplada ao ouvido, ou com algum mecanismo que provoca sinais, o “trapaceiro” recebe instruções, enquanto está sendo submetido ao exame, de um terceiro. O que a doutrina diverge muito é se para caracterizar o crime é necessário que o conteúdo da cola seja sigiloso (o terceiro teve acesso ao gabarito oficial) ou se já seria suficiente que um especialista respondesse as questões pela sua expertise.
O trabalho pretende mostrar como está dividida a doutrina, e como está celeuma vem sendo aplicada na prática, como os juízes e tribunais vêm se portando diante do impasse no dia a dia.
2 DESENVOLVIMENTO: A REDAÇÃO DO ART. 311-A E SUAS INTERPRETAÇÕES
Com intuito de fazer um breve histórico de como a conduta da “cola eletrônica” era entendida no nosso ordenamento jurídico antes da edição da Lei 12.550, vale a lição de Sanches (2015, 725):
Antes da novel Lei, a "cola eletrônica" (utilização de aparelho transmissor e receptor em prova), uma das formas mais corriqueiras de fraudar os certames de interesse público, foi julgada atípica pelos Tribunais Superiores. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Inquérito n° 1.145, decidiu que a referida fraude não se enquadraria nos tipos penais em vigor, em face do princípio da reserva legal e da proibição de aplicação da analogia in malam partem. (Informativo STF n° 453, de 18 e 19 de dezembro de 2006).
No mesmo sentido o Superior Tribunal de Justiça: "O preenchimento, através de 'cola eletrônica', de gabaritos em concurso vestibular não tipifica crime de falsidade ideológica. É que nos gabaritos não foi omitida, inserida ou feita declaração falsa diversa daquela que devia ser escrita. As declarações ou inserções feitas nos cartões de resposta por meio de sinais eram verdadeiras e apenas foram obtidas por meio não convencional. A eventual fraude mostra-se insuficiente para caracterizar o estelionato que não existe 'in incertam personam'". ROHC nº 7376/SC, Sexta Turma, Relator Ministro Fernando Gonçalves, transcrição parcial da ementa.
"A utilização de aparelhos transmissor e receptor com o objetivo de, em concurso vestibular, estabelecer contato com terceiros para obter respostas para questões formuladas nas provas não constitui, mesmo em tese, crime. Pode configurar ação imoral". ROHC nº 4593/PR, Quinta Turma, Relator Ministro Jesus Costa Lima, transcrição parcial da ementa.
Já ficou esclarecido que a conduta da cola eletrônica era considerada atípica, pois apesar de claramente imoral, não havia previsão específica. Para fazer uma análise do tipo penal e suas aplicações ou não, imprescindível é fazer a colação completa do dispositivo em estudo e analisarmos seus conceitos jurídicos:
Art. 311-A. Utilizar ou divulgar, indevidamente, com o fim de beneficiar a si ou a outrem, ou de comprometer a credibilidade do certame, conteúdo sigiloso de:
I - concurso público;
II - avaliação ou exame públicos;
III - processo seletivo para ingresso no ensino superior; ou
IV - exame ou processo seletivo previstos em lei:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Podemos observar que o tipo possui dois núcleos, compostos pelos verbos “utilizar ou divulgar”, como bem explica Nucci (2015, p. 1265):
Análise do núcleo do tipo: compõe-se de dois verbos, sendo um deles de caráter bem abrangente, que é utilizar (tornar algo útil, aproveitar, fazer uso de algo, empregar com utilidade, usar). O outro é divulgar (espalhar, propagar, tornar público ou conhecido). Ambos se voltam ao objeto conteúdo sigiloso de concurso, avaliação, exame, processo seletivo, em geral. O tipo é misto alternativo, podendo o agente utilizar e divulgar o conteúdo sigiloso, cometendo um só delito. É indiferente praticar uma conduta ou as duas previstas no tipo, desde que no mesmo cenário.
É importante ainda analisar que o tipo traz um elemento normativo, como bem explica (DAMÁSIO, 2014):
Elemento normativo do tipo: fornecimento de material ou informação oficial deve ser “indevido”. Se “devido”, o fato é atípico.
E não menos importante, há um elemento subjetivo do tipo específico, como concorda a maioria da doutrina, a exemplo de Nucci (2015, p. 1266), e Masson (2015, p. 558), nas palavras do último:
É o dolo, direto ou eventual. Sem prejuízo, o tipo penal também reclama um especial fim de agir (elemento subjetivo específico), representado pelas expressões “com o fim de beneficiar a si ou a outrem” ou “com o fim de comprometer a credibilidade do certame”.
Em relação à classificação também não há maiores divergências, sendo de utilidade para fins doutrinários transcrever o entendimento de Masson (2015, p. 559):
A fraude em certames de interesse público é crime simples (ofende um único bem jurídico); comum (pode ser cometido por qualquer pessoa); formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado (consuma-se com a prática da conduta legalmente descrita, independentemente da superveniência do resultado naturalístico); de forma livre (admite qualquer meio de execução); em regra comissivo; instantâneo (consuma-se em um momento determinado, sem continuidade no tempo); unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (pode ser cometido por uma única pessoa, mas admite o concurso); e normalmente plurissubsistente (a conduta comporta o fracionamento em diversos atos).
Por fim, vale deixar claro que o objeto material tutelado é o sigilo do certame público, como vemos na lição de Nucci (2016, p. 1266), que ainda acrescenta uma crítica: “o objeto material é o conteúdo sigiloso do certame (provas, gabaritos, questões, pontos etc.). O objeto jurídico, segundo a inserção legal, embora equívoca, é a fé pública. Preferimos indicar como objeto jurídico a administração pública, nos aspectos material e moral.” De forma simular leciona Damásio (2014, p. 1022): “objetividade jurídica reside na crença coletiva acerca da veracidade, autenticidade e lisura do concurso público, avaliação ou exame públicos, processo seletivo para ingresso no ensino superior ou exame ou processo seletivo previstos em lei”.
Com toda classificação e entendimento jurídico acerca dos elementos e formação do crime, o caminho para entender a divergência que surge em relação à “cola eletrônica” fica mais palpável, principalmente tendo em vista que a objetividade jurídica e o objeto material de acordo com a maioria da doutrina está ligada à “crença da coletividade acerca da moralidade dos certames” e da “proteção ao sigilo” em relação a todos os incisos do tipo penal já transcrito, conforme Masson (2015, p. 555).
Aparentemente o dispositivo é bem claro em sua intenção e suas classificações também não geram dúvidas, porém, em relação à fraude especificamente nas colas eletrônicas a doutrina faz uma observação que diverge. Seria crime a cola eletrônica apenas em caso de o terceiro que passa a resposta possuir o gabarito sigiloso, ou o fato de alguém que respondeu a prova, saiu rápido e por ser um especialista conseguir passar as respostas para quem está dentro ainda prestando o exame seria bastante? Aqui que a doutrina irá divergir.
De um lado, defendendo a atipicidade dos casos em que não há violação ao sigilo do gabarito propriamente dito, está Luiz Flávio Gomes, Rogério Sanches (2015, p. 725), Rogério Grego (2015, p. 451) e Damásio. Trazemos a lição do professor Damásio de Jesus (2014, p. 1023):
Cremos que o novel tipo pode ser empregado para punir o autor da chamada “cola eletrônica”, em que o aspirante emprega instrumentos, como aparelhos de comunicação móvel, para obter as respostas da prova, conduta até então considerada atípica pelo Supremo Tribunal Federal (vide HC 88.967/AC, DJU, 13-4-2007, p. 102 — publicado in RT, 863/506). É necessário, porém, que o comportamento seja praticado mediante defraudação de sigilo inerente ao certame, do contrário não se encontrará abrangido pela esfera de proteção do tipo. Assim, se o sujeito se comunicar com terceiro, enquanto faz a prova, e este lhe transmitir as respostas sem violação do segredo mencionado (p. ex., depois de obter a folha de perguntas de outro candidato que já deixou o local do exame e resolver a distância as questões), o ato não se subsumirá ao crime em estudo. Se, porém, receber as informações de quem previamente obteve a folha de perguntas, rompendo o sigilo inerente à avaliação, exame ou concurso, o delito restará configurado.
De outro lado, defendendo que o tipo penal não é restringível ou lacunoso, cabendo a aplicação do crime para aqueles que se valem de expert independentemente de estar munido ou não do gabarito sigiloso oficial, temos os posicionamentos dos respeitados juristas Guilherme de Souza Nucci e Cleber Masson. Trazendo a lição deste último temos (MASSON, 2015):
Sem dúvida alguma, a criação do crime definido no art. 311-A do Código Penal teve como uma de suas finalidades precípuas a prevenção e a punição da famosa “cola” eletrônica em certames de interesse público. Cola eletrônica é o procedimento ilícito no qual os candidatos burlam vestibulares, concursos públicos e demais modalidades de processos seletivos, mediante a comunicação por meios tecnológicos (transmissores e receptores) com pessoas especialistas (experts) nas matérias exigidas nos exames, durante a realização das provas.
Antes da entrada em vigor da Lei 12.550/2011, o Supremo Tribunal Federal firmou jurisprudência no sentido da atipicidade penal da cola eletrônica, pois este comportamento – nada obstante seu elevado grau de reprovabilidade moral – não se subsumia nas definições dos crimes de estelionato e de falsidade ideológica, especialmente.
Esse panorama mudou. Agora, a cola eletrônica em certames de interesse público configura o crime descrito no art. 311-A do Código Penal.
O especialista que resolve as questões da prova e, durante o prazo de sua realização, transmite as respostas ao candidato com o auxílio de recursos eletrônicos, incide na conduta de “divulgar, indevidamente, com o fim de beneficiar a outrem, conteúdo sigiloso” de alguma das modalidades de certames de interesse público legalmente indicadas. Por sua vez, o candidato realiza o comportamento típico de “utilizar, indevidamente, com o fim de beneficiar a si próprio, conteúdo sigiloso” de certame de interesse público. É indiscutível, portanto, o concurso de pessoas entre o especialista (expert) e o candidato.
De fato, antes do término da prova as respostas são sigilosas para o candidato, e seu favorecimento implica em violação aos princípios constitucionais da isonomia e da impessoalidade. Portanto, pouco importa se o especialista (expert) teve ou não acesso privilegiado às questões do exame antes da sua realização, pois o candidato, durante a avaliação, não pode receber qualquer tipo de informação apta a favorecer seu desempenho.
No mesmo sentido o entendimento de Nucci (2015, p. 1268):
Hoje, com o advento da Lei 12.550/2011, segundo nos parece, o problema está resolvido. Afinal, é impossível obter as respostas às perguntas se estas não forem divulgadas a terceiros, que não fazem parte do certame, em momento inadequado. Por isso, preenche-se o tipo penal incriminador. Ilustrando, o concurseiro que utiliza as questões da prova (conteúdo sigiloso para quem está fora do certame), com o fim de obter as respostas, comete o delito do art. 311-A. O elemento subjetivo específico é, igualmente, preenchido, pois o seu fim é o benefício próprio e, além disso, atua com fraude.
Percebemos que apesar da divergência, a maioria da doutrina entende a entender pela inaplicabilidade do art. 311-A à ocasião em que não há violação do sigilo do gabarito oficial, ainda que o especialista se comunique com quem ainda está prestando o exame do concurso e os presentei com as respostas. É neste sentido que advoga Luiz Flávio Gomes (goo.gl/42cV39), porém diferente do que o ilustre penalista escreve em seu artigo “Acreditamos que a lacuna legislativa continua e assim também vem se posicionando a jurisprudência”, a jurisprudência não vem sendo tão clara quanto a isso, mesmo porque boa parte das ações de organizações criminosas que chocam a sociedade fraudando certames, são feitas exatamente por especialistas que tiveram acesso à prova e saíram rápido para repassar as respostas.
Os casos de crimes que seguem o modus operando supracitado já acontecem desde antes do advento da lei, como no famoso caso do vestibular de medicina de Cuiabá em 2010 (G1, 2010), e o recente caso de fraude no concurso de bombeiro do Pará (Correiobraziliense, 2016), que:
Após ter a suspensão cancelada dias antes da aplicação das provas, o concurso do Corpo de Bombeiros Militar do Pará é alvo de novo polêmica. Durante a aplicação dos exames neste domingo (24/1), a Polícia Civil do estado prendeu 49 suspeitos de fraudar a seleção por cola eletrônica.
De acordo com a assessoria dos Bombeiros, o crime teria acontecido no bairro de Tenoné, onde o mentor do esquema respondeu às questões em um colégio da região e depois saiu com o caderno de prova em mãos. Foi quando ele começou a divulgar o gabarito por mensagens de celular a mais 48 pessoas. De acordo com os Bombeiros, a fraude não deve afetar o andamento do concurso. A Polícia Civil não atendeu às nossas ligações até o fechamento da matéria.
Diante do exposto, fica evidente que as forças públicas de segurança não estão tratando o caso de fraude em concurso em que as colas eletrônicas são utilizadas por especialistas para trapacear em concursos públicos para os mais diversos cargos e vestibulares concorridos como mera imoralidade, nem estão entendendo “omissão legislativa”, de fato o aparelho estatal está sendo voltado a coibir essas práticas como se criminosas fossem, contudo, como a doutrina bem colocou, há margem para o judiciário entender pela atipicidade, como era antes da lei 12.550/2011. Um caso o STF não concedeu HC mesmo antes do advento da referida lei, quando a defesa pleiteava atipicidade da conduta da cola eletrônica pode ser registrado no Habeas Corpus (HC) 109239 (STF, 2012):
A primeira Turma, por unanimidade, acompanhou o posicionamento do ministro Marco Aurélio, indeferindo o pedido, sob o fundamento de que não se configurou ilegalidade na decisão do relator no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que indeferiu liminar nos autos de um habeas corpus impetrado naquela corte. “Consignei que o paciente teria praticado fraude em concurso público contratando técnicos para a elaboração de respostas que foram repassadas a candidatos por meio de ponto eletrônico, o que haveria ocorrido mediante pagamento. Não existe ilegalidade no ato formalizado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), pois caberia ao colegiado a apreciação da alegada ausência de justa causa quanto à atipicidade da conduta, questão ligada ao mérito da impetração”, afirmou o relator do processo no STF.
Contudo, tal caso não pode ser utilizado como regra, devido a suas peculiaridades, como por exemplo não há uma clara negativa se o fato configurava ou não fato típico, justamente pois não condizente estreita do HC. Mas é suficiente para mostrar que a jurisprudência não é tão uníssona quando se trata desse divergente embate acadêmico e prático.
Nos parece que o entendimento que “conteúdo sigiloso” se restringe a um “gabarito preliminar oficial da banca” é semanticamente pobre. Não estaria havendo uma interpretação histórico, teleológica, progressiva, mas uma simples interpretação gramatical restritiva. É como se a doutrina tivesse feito uma subdivisão em níveis de “sigiloso”, contudo a lei não o fez. E claramente quem tem acesso às respostas corretas, seja com o “gabarito preliminar da banca oficial”, seja com o “gabarito extraoficial de um curso preparatório para concursos”, ou de uma organização criminosa com acesso a computadores e livros, tudo isso é sigiloso para quem está dentro de uma sala prestando um concurso público.
9 CONCLUSÃO
Diante de todo exposto, fica evidente que há uma divergência doutrinária clara sobre o enquadramento ou não no art. 311-A do CP nos autores da cola eletrônica praticada com auxílio de especialista que tem conhecimento das questões da prova, que inevitavelmente irá repercutir em divergência jurisprudencial, gerando certa insegurança jurídica.
Em primeira análise fica claro que a redação do dispositivo poderia estar mais clara, mais bem posicionada no próprio Código Penal, e até mesmo ter sido elaborada de forma isolada, e não como emendo de um projeto de lei que cria uma empresa pública hospitalar. O que por si só já gerou inúmeras críticas da doutrina especializada
Em relação às divergências, todos os posicionamento são bem fundamentados em suas teses jurídicas, sendo a grande celeuma como o intérprete irá entender o conceito de “conteúdo sigiloso”, como sigilo formal em relação a alguma espécie de documento que contenha as respostas oficiais, como um gabarito. Conforme mostramos, para a primeira corrente que advoga pela atipicidade da cola eletrônica, para os sujeitos que recebem as respostas se valendo-se de um terceiro que está fora do ambiente, mas teve acesso ao conteúdo do certame, o fato seria atípico, ainda que após a vigência da lei 12.550/2011. Justamente por não entenderem que o conteúdo repassado era sigiloso. Configurando crime apenas caso os autores envolvidos tivessem acesso ao “gabarito sigiloso da banca” ou algo similar, dentre os que defendem essa corrente está Damásio, Sanches, Greco e Luiz Flávio Gomes.
Em sentido diverso, entendendo que sigilo não se restringe ao sigilo formal, no qual um documento oficial contém as respostas do concurso está a corrente encabeçada por Nucci e Masson. Que defendem que basta que o “colão” beneficiado esteja recebendo informações que são sigilosas para quem está sendo submetido à prova para configurar uma utilização indevida, ou divulgação indevida (especialista que está fora do local de prova).
Nos parece mais coerente a interpretação de Nucci e Masson, pois essa foi a intenção do legislador e a proteção ao objeto material e jurídico deste dispositivo é justamente direcionada a esses tipos de condutas, que apenas numa interpretação extremamente restritiva iria igualar sigiloso a “gabarito oficial”. A interpretação excessivamente garantista dos nobres doutrinadores acaba levando a uma proteção deficiente do bem jurídico pela tutela penal.
Inclusive, é extremamente comum, a anulação e alteração de questões do gabarito preliminar para o definitivo, sendo mais comum inclusive sua ocorrência do que não. O que significa que o sujeito que teve acesso à prova pode com sua expertise e ajuda de livros e da internet proporcionar respostas mais corretas na “cola” do que o próprio “gabarito preliminar” que seria o conteúdo sigiloso segundo os doutrinadores citados. Sendo por tanto, desproporcional entender que esse tipo de trapaça é fato atípico por não ser “sigiloso”.
Não havendo espaço para analogia in malam partem, como Nucci e Masson não fazem, mas uma mera interpretação teleológica, histórica ou progressiva, seria suficiente para entender pela tipicidade da conduta da cola eletrônica supracitada. A interpretação gramatical é a única que gera dúvidas, mas ainda essa, segundo esses doutrinadores, e nosso entendimento, não tem como semanticamente restringir tão grave crime, que estaria configurado, não limitando sua incidência em haver um “gabarito preliminar oficial” nas mãos do terceiro comparsa.
REFERÊNCIAS
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 15ª ed. São Paulo, Editora GEN, 2015.
Masson, Cleber. Direito Penal Especial Vol. 3. 5ª ed. São Paulo, Editora Método, 2015.
Sanches, Rogério da Cunha. Manual de direito penal Especial. 8ª ed. São Paulo, Editora JusPODIVM, 2016.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal Especial. Vol. 4. 11ª ed. Niterói, Editora Impetus, 2015.
Cola Eletrônica não é crime, negligência do legislador. Professor LFG, 2012. Acessado em: <https://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/121930218/cola-eletronica-nao-e-crime-negligencia-do-legislador>. Acesso em: 26 de novembro de 2016.
Polícia flagra cola eletrônica em pés de candidatos e vestibular em MT. G1, Globo, 2010. Acessado em: < http://g1.globo.com/educacao/noticia/2010/11/policia-flagra-cola-eletronica-em-pes-de-candidatos-em-vestibular-em-mt.html >. Acesso em: 26 de novembro de 2016.
Cola Eletrônica. Correiobraziliense, 2016. Acessado em: . Acesso em: 26 de novembro de 2016.
Primeira Turma nega HC a acusado de repasse de cola eletrônica em concurso. Correiobraziliense, 2016. Acessado em: . Acesso em: 26 de novembro de 2016.
Advogado, graduado em direito pela UNI-RN, Especialista em direito administrativo pela Faculdade Signorelli.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALBUQUERQUE, Rodrigo Passos de. A Cola Eletrônica e a divergência na aplicabilidade do art. 311-A do CP Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 dez 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47884/a-cola-eletronica-e-a-divergencia-na-aplicabilidade-do-art-311-a-do-cp. Acesso em: 23 dez 2024.
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