RESUMO: o presente artigo visa tecer uma crítica à seletividade do direito penal brasileiro, que não raras vezes, é fruto de jogo de poder na escolha das figuras penais pelo Poder Legislativo, o que se percebe claramente pela alteração do Código Penal por meio da Lei 13.330/2016 que tipifica, de forma mais gravosa, os crimes de furto e de receptação de semovente domesticável de produção, ainda que abatido ou dividido em partes.
PALAVRAS-CHAVE: Abigeato. Seletividade. Furto Qualificado
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. A Seletividade do Direito Penal 3.O Furto e a Receptação de Gado. 4. Conclusão. 5. Referências.
1. INTRODUÇÃO:
Em 2 de agosto de 2016, o Código Penal Brasileiro foi alterado pela Lei 13.330/2016, para tipificar de forma mais gravosa o abigeato, que significa, em termos mais simples, furto ou receptação de gado.
O objetivo deste estudo é mostrar a influência que a classe dominante exerce sobre as escolhas dos tipos penais, visando principalmente proteger seus interesses, utilizando para tanto, o poder de legislar, conferido aos Congressistas pelo povo, que legitima os seus representantes (Deputados e Senadores) a tutelarem o bem comum.
Quando os Parlamentares desviam o foco do bem comum, voltando-se à proteção de interesses privados, deslegitimam o Poder e violam o Estado Democrático de Direito, postulado da nossa Constituição Federal de 1988. Faz-se necessário este olhar crítico sobre estas “leis de interesses privados”, por meio do estudo da seletividade do direito penal.
2. A SELETIVIDADE DO DIREITO PENAL
A seletividade do Direito Penal é explicada pelas Teorias do Conflito, mais especificamente pela Teoria da Reação Social, também denominada de teoria do etiquetamento ou labelling approach.
De acordo com esta teoria, a explicação para o crime concentra-se nas respostas formais do Estado para o comportamento do indivíduo. O sistema penal seria, pois, uma forma de dominação social, resultante não de um consenso, mas instrumento de preservação de interesses das classes dominantes.
Também denominada de reação social, pois o que está em causa a princípio não é a desviação primária (primeiro crime), mas sim a seleção/filtro e a reação das agências de controle formal a este comportamento.
Desta forma, a sociedade tem os criminosos que quer, pois há um jogo de poder utilizado na escolha dos tipos penais, na escolha dos ilegalismos, conforme já denunciado por Michel Foucault em sua obra Vigiar e Punir. A sociedade, portanto, escolhe a conduta que ela quer que seja considerada crime e a punição que a ela deve ser imposta.
Neste jogo de poder, vence a classe dominante. Foucault explica que as condutas costumeiramente praticadas por pessoas das classes mais baixas são punidas mais severamente, enquanto que os ilegalismos das classes dominantes (ilegalismos de direito) são punidos de forma mais suave, geralmente por Tribunais Especiais e com multa, quase nunca gerando encarceramento.
Dentro desse contexto está a problemática da punição mais gravosa para o furto e receptação de gado, conforme será estudado no próximo tópico.
3. Furto e Receptação de Gado:
O Código Penal, no seu artigo 155, dispõe que deve ser punida com reclusão de 1 a 4 anos e multa a conduta de “Subtrair para si ou para outrem coisa alheia móvel”.
O parágrafo 6º por sua vez, incluído pela Lei 13.330/2016 assim dispõe: “a pena é de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos se a subtração for de semovente domesticável de produção, ainda que abatido ou dividido em partes no local da subtração.” (NR)
Após a leitura destes dispositivos legais, é natural o seguinte questionamento: qual o conceito de bem semovente? Estaria abrangido pela elementar “coisa móvel”?
De acordo com o dicionário jurídico do site direitonet (http://www.direitonet.com.br/dicionario/exibir/792/Bens-semoventes),
“bens semoventes são bens móveis que possuem movimento próprio, tal como animais selvagens, domésticos ou domesticados. Além destes também podem ser considerados bens móveis os suscetíveis de remoção por força alheia, desde que não altere a substância ou destinação econômico-social da coisa, sendo que a estes dá-se o nome de bens móveis propriamente ditos. Por fim, cumpre ressaltar que os bens também podem ser considerados móveis por determinação legal (energia, por exemplo) ou por antecipação (árvores que são plantadas justamente para serem cortadas no futuro)”
O conceito de bem semovente é extraído da leitura dos artigos 82 do Código Civil cumulado com os artigos 847, parágrafo 1º, III, 862, 886, III, , 620 IV, "c"e 742, II, todos do CPC de 2015.
Este diálogo de fontes, passando pelo Código Penal, buscando conceitos no Código Civil e Código de Processo Civil, nos dá a compreensão lógica de que, sob o ponto de vista jurídico, não houve necessidade desta reforma legislativa, uma vez que o bem jurídico já estava sob a devida tutela do Código Penal, por meio do caput do artigo 155, que tipifica o furto de coisa alheia móvel, estando o bem semovente alheio abrangido pela elementar “coisa alheia móvel” .
Então, qual a razão da inclusão deste parágrafo para agravar a conduta de furtar semovente domesticável de produção? A razão é de ordem de política criminal, do jogo de poder denunciado por Foucault, em 1975, mas tão válido para explicar a conjuntura do sistema penal hodierno.
Ora, a inclusão deste dispositivo penal deveu-se à atuação da bancada ruralista do Congresso Nacional, visando proteger interesses de proprietários rurais que praticam a pecuária, numa tentativa de defender interesses próprios e não o bem coletivo. É uma forma de usar o Poder, que, ressalte-se, não é de sua titularidade, mas sim do povo, para proteger de forma mais eficaz o seu patrimônio.
Em relação à receptação, houve a inclusão de uma nova modalidade. Conforme artigo 180-A do Código Penal, “Adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito ou vender, com a finalidade de produção ou de comercialização, semovente domesticável de produção, ainda que abatido ou dividido em partes, que deve saber ser produto de crime. Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.”
O raciocínio aplicado ao furto de gado, referente à desnecessidade de uma nova figura penal para agravar a pena, tem aplicação à receptação, tipo penal que depende de um crime patrimonial antecedente para existir, uma vez que possui elementar “que deve saber ser produto de crime.”
4. CONCLUSÃO:
Por todo o exposto, conclui-se que o sistema penal brasileiro é seletivo, objeto de dominação da classe dominante, que no intuito de proteger prioritariamente interesses individuais, tipifica e pune de forma mais severa as condutas que violem os seus bens jurídicos. O resultado inevitável nesse contexto de jogo de poder é o agravamento da desigualdade social e do sentimento de que a proteção da lei e do direito não é para todos, mas sim para uma minoria privilegiada.
5.REFERÊNCIAS:
1.BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e política criminal alternativa. In: Revista de Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, n.23, 1978, p.7-21
2.BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 5. Ed. Rio de Janeiro: Revan 2001.
3. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. Teoria del garantismo penal; trad. Perfecto Andrés Ibañez. Madird: Trotta, 1995.
4. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. Lígia M. Ponde Vassalo. Petrópolis: Vozes, 1987.
5. VIANA, Eduardo. Criminologia. 4.ed.rev.ampl.e atual.-Salvador: JusPODVM, 2016.
6. ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas. A perda da legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991.
7. BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848.htm, acesso em 21 de novembro de 2016
8.http://www.direitonet.com.br/dicionario/exibir/792/Bens-semoventes. Acesso em 23 de novembro de 2016
Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba, em maio de 2008. Exerceu o cargo de Analista Legislativo na Câmara Municipal de Cabedelo/PB 2009-2010. Foi Analista Judiciária do Tribunal de Justiça da Paraíba 2010-2013. Advogada inscrita na OAB-PB.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VALLéRIA LINS FALCãO DE CARVALHO ASSUNçãO, . O Abigeato e a Seletividade do Direito Penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 dez 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47904/o-abigeato-e-a-seletividade-do-direito-penal. Acesso em: 08 dez 2024.
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