Resumo: O presente estudo visa indicar elementos legais, doutrinários e jurisprudenciais para a aplicação dos adicionais de insalubridade e periculosidade aos trabalhadores domésticos, considerando que a Emenda Constitucional nº 72/2013 não inseriu o inciso XXIII no rol dos direitos assegurados à citada categoria profissional.
Palavras-chaves: Trabalhador doméstico. Adicional de insalubridade e periculosidade. Emenda Constitucional nº 72/2013.
INTRODUÇÃO
O trabalho doméstico é a atividade humana que mais se assemelha ao regime de servidão. Essa modalidade de trabalho está geralmente vinculada a categorias sociais não dominantes, tais como mulheres, menores de idade, pardos, negros, pessoas com baixa escolaridade, imigrantes ilegais, migrantes de áreas mais pobres do país.
Ao longo de várias décadas o trabalhador doméstico tinha seus direitos positivados na Lei nº 5.859/72 e, depois de longos anos, somente com a Constituição Federal de 1988 é que seus direitos foram ampliados substantivamente (parágrafo único do art. 7º).
Mesmo assim, sequer na Carta Magna, conhecida pela alcunha de “Carta Cidadã”, os trabalhadores domésticos eram convenientemente contemplados, já que não eram titulares dos mesmos direitos atribuídos aos trabalhadores em geral.
No plano internacional, em 16 de junho de 2011 representantes de governos, de categorias profissionais e patronais presentes na 100ª Conferência da Organização Internacional do Trabalho (OIT) adotaram a Convenção nº 189 e a Recomendação nº 201, destinadas a tutelar as condições de trabalho de trabalhadores domésticos.
A grande inovação das novas normas da OIT foi a previsão de que esses trabalhadores, geralmente integrantes da economia informal, deveriam ter os mesmos direitos básicos que os demais trabalhadores.
Levando-se em conta que os Direitos Sociais contidos na Constituição Federal são considerados um mínimo existencial, diferenças normativas tão profundas não contribuíam para a construção da ideia de dignidade.
Do ponto de vista brasileiro, a grande inovação trazida pela novel Convenção foi a previsão quanto à limitação do controle de jornadas, com o fito de remunerar eventuais horas extras prestadas.
A desigualdade era notada também pela não-concessão da estabilidade provisória à empregada doméstica gestante (artigo 10, II, “b”, do ADCT), sob o argumento de que haveria uma acentuada pessoalidade existente na relação empregatícia doméstica e em razão da inviolabilidade do domicílio e do direito à privacidade e à intimidade, já que constituiria um ato de violência impor a reintegração da empregada doméstica gestante injustamente dispensada.
Nesse último caso, ao menos, haveria uma compensação pecuniária, sendo devida uma indenização pela dispensa imotivada da empregada em estado gravídico. Já no tocante à jornada extraordinária, não havia qualquer previsão no sentido de remunerar as horas excessivamente trabalhadas.
A Convenção nº 189 e a Recomendação nº 201 da OIT acelerou, no Brasil, a tramitação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) com o intuito de alterar a redação do parágrafo único do art. 7º da Constituição Federal para estabelecer a igualdade de direitos trabalhistas entre os trabalhadores domésticos e demais trabalhadores urbanos e rurais.
Podemos citar, a guisa de exemplificação, novos direitos que foram titularizados pelos trabalhadores domésticos: limitação da jornada de trabalho, seguro-desemprego, indenização em demissões sem justa causa, conta no FGTS, salário-família, adicional noturno, auxílio creche e seguro contra acidente de trabalho.
Em 26 de março de 2013, após votação em dois turnos na Câmara dos Deputados e dois turnos no Senado, a PEC nº 66 foi devidamente aprovada e se tornou a EC nº 72/13, promulgada em 09 de abril de 2013.
Ao garantir aos empregados domésticos um patamar de direitos simétrico ao patamar de direitos atribuídos aos demais trabalhadores, o poder reformador brasileiro se mostrou atento aos debates ocorridos na esfera internacional e apta a responder às demandas da sociedade global e da sociedade nacional. Afinal, a nossa própria ordem constitucional é fulcrada na dignidade da pessoa humana.
Entretanto, apesar das valiosas conquistas, o parágrafo único do art. 7º da CRFB não estendeu aos trabalhadores domésticos o direito à percepção dos adicionais de insalubridade e periculosidade previstos no inciso XXIII do citado dispositivo constitucional.
A ausência de previsão no texto constitucional ainda leva a discussões sobre a aplicabilidade dos citados adicionais à categoria dos domésticos, razão pela qual é objeto do presente estudo.
A CONTROVÉRSIA ESTABELECIDA QUANTO À INSALUBRIDADE E PERICULOSIDADE PARA OS DOMÉSTICOS
O pagamento de adicionais de insalubridade e periculosidade estão contemplados no ordenamento jurídico vigente através do art. 7º, XXIII da CRFB/88 e artigos 189 e 193 da CLT.
Nesse desiderato, convém destacar que o art. 7º da CLT exclui expressamente os empregados domésticos do seu âmbito de incidência.
Apesar de todas as conquistas recentemente alcançadas pelos trabalhadores domésticos, a EC nº 72/13 não incluiu o inciso XXIII (que trata dos adicionais de insalubridade e periculosidade) no rol dos direitos assegurados à citada categoria profissional.
A legislação aplicável aos domésticos sempre foi silente a respeito da matéria, o que se pode observar desde a Lei nº 5.859/72 que foi revogada pela Lei Complementar nº 150/2015.
Destarte, é possível a discussão acerca da aplicação do adicional de insalubridade e periculosidade aos trabalhadores domésticos.
Uma interpretação literal do dispositivo constitucional poderia levar à conclusão de que o rol descrito no parágrafo único do art. 7º da CRFB é taxativo e não abarcaria outras situações não mencionadas pelo constituinte originário e derivado.
De acordo com esse entendimento, exigir o pagamento do adicional de insalubridade e/ou periculosidade em favor dos trabalhadores domésticos violaria o princípio da legalidade (art. 5º, II, CRFB/88), diante da ausência de previsão no art. 7º, paragrafo único da Constituição Federal e na Lei Complementar nº 150/2015.
Por outro lado, é possível vislumbrar o alcance do art. 7º, XXIII aos domésticos através de uma interpretação sistemática-teleológica do ordenamento jurídico vigente.
A Convenção de Estocolmo de 1972 foi inovadora ao estabelecer ligação íntima da proteção ao meio ambiente com a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CRFB/88), estuário axiológico dos direitos fundamentais. Afinal, o meio ambiente ecologicamente equilibrado dá condições de existência aos demais direitos da personalidade (art. 5º da CRFB/88).
Nesta senda, a Carta Magna, em seu art. 200, VIII e 225, bem como a Convenção da Biodiversidade (ECO/92) atribuem o dever de proteção ao meio ambiente, seja o natural, cultural, artificial ou do trabalho (art. 7º, XXII).
Ainda sob o aspecto da tutela do meio ambiente de trabalho, o princípio do poluidor pagador, muito propagado no âmbito do Direito Ambiental, disciplina que aquele que polui o ambiente deve suportar as consequências do ato.
Trata-se da internalização do custo ambiental gerado em razão do desempenho de determinada atividade, custo este que não pode ser externalizado pelo poluidor para ser arcado pela sociedade ou pelo Poder Público. (CAMARGO, 2011)
Neste sentido, giza a Lei da Política Nacional de Meio Ambiente (Lei nº 6.938/1981):
Art 3º - Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por:
(...)
IV - poluidor, a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental;
O princípio 16 de Declaração do RIO/92 dispõe sobre o princípio do poluidor pagador:
“As autoridades nacionais devem procurar promover a internacionalização dos custos ambientais e o uso de instrumentos econômicos, tendo em vista a abordagem segundo qual o poluidor deve, em princípio, arcar com o custo da poluição, com a devida atenção ao interesse público e sem provocar distorções no comércio e nos investimentos internacionais.”
A respeito, a Constituição Federal de 1988 dispõe que “as condutas e atividades lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados” (art. 225, §3°).
Assim, o empregador poluidor deve arcar com o ônus do adicional de insalubridade e periculosidade, no caso em que aos trabalhadores desenvolvem suas atividades em ambientes não hígidos ou perigosos. Em outras palavras, ele paga pela degradação causada ao ambiente laboral e à saúde dos trabalhadores.
A Convenção nº 189 da OIT que, apesar de ainda não ter sido ratificada pelo Brasil, é considerada fonte material do Direito do Trabalho (art. 8º, CLT), prevê:
Artigo 13
Todo trabalhador doméstico tem direito a um ambiente de trabalho seguro e saudável. Todo Membro, em conformidade com a legislação e a prática nacionais, deverá adotar medidas eficazes, com devida atenção às características específicas do trabalho doméstico, a fim de assegurar a segurança e saúde no trabalho dos trabalhadores domésticos.
Conquanto a monetização dos riscos à saúde (no caso da periculosidade) e do efetivo dano à saúde (no caso da insalubridade) não seja a medida mais adequada, ainda é a mais justa já que corresponde à contraprestação pela presença do agente no ambiente de trabalho.
Ademais, apesar de não haver previsão específica na Lei do Doméstico acerca dos adicionais de insalubridade e periculosidade, é cabível a aplicação subsidiária da CLT, por força do art. 19 da LC nº 150/2015:
Art. 19. Observadas as peculiaridades do trabalho doméstico, a ele também se aplicam as Leis nº 605, de 5 de janeiro de 1949, no 4.090, de 13 de julho de 1962, no 4.749, de 12 de agosto de 1965, e no 7.418, de 16 de dezembro de 1985, e, subsidiariamente, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943.
Desse modo, há autorização legal para aplicação subsidiária da CLT quanto ao pagamento dos adicionais de insalubridade e periculosidade para os trabalhadores domésticos que estiverem sujeitos aos respectivos fatos geradores.
Neste diapasão, importa transcrever o teor da Súmula nº 448 do C. Tribunal Superior do Trabalho (TST):
ATIVIDADE INSALUBRE. CARACTERIZAÇÃO. PREVISÃO NA NORMA REGULAMENTADORA Nº 15 DA PORTARIA DO MINISTÉRIO DO TRABALHO Nº 3.214/78. INSTALAÇÕES SANITÁRIAS. (conversão da Orientação Jurisprudencial nº 4 da SBDI-1 com nova redação do item II) – Res. 194/2014, DEJT divulgado em 21, 22 e 23.05.2014.
I - Não basta a constatação da insalubridade por meio de laudo pericial para que o empregado tenha direito ao respectivo adicional, sendo necessária a classificação da atividade insalubre na relação oficial elaborada pelo Ministério do Trabalho.
II – A higienização de instalações sanitárias de uso público ou coletivo de grande circulação, e a respectiva coleta de lixo, por não se equiparar à limpeza em residências e escritórios, enseja o pagamento de adicional de insalubridade em grau máximo, incidindo o disposto no Anexo 14 da NR-15 da Portaria do MTE nº 3.214/78 quanto à coleta e industrialização de lixo urbano.
Aliás, o entendimento consubstanciado na Súmula nº 448 do TST já vem sendo adotado desde a Orientação Jurisprudencial nº 4, posteriormente convertida na Súmula nº 448 do C. TST.
Desse modo, no âmbito do C. TST há muito é reconhecida a aplicabilidade dos adicionais de insalubridade e periculosidade aos empregados domésticos.
Recentes julgados provenientes da 3ª (RR 0010125-22.2014.5.04.0512) e 8ª (RR 0000375-02.2013.5.04.0101) Turmas do C. TST reiteraram o entendimento pela aplicabilidade dos adicionais à categoria dos domésticos, desde que constatada a presença dos agentes insalutíferos ou periculosos.
Entretanto, a Corte Superior Trabalhista tem entendido que o manuseio de produtos utilizados para a realização de limpeza em geral, a exemplo de saponáceos, água sanitária, detergentes e desinfetantes, de uso doméstico, detêm concentração reduzida de substâncias químicas (álcalis cáusticos), destinadas à remoção dos resíduos, e não oferecem risco à saúde do trabalhador, razão pela qual não asseguram o direito ao adicional de insalubridade (RR 20134-98.2013.5.04.0020).
Portanto, desde que reconhecida a presença de agentes insalubres e perigosos através de laudo pericial, deve ser pago o respectivo adicional aos trabalhadores no âmbito doméstico.
Estender a eles toda a gama possível de direitos trabalhistas seria conceder-lhes um tratamento condizente com o princípio da dignidade humana e isonomia, verdadeiros corolários da Constituição Federal de 1988.
Hoje vivemos uma espécie de globalização também dos Direitos Humanos, aí incluído o Direito do Trabalho (Direitos Humanos Universais). Não é possível vislumbrar a efetiva garantia e proteção dos direitos dos obreiros se os instrumentos que os consagram são vistos como diplomas legais de conteúdo programático. A Constituição e os Tratados Internacionais não são apenas normas enunciativas, mas sim as fontes supremas a serem observadas na interpretação e na aplicação do Direito do Trabalho. (ABREU, 2015)
CONCLUSÃO
Os empregados domésticos desempenham um importante papel na cidadania e permitem que outras famílias possam se ausentar dos seus lares para exercer atividade econômica remunerada.
As recentes conquistas são extremamente importantes, especialmente porque o setor que apresentou o maior déficit de trabalho decente e proteção normativa do mundo todo foi o doméstico, conforme informações da OIT Brasil.
Destarte, a amplitude dos direitos deve ser interpretada em conformidade com os princípios da dignidade da pessoa humana, progressividade dos direitos sociais, isonomia e poluidor pagador.
Além disso, a própria Lei Complementar nº 150/2015 autoriza a aplicação subsidiária da CLT.
A concretização do direito à percepção dos adicionais de insalubridade e periculosidade se traduz na efetivação do direito à saúde e ao meio ambiente equilibrado, consagrados pela Carta Constitucional de 1998 como garantias fundamentais a todos os cidadãos.
REFERÊNCIAS
ABREU, Fernanda Miranda; FELAMINGO, Fabrício. Relações entre Direito Internacional do Trabalho, Direito Econômico e Direitos Humanos. In: Jus Navigandi, 09/2015. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/43266/relacoes-entre-direito-internacional-do-trabalho-direito-economico-e-direitos-humanos>. Acesso em nov 2016.
CAMARGO, Thaisa Rodrigues Lustosa de; CAMARGO, Serguei Aily Franco de. O princípio do poluidor-pagador e o meio ambiente do trabalho. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 87, abr 2011. Disponível em: <http://www.ambito -juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9163>. Acesso em nov 2016.
COLNAGO, Lorena de Mello Rezende. O trabalho doméstico: primeiras impressões da Emenda Constitucional 72/2013. In: GUNTHER, Luiz Eduardo; MANDALOZZO, Silvana Souza Netto (Coords). BUSNARDO, Juliana Cristina; VILLATORE, Marco Antônio César (Orgs.). Trabalho Doméstico: teoria e prática da Emenda Constitucional 72, de 2013. Curitiba: Juruá, 2013.
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 12. ed. São Paulo: LTr, 2013.
DUTRA, Maria Zuila Lima. Meninas domésticas, infâncias destruídas: legislação e realidade social. São Paulo: LTr, 2007.
GUNTHER, Luiz Eduardo. O Trabalho Decente como Paradigma da Humanidade no Século XXI. In: GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa; ALVARENGA, Rúbia Zanotelli de (Orgs.). Direito do Trabalho e Direito Empresarial sob o Enfoque dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Ltr, 2015.
Advogada, Especialista em Direito do Trabalho.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALMEIDA, Bruna Raphaella de Tolêdo Coura. Insalubridade e periculosidade no âmbito do trabalho doméstico Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 dez 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47888/insalubridade-e-periculosidade-no-ambito-do-trabalho-domestico. Acesso em: 23 dez 2024.
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