Resumo: o estudo analisa as consequências do Direito Penal e para o Direito Civil para a conduta criminosa de atribuir a outrem a prática de crime sexual sabidamente falso, adentrando, para tanto, nas peculiaridades técnicas que revolvem os institutos do dano moral, do exercício regular de direito versus o abuso de direito, da conciliação processual e da extinção da punibilidade pela renúncia do ofendido.
Palavras-chave: estupro e outros crimes sexuais. Falsa acusação criminosa. Noções jurídicas do vocábulo “acusação”. Distinções entre calúnia e denunciação caluniosa. Dano moral in re ipsa. Dolo eventual e dolo direto. Independência das instâncias. A principiologia da conciliação.
Abstract: The study analyzes the consequences of Criminal Law and Civil Law for the criminal conduct of assigning to others the practice of a sex offense known to be false, entering, therefore, the technical peculiarities that revolve the institutes of moral damage, the regular exercise of a right versus its abuse, the conciliation procedure and the extinction of punishability by the resignation of the victim.
Keywords: Rape and other sexual crimes. False criminal accusation. Legal notions of the word "accusation". Distinctions between slander and slanderous denunciation. Moral damage in re ipsa. Possible malice and direct malice. Independence of the instances. The principle of conciliation.
Sumário: Introdução. 1. Consequências no Direito Penal. 2. Consequências no Direito Civil. 3. A alegação do exercício regular do direito de petição. 4. Celebração de acordo . Conclusão. Referências bibliográficas.
A falsa acusação de[1] crime de estupro[2] consiste em ato ilícito com repercussões tanto na esfera cível quanto na penal. A perniciosa atitude de quem se passa por vítima desse delito hediondo não se limita ao dever de indenizar, contra ela havendo também respostas do legislador criminal.
O presente texto tem por fito esmiuçar essas consequências jurídicas contra aquele que leva adiante as diferentes vertentes da calúnia, sem se esquecer das medidas de amparo à vítima do detrator. A figura da vítima foi por muito tempo posta de lado nos estudos do fenômeno criminoso[3], por conta do contexto histórico existente quando da formação do Direito Processual Penal moderno, idealizado e robustecido ante a figura dos Estados absolutos e totalitários. Contemporaneamente, por outro lado, fortalece-se a preocupação para com essa figura. Se antes os olhos dos juristas se voltavam quase que exclusivamente para o acusado, em virtude das imperiosas garantias que se lhe fizeram ofertar ao longo da experimentação histórica no campo processual penal, hoje já se voltam para aquele que sofre as numerosas consequências do crime.
“Acusação” no jargão jurídico é vocábulo que pode assumir os mais variados sentidos, sendo compatível com o presente tema aquele que corresponde à delação feita por qualquer pessoa contra outra pela suposta prática de infração penal. Afastada da noção mais técnica desta palavra, a acusação – nessa acepção popular – pode se dar por várias formas, vale dizer, verbal, escrita, e pode ocorrer entre pessoas conhecidas, diante de um público desconhecido, ou mesmo pela internet. O meio escolhido pelo agente não é aqui o objeto em enfoque. Partamos então de acusação como sinônimo de delatio criminis (espécie de notitia criminis), independentemente do instrumento pelo qual se concretiza, isto é, de acusação como a notícia que alguém leva à autoridade competente a respeito de um crime[4].
Consoante ensina a doutrina, “a notícia do crime, ou notitia criminis, pode ser oferecida por qualquer pessoa do povo e, obviamente, pode ter início a partir do próprio conhecimento pessoal do fato pela autoridade policial (artigo 5º, § 3º, CPP)”[5]. Nesse sentido, a notitia criminis pode chegar ao conhecimento do delegado de formas diversas, como, por exemplo, por comunicação de outros policiais, por matéria jornalística, boletim de ocorrência lavrado em sua delegacia, por informação prestada por conhecidos etc[6].
Isso posto, deve-se ter em mente que o sujeito que delata uma pessoa de ter contra ela (ou mesmo contra outrem) praticado estupro está acusando tal pessoa de incidir nas penas do artigo 213 do Código Penal. Em sentido leigo, a pessoa narra que foi obrigada a praticar sexo ou ato sexual equivalente contra a sua vontade. Em sentido técnico, ao formular a notícia, o sujeito retrata a situação fático-jurídica de ter sido em tese constrangido, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar outro ato libidinoso, praticando, com isso, um crime contra a dignidade e a liberdade sexuais. Observe-se que a lei não faz mais distinção entre estupro em sentido estrito e atentado violento ao pudor[7]: todo e qualquer ato libidinoso cometido nessas circunstâncias subsume-se à norma do artigo de lei supramencionado.
Em torno da questão gira evidente polêmica, em virtude da dificultosa produção de provas em muitos dos crimes sexuais, bem como das repercussões que a mera suspeita do cometimento de tamanha atrocidade pode desencadear aos olhos dos populares. Foi o que a sociedade testemunhou nos célebres episódios[8] da Escola Base[9], de Mike Tyson nos anos 1990[10], e de Jordan Chandler versus Michael Jackson[11]. Uma boa noção das consequências da disseminação de uma notícia de crime sexual pode ser vista no excelente longa-metragem dinamarquês “A Caça”[12].
Toda casuística desta natureza recebe o matiz da complexidade probatória, haja vista ser da própria natureza da relação sexual seu acontecimento velado, às escondidas. Os meios de prova testemunhais e alguns documentais (como gravação de vídeos) são mais raros nesse cenário.
E ainda há variáveis outras que podem conformar a solução para um ou para outro caso, como se vê, a título de exemplo, no cotejo da hipótese em que os sujeitos envolvidos realmente mantiveram atividades sexuais, embora um alegue ter sido coagido pelo outro a tanto, com a distinta hipótese em que alguém alega o mesmo, sem que, contudo, nada tenha de fato ocorrido – a produção de provas no primeiro caso, se pericial, pode influenciar e muito o convencimento das autoridades que tendem a lidar com o caso (no segundo, a prova pericial ficará prejudicada)[13]. Tendo havido ato libidinoso, a questão tende a se concentrar na autoria, e não mais na materialidade do crime, o que demonstra haver um complicador ainda maior quando se está diante de conhecidos que verdadeiramente trocaram afetos íntimos e o móvel da acusação se dá por vingança (v.g., ex-namorados).
A bem da verdade, o ato de comunicar falsamente um crime consiste em si mesmo em ato criminoso, e, como tal, irradia efeitos na seara jurídica que lhe é inerente, bem como na esfera cível. A despeito da dificuldade na produção de provas dos crimes sexuais, e consequentemente dos crimes de acusar falsamente de tais crimes, o Direito não se intimida e prevê então uma série de consequências. É o que passamos a explanar.
Ainda introdutoriamente, cabe uma ponderação. A falsidade em tela não corresponde, como uma açodada visão poderia indicar, ao delito de falsa comunicação de crime (artigo 340 do Código Penal)[14], porquanto neste, “ao contrário do que ocorre no crime de denunciação caluniosa, não há no delito em estudo a imputação a uma pessoa determinada da prática de crime. Se assim suceder, estará caracterizado o crime de denunciação caluniosa “[15].
Com efeito, como o estudo em voga tem por pressuposto a acusação de alguma pessoa individualizada, até porque concernente aos efeitos da gravosa acusação inverídica da prática de estupro, o tipo penal do artigo 340 do Código Penal resta afastado.
Pois bem. A capitulação de tal conduta pode se desmembrar em duas frentes[16]: ou o agente pratica o delito de calúnia, ou pratica o de denunciação caluniosa.
A calúnia, crime contra a honra, consiste na atribuição sabidamente falsa da prática de um fato criminoso a outra pessoa. Esse fato criminoso há de ser determinado:
Não basta, ademais, que o agente chame outra pessoa de assassino, ladrão, estelionatário, pedófilo, corrupto etc., porque, em todos esses casos, o agente não narrou um fato concreto, mas apenas xingou outra pessoa — o que configura crime de injúria.
(GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito penal esquematizado: parte especial / Coordenador: Pedro Lenza. – São Paulo: Saraiva, 2011, p. 235)
A denunciação aproxima-se relativamente ao tipo anterior, entretanto, traz elementos especializantes que não permitam uma perfeita identificação entre eles: nessa última situação, a acusação traiçoeira é mais grave, porque enseja a instauração de procedimentos contra o acusado, e movimenta a máquina estatal no sentido de apurar as notícias carreadas pelo acusador.
Como se percebe, portanto, as distinções a serem feitas para se verificar na prática se ocorreu um ou outro tipo penal seguem a lógica de que o tipo penal de denunciação caluniosa representa nada mais que o delito de calúnia acrescido da elementar de noticiar aquele (falso) crime à autoridade pública, causando a instauração de expedientes investigativos para sua apuração. Isso porque o tipo do artigo 339 do Código Penal é crime classificado como complexo – formado exatamente pela fusão da conduta do artigo 138 do Codex com a conduta de dar causa ao início de procedimentos estatais[17].
As diferenciações entre essas ilicitudes estão bem ilustradas nas lições doutrinárias:
Para a ocorrência do crime de denunciação caluniosa (art. 339) não basta a imputação falsa de crime, mas é indispensável que em decorrência de tal imputação seja instaurada investigação policial ou processo judicial. A simples imputação falsa de fato definido como crime pode constituir calúnia, que, como acabamos de examinar, constitui infração penal contra a honra, enquanto a denunciação caluniosa é crime contra a Administração da Justiça. (...)
Se houver imputação falsa, o crime poderá ser, em tese, o de denunciação caluniosa, que é de ação penal pública, não o de calúnia, de ação penal, de regra, privada.
(BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 2: parte especial: dos crimes contra a pessoa / — 12. ed. rev. e ampl. — São Paulo: Saraiva, 2012, p. 824)
Enquanto na calúnia há a imputação falsa da prática de um fato definido como crime, havendo somente a intenção de ofender a honra do imputado, na denunciação caluniosa o agente não só atribui à vítima a prática de um delito fantasioso como também o leva à ciência da autoridade, provocando a instauração de inquérito policial ou de demanda contra ela. Diante disso, outra diferença se extrai: o propósito do agente na denunciação não se basta em ofender a honra do acusado, senão também em molestar sua liberdade, submetendo-o, mediante engano do órgão policial ou jurisdicional, ao vexame e opressão de uma investigação policial ou de um processo judicial.
Uma derradeira diferenciação[18] é a de que a calúnia só existe quando ocorre imputação falsa de crime, enquanto na denunciação caluniosa pode referir-se a imputação falsa de crime e contravenção. Se a base fática for a mesma, a denunciação caluniosa absorve a acusação consistente em calúnia[19].
Em suma, para o ramo juscriminal, a conclusão é a de que em atribuindo o agente mera ofensa verbal cuja significância remeta a crimes sexuais, configura-se o crime de injúria (artigo 140 do Código Penal); em imputando a outrem o crime sexual que sabe falso ou que assume o risco de ser falso, propagando-o[20], comete calúnia (artigo 138 do Código Penal); e, em acusando o agente, junto à autoridade pública, uma pessoa de ter cometido a libidinosidade delituosa, e tendo início procedimento investigativo para sua averiguação, comete denunciação caluniosa (artigo 339 do Código Penal).
A principal consequência extrapenal para aquele que calunia alguém ou o denuncia caluniosamente às autoridades pelo crime de estupro é a responsabilização civil por danos morais.
Em título específico ao tema, o Código Civil de 2002 reserva todo um trato normativo aos atos ilícitos, dentre os quais se enquadra a conduta caluniosa aqui estudada. A narração de fato em tese criminoso à autoridade incumbida de sua apuração pode deixar a primeira impressão de se tratar de um direito. De fato, ela o é. Contudo, como a própria redação da norma codificada elucida, aquele que exerce uma faculdade consistente num primeiro momento em direito (subjetivo), mas acaba por transmutá-lo em abuso de direito, comete ato ilícito. Leiamos a legislação:
Artigo 187 do Código Civil. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
A reparação de danos de cunho moral possui assento constitucional enquanto direito fundamental, pois que a Magna Carta traz sua previsão em meio aos direitos com esta natureza (artigo 5º), assim: “ é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem” e “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (incisos V e X, respectivamente).
Portanto, como consectário das normatividades constitucional e legal[22], a violação da honra por uma falsa acusação enseja o pagamento de indenização a título de danos imateriais. Essa visão da acusação mentirosa como ato eivado de ilicitude geradora do dever de reparar danos já foi ventilada em precedente jurisprudencial, valendo trazer à baila o emblemático posicionamento da Corte Paulista:
Ação de indenização por danos morais. Vítima de falsa acusação de estupro por menor de idade. Elementos dos autos que demonstram que a ré tinha plena ciência da ausência de crime praticado pelo autor. Ato ilícito configurado. Dano moral que decorre da inegável angústia e abalos psíquicos que suporta a pessoa vítima de inquérito. Valor da indenização adequadamente fixado em R$10.000,00. Sentença mantida. Recurso da ré desprovido.
(TJ-SP - APL: 00258835220138260564 SP 0025883-52.2013.8.26.0564, Relator: Ana Lucia Romanhole Martucci, Data de Julgamento: 26/03/2015, 6ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 29/03/2015) (Grifos Nossos)
Simplificando a ideia, basta compreender que o ato calunioso ofende a honra, e essa ofensa à honra, que se traduz inevitavelmente em uma ofensa a um direito da personalidade, é exatamente o que configura o dano moral. O dano moral é reparado[23] por meio de indenização (pagamento de quantia em pecúnia) do ofensor ao ofendido.
Vale a transcrição do conceito de dano moral que é concedido com excelência no seguinte fragmento doutrinário:
Dano moral é o que atinge o ofendido como pessoa, não lesando seu patrimônio. É lesão de bem que integra os direitos da personalidade, como a honra, a dignidade, a intimidade, a imagem, o bom nome etc., como se infere dos arts. 1º, III, e 5º, V e X, da Constituição Federal, e que acarreta ao lesado dor, sofrimento, tristeza, vexame e humilhação. (...) O dano moral não é propriamente a dor, a angústia, o desgosto, a aflição espiritual, a humilhação, o complexo que sofre a vítima do evento danoso, pois esses estados de espírito constituem o conteúdo, ou melhor, a consequência do dano. A dor que experimentam os pais pela morte violenta do filho, o padecimento ou complexo de quem suporta um dano estético, a humilhação de quem foi publicamente injuriado são estados de espírito contingentes e variáveis em cada caso, pois cada pessoa sente a seu modo.
(GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 4 : responsabilidade civil /— 7. ed. — São Paulo : Saraiva, 2012, p. 353) (Grifos Nossos)
Daquele mesmo aresto paulista pode-se extrair que o dano moral decorre do próprio fato em si (in re ipsa), carecendo de maiores indagações se na situação concreta de acusação falsária haveria ou não a caracterização dessa espécie de dano. É, aliás, o que alerta a doutrina civilista:
O dano moral, salvo casos especiais, como o de inadimplemento contratual, por exemplo, em que se faz mister a prova da perturbação da esfera anímica do lesado, dispensa prova em concreto, pois se passa no interior da personalidade e existe in re ipsa. Trata-se de presunção absoluta. Desse modo, não precisa a mãe comprovar que sentiu a morte do filho; ou o agravado em sua honra demonstrar em juízo que sentiu a lesão; ou o autor provar que ficou vexado com a não inserção de seu nome no uso público da obra, e assim por diante.
(GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 4: responsabilidade civil / — 7. ed. — São Paulo : Saraiva, 2012, p. 363)
A responsabilidade de natureza cível nesse caso é da espécie extracontratual ou aquiliana, e, como tal, exige os pressupostos de ação ou omissão do agente, culpa em sentido lato, relação de causalidade entre conduta e resultado e dano para sua constatação[24]. Este o norte do ofendido a que se voltar quando da produção de provas.
A fixação de indenização por danos morais, é relevante dizer, pode ser feita já pelo juízo do crime quando do momento do sentenciamento condenatório, à luz da previsão do artigo 387, inciso IV, do Código de Processo Penal, como bem atenta recentíssimo julgado da Corte Cidadã:
RECURSO ESPECIAL. PENAL E PROCESSO PENAL. REPARAÇÃO CIVIL DO DANO CAUSADO PELA INFRAÇÃO PENAL. ART. 387, IV, DO CPP. ABRANGÊNCIA. DANO MORAL. POSSIBILIDADE. RECURSO IMPROVIDO.
1. Considerando que a norma não limitou e nem regulamentou como será quantificado o valor mínimo para a indenização e considerando que a legislação penal sempre priorizou o ressarcimento da vítima em relação aos prejuízos sofridos, o juiz que se sentir apto, diante de um caso concreto, a quantificar, ao menos o mínimo, o valor do dano moral sofrido pela vítima, não poderá ser impedido de faze-lo.
2. Ao fixar o valor de indenização previsto no artigo 387, IV, do CPP, o juiz deverá fundamentar minimamente a opção, indicando o quantum que refere-se ao dano moral.
3. Recurso especial improvido.
(STJ - RECURSO ESPECIAL Nº 1.585.684 - DF (2016/0064765-6); Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, Data do Julgamento - 09 de agosto de 2016) (Grifos Nossos)
É que a condenação criminal traz por força de lei o efeito de “tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime” (artigo 91, inciso I, do Código Penal).
Portanto, por este prisma, há duas vias para a consagração da pretensão reparatória dos danos de cunho incorpóreo ocasionados pela abusiva comunicação de um crime sexual – a via direta por ação cível indenizatória ordinária (sem ação criminal) ou a via indireta (consequência da condenação no foro criminal).
Em nosso sistema jurídico, com a prática de uma infração penal nascem duas pretensões distintas, a pretensão punitiva do Estado e a pretensão reparadora do particular ofendido. A inter-relação entre essas duas pretensões obedece a diferentes critérios, prevalecendo no Direito Pátrio o da independência das instâncias, consoante intelecção dos artigos 63 a 68 do Código de Processo Penal:
Por força desse sistema, as duas ações podem ser propostas de maneira independente, uma no juízo cível, outra no âmbito penal. Isso porque, enquanto a ação cível versa sobre questão de direito privado, de natureza patrimonial, a outra versa sobre o interesse do Estado em sujeitar o suposto autor de uma infração penal ao cumprimento da pena cominada na lei.
(...) o sistema pelo CPP é o da independência, com a peculiaridade de que a sentença penal condenatória já confere à vítima um título executivo judicial.
(LIMA, Renato Brasileiro de. Código de Processo Penal comentado/ Salvador: Juspodivm, 2016, p. 216)
Caso esse valor mínimo fixado automaticamente na sentença condenatória criminal para a indenização seja reputado pelo ofendido por inferior ao efetivamente devido, a lei autoriza que ele apure o dano efetivo em liquidação no juízo cível.
O Código Civil de 2002 veio abraçar essa noção em seu artigo 935, ao dispor que as responsabilidades cível e criminal são autônomas, o que se justifica, ademais, pelo fato de que o Direito Penal é a ultima ratio e o ilícito por ele combatido geralmente é mais grave que os ilícitos observados pelo legislador da seara cível[25]. No caso, entretanto, como o bem agredido com a falsa acusação é a honra da pessoa, a tutela se justifica em ambas as esferas, que, assim, por mais que sejam independentes, podem coexistir e amparar a vítima daquele ato ilícito.
Não se ignora o comum argumento lançado na tentativa de afastar a imputação de denunciação caluniosa com base no exercício regular de direito (de petição). É dizer: o acusador invoca a excludente de ilicitude prevista no artigo 23, inciso III, do Código Penal, na esperança de ver afastada sua má-fé em acusar outrem de um crime sexual. Mas essa escusa não procede se sopesada a intencionalidade do agente na casuística dos fatos e concluído pela presença do dolo. A acusação leviana de ato de tamanha gravidade escapa à mínima prudência esperada do homem médio e alcança facilmente o dolo no agir.
Realmente, como atenta a doutrina do Direito Penal,
quem delata (apresenta notitia criminis) e pede abertura de inquérito policial ou sindicância exerce um direito (art. 5º, II e §§ 1º e 5º, do CPP), e se exerce direito não pode praticar crime; pode, eventualmente, até cometer erro de avaliação ou equívoco, mas a ocorrência de qualquer destes, se demonstrada, afasta o elemento subjetivo, configurando a chamada verdade subjetiva, ou a conhecida boa-fé. (...) quem ousaria representar à autoridade competente ou noticiar simplesmente a prática de crimes se, quando a investigação redundasse em nada, o denunciante ou ofendido corresse o risco de responder por algum crime, quer contra a honra, quer contra a Administração da Justiça (art. 339). Seria a desmoralização completa da Administração Pública e a consagração absoluta da impunidade. (...) Em outros termos: a verdade subjetiva do agente elimina o dolo da imputação. Consequentemente, se houver erro escusável ou invencível de parte do agente, não existirá denunciação caluniosa.
(BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 5 :parte especial : dos crimes contra a administração pública e dos crimes praticados por prefeitos / - 6. ed. rev. e ampl. — São Paulo : Saraiva, 2012., p. 766)
Há julgados que refutam a argumentação que se escuda na descriminante, conforme lemos abaixo:
CIVIL. APELAÇÃO. COMUNICAÇÃO INFUNDADA DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL. INQUÉRITO POLICIAL ARQUIVADO POR AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. ABUSO DE DIREITO. ATO ILÍCITO CONFIGURADO. DANO MORAL. DEVER DE REPARAR. QUANTUM RAZOÁVEL. SENTENÇA MANTIDA. 1. Segundo a teoria do abuso de direito, prevista no artigo 187 do CC/02, configura ato ilícito a prática de uma conduta inicialmente tida como lícita, mas que durante seu exercício o titular excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. 2. É certo que a conduta da mãe de comunicar às autoridades a suspeita de abuso sexual contra sua filha configura, em tese, o exercício regular de um direito. Todavia, havendo comprovação que o exercício do direito foi levado a efeito sem a devida regularidade, há a prática de um ato ilícito. 3. Ainda que a recorrente tivesse o direito de comunicar às autoridades a suspeita que tinha sobre a ocorrência de algum abuso sexual sofrido por sua filha, em seu depoimento manifestamente excedeu seu direito, quando dirigiu ao apelado gravíssimas acusações sem elementos de provas suficientes para tal, fato que, à luz da teoria do abuso de direito, configura ato ilícito. 4. Evidente que a falsa acusação imputada ao autor, de ter praticado violência sexual contra sua neta de apenas 03 anos, realizada pela requerida sem qualquer indício de prova contundente, causa ao ofendido profunda angústia, com impacto devastador na vida de qualquer cidadão de bem, que se vê atingido em sua honra e imagem perante seus familiares e a comunidade em que vive, é apta a configurar dano moral. 5. A importância de R$20.000,00 (vinte mil reais) para a vítima mostra-se razoável para a espécie, suficiente para minorar os efeitos do abalo moral sofrido pelo autor, não tendo o condão de implicar enriquecimento ilícito da parte ofendida. 6. Valores reparatórios fixados em obediência ao princípio da razoabilidade devem ser mantidos pela instância revisora. 7. Recurso conhecido e desprovido.
(TJ-DF - APC: 20120111944702 DF 0053781-45.2012.8.07.0001, Relator: SANDOVAL OLIVEIRA, Data de Julgamento: 19/11/2014, 5ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE : 27/11/2014 . Pág.: 175)
Explica-se. Há de se ter em vista um maior rigor no trato da questão quando a acusação se dirige a um crime sexual, devido à abjeção causada por tal conduta[26], bem como à gravidade das penas a ela cominadas[27]. Por essa razão, é rigor se perquirir no caso concreto se o agente agiu imbuído de dolo ou de culpa em sentido estrito, ou mesmo sem qualquer culpa em sentido amplo. Essa análise assume capital relevância ante o tipo penal de denunciação caluniosa, na medida em que este pode restar eliminado se constatada a ausência de dolo direto por parte do acusador.
Ambos os crimes (do artigo 138 e do artigo 339 do Estatuto Repressor) inadmitem forma culposa[28]. A denunciação caluniosa, ademais, não guarda previsão para a modalidade cometida sob influência do dolo eventual, tendo em vista a locução “de que o sabe inocente” constante do dispositivo legal que traz sua previsão:
O crime de denunciação caluniosa só admite o dolo direto, sendo assim, é incompatível com a dolosidade eventual. Desse modo, se o denunciante tem dúvida acerca da responsabilidade do denunciado e faz a imputação, não há crime, mesmo que se apure posteriormente que o denunciado não havia cometido o delito. Só há crime, portanto, quando o agente sabe efetivamente da inocência da pessoa. Assim, se alguém se limita a dizer que supõe que Antonio cometeu certo crime, não pratica denunciação caluniosa, mesmo que Antonio seja inocente. Porém, se a pessoa sabe que Antonio não cometeu o crime e diz que acha que foi ele o autor do crime (apenas para disfarçar), existe a denunciação.
(GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito penal esquematizado: parte especial / – São Paulo : Saraiva, 2011.p. 777) (Grifos Nossos)
Mesmo assim, o agente que acusa inveridicamente outrem da prática de estupro responde no mínimo pelo delito de calúnia, ainda que seu dolo não seja direto em macular a honra alheia. Vale dizer, responde pelo artigo 138 do Código Penal, mesmo se imbuído de mero dolo eventual – ao assumir o risco de causar a ofensa, por mais que não a tenha querido diretamente[29]. A doutrina fundamenta essa compreensão: “quando alguém está na dúvida, não deve atribuir crime a outrem. Se o faz, e depois se demonstra que a imputação era falsa, responde pela calúnia porque agiu com dolo eventual em relação à falsidade da imputação.”[30]
Não se nega que a vítima de um crime sexual deva se socorrer das vias policiais e judiciais para ver seu violador penalmente sancionado. Mas deve fazê-lo se e quando revestida de elementos probatórios mínimos a conceder segurança à sua delação. Do contrário, inclusive, o suposto agressor restará invariavelmente absolvido, por decorrência do princípio constitucional da presunção de inocência e seu consectário lógico do in dubio pro reo. Ordinariamente, a pessoa vitimada por essa espécie de crime tem à sua disposição a prova pericial, visto que realizada no próprio corpo.
Cite-se, como mais um exemplo de leviandade na formulação de delação por estupro, a encerrar este tópico, a que foi objeto do seguinte julgado:
APELAÇÃO CRIMINAL. RECURSO DEFENSIVO. ESTUPROS EM CONTINUIDADE DELITIVA. PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO POR INSUFICIÊNCIA DE PROVA. Hipótese acusatória inteiramente dependente dos ditos de adolescentes (filha e sobrinha do acusado). Revelação surgida após ela (filha) ter sido expulsa de casa pelo pai, em razão de insubordinação, estimulada pela prima, que imputou ao réu a mesma conduta em relação à sua pessoa, sem receber muito crédito, a ofendida manifestando desejo de retornar ao convívio dos pais, mais tarde. Família disfuncional. Flagrante contradição nos ditos da ofendida. Declarações da menor que não guardam coerência desde o início da persecução penal. Possibilidade de falsa acusação que não pode ser descartada. Prova insuficiente. Absolvição que se impõe. APELO DEFENSIVO PROVIDO. (Apelação Crime Nº 70050637578, Sexta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: João Batista Marques Tovo, Julgado em 31/01/2013)
(TJ-RS - ACR: 70050637578 RS, Relator: João Batista Marques Tovo, Data de Julgamento: 31/01/2013, Sexta Câmara Criminal, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 15/02/2013)
Se em determinada concretude se visualizar tão somente a prática do delito de calúnia[31], deve-se atentar para a possibilidade de composição dos danos, isto é, de celebração de acordo acerca dos prejuízos causados.
Tal se afigura possível na medida em que a honra, por mais que seja um direito da personalidade, admite certos temperamentos no que diz respeito ao trato de sua reparação pecuniária, como aclara a doutrina:
Embora a honra como valor permanente da personalidade seja irrenunciável, o ofendido pode, circunstancialmente, declinar do direito à sua defesa; nesse sentido, até se pode falar em disponibilidade do bem jurídico; por seu caráter estritamente individual, cabe a seu titular decidir da conveniência e oportunidade de preservá-lo. Assim, o consentimento do ofendido, a despeito de algumas divergências, exclui a própria tipicidade da conduta ofensiva (alguns autores sustentam que é a antijuridicidade que fica excluída). Mas somente o titular do bem lesado pode consentir, e não seu representante legal. A renúncia ou o perdão, que não deixam de significar uma espécie de consentimento, ainda que tardiamente manifestado, excluem apenas a punibilidade, porque o crime já se aperfeiçoou.
(BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 2: parte especial: dos crimes contra a pessoa / - 12. ed. rev. e ampl. - São Paulo : Saraiva, 2012, p. 928)
Nessa situação conciliatória, incide artigo 74, parágrafo único, da Lei 9.099 de 1995, bem como o artigo 107, inciso V, do Código Penal[32], e o artigo 50 do Código de Processo Penal, todos eles concernentes ao instituto da renúncia por parte do ofendido, que é uma causa de extinção da punibilidade do ofensor.
Também assim para a hipótese de responsabilização apenas na área cível, o que é possível tendo em vista a referida independência das instâncias vista acima, quando então a oportunidade de acordo virá igualmente à tona, oportunidade esta que foi maximizada na novel legislação do processo civil, senão vejamos:
Artigo 3º, § 3o, do Novo Código de Processo Civil (Lei 13.105 de 2015). A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.
Art. 359. Instalada a audiência, o juiz tentará conciliar as partes, independentemente do emprego anterior de outros métodos de solução consensual de conflitos, como a mediação e a arbitragem.
Nessa toada, já se pode ler em comentários lançados sobre sua principiologia:
Nesta significativa perspectiva, muito mais enfático do que o anterior, o CPC recém-sancionado prevê ainda a criação de centros judiciários de solução consensual de conflitos, responsáveis pelas audiências de conciliação e mediação (art. 165); estabelece os princípios que informam a conciliação e a mediação (art. 166); faculta ao autor da demanda revelar, já na petição inicial, a sua disposição para participar de audiência de conciliação ou mediação (art. 319, inciso VII); estabelece o procedimento da audiência de conciliação ou de mediação (art. 334); e recomenda, nas controvérsias de família, a solução consensual, possibilitando inclusive a mediação extrajudicial (art. 694).
(CRUZ E TUCCI, José Rogério. Código de Processo Civil Anotado, coordenado por CRUZ E TUCCI, José Rogério e outros. AASP e OAB/PR – 2015; disponível em http://www.oabpr.com.br/Noticias.aspx?id=22257, p. 07)
Por tudo isso que acima se expôs pode-se concluir que o agente que acusa uma vítima de ter ela cometido um crime sexual, sabendo-o falso (ou ao menos assumindo o risco de sê-lo), pratica no mínimo o delito de calúnia (artigo 138 do Código Penal), ou de denunciação caluniosa (artigo 339 do Código Penal), podendo ser responsabilizado, outrossim, na esfera cível, reparando pecuniariamente os danos morais (e mesmo os materiais) advindos de sua inadvertida conduta. No atual estágio das Ciências Processuais, e diante do panorama legislativo atualmente vigente (em especial o Novo Código de Processo Civil), vislumbra-se viável e até recomendável a adoção da postura conciliatória entre as partes envolvidas no conflito, o que somente resta comprometido caso a atitude do falso acusador dê impulso a atividades estatais para a apuração da mentira por ele delatada.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 2: parte especial: dos crimes contra a pessoa / — 12. ed. rev. e ampl. — São Paulo: Saraiva, 2012
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 5 :parte especial : dos crimes contra a administração pública e dos crimes praticados por prefeitos / - 6. ed. rev. E ampl. — São Paulo : Saraiva, 2012
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, volume 3, parte especial: dos crimes contra a dignidade sexual a dos crimes contra a administração pública (arts. 213 a 359- H) /– 10. ed. – São Paulo : Saraiva, 2012
CRUZ E TUCCI, José Rogério et al. Código de Processo Civil Anotado, coordenado por CRUZ E TUCCI, José Rogério e outros. AASP e OAB/PR – 2015; disponível em http://www.oabpr.com.br/Noticias.aspx?id=22257
Dicionário Aulete-Digital. Acessível in: http://www.aulete.com.br. Acesso em: novembro de 2016.
ESTEFAM, André. Direito penal esquematizado: parte geral / André Estefam e Victor Eduardo Rios Gonçalves. Coordenação: Pedro Lenza. São Paulo: Saraiva, 2012
FARIAS, Cristiano Chaves de et al. Código Civil para concursos; 2ª edição rev., ampl. e atual. / Salvador: Juspodivm, 2014
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil esquematizado v. 1 / Coord. Pedro Lenza – 2. ed. – São Paulo: Saraiva, 2012
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 4 : responsabilidade civil /— 7. ed. — São Paulo : Saraiva, 2012
GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito penal esquematizado: parte especial / Coordenador: Pedro Lenza. – São Paulo: Saraiva, 2011
LIMA, Renato Brasileiro de. Código de Processo Penal comentado/ Salvador: Juspodivm, 2016
MASSON, Cleber. Código Penal comentado / 2ª ed. rev., atual. e ampl.. – Rio de Janeiro; Forense; São Paulo: Método, 2014
MASSON, Cleber. Direito penal esquematizado - Parte geral - vol.1 / - 10.ª ed. rev., atual. e ampl. - Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2016
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de·processo penal /. -15.ed., ver. e atual. - Rio de Janeiro: LumenJuris, 2011
PENTEADO FILHO, Nestor Sampaio. Manual esquemático de criminologia / – 2. ed. – São Paulo: Saraiva, 2012
REIS, Alexandre Cebrian Araújo. Direito processual penal esquematizado / Alexandre Cebrian Araújo Reis e Victor Eduardo Rios Gonçalves ; coordenador Pedro Lenza. – 2. ed. – São Paulo : Saraiva, 2013
http://g1-globocom.jusbrasil.com.br/noticias/113648875/stj-condena-sbt-a-pagar-indenizacao-no-caso-escola-base. Acesso em: 20 de outubro de 2016.
http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI195776,41046-SBT+e+condenado+por+reportagens+sensacionalistas+sobre+caso+Escola. Acesso em 20 de outubro de 2016.
http://noticias.bol.uol.com.br/ultimas-noticias/esporte/2015/03/26/ha-23-anos-mike-tyson-era-preso-acusado-de-estuprar-miss-de-18-anos.htm. Acesso em: 20 de outubro de 2016.
Jornal (digital) Folha de São Paulo - link: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u49137.shtml
http://www.imdb.com/title/tt2106476/?ref_=ttrel_rel_tt.
[1] Preferimos utilizar no título deste trabalho a expressão “falsa acusação de estupro”. Contudo, a regência do verbo “acusar” admite os complementos das preposições “de” ou “por”, sem haver grandes consequências na adoção de um ou outro vocábulo. (Verbete “acusar” do Dicionário Aulete-Digital. Acessível in: http://www.aulete.com.br/acusar).
[2] O tema deve necessariamente abarcar a falsa acusação de cometimento de outros crimes sexuais, tomando-se por parâmetro o estupro por ser mais emblemático no estudo desses crimes. Assim, não se excluem da compreensão capitaneada neste trabalho a falsa delação de estupro de vulnerável (artigo 217-A do Código Penal), de corrupção de menores (artigo 218), e de outros tipos penais.
[3] “A vítima, que sofre um resultado infeliz dos próprios atos (suicida), das ações de outrem (homicídio) e do acaso (acidente), esteve relegada a plano inferior desde a Escola Clássica (preocupava-se com o crime), passando pela Escola Positiva (preocupava-se com o criminoso). Por conta de razões culturais e políticas, a sociedade sempre devotou muito mais ódio pelo transgressor do que piedade pelo ofendido.” (PENTEADO FILHO, Nestor Sampaio. Manual esquemático de criminologia / – 2. ed. – São Paulo: Saraiva, 2012, p. 107)
[4] Esse esclarecimento se afigura de extrema pertinência na medida em que em sentido técnico-jurídico não estaria correto se tratar por acusação a delação feita por qualquer cidadão à autoridade, senão a formulação de pretensão punitiva por parte do titular da ação penal. Essa noção remete ao sistema acusatório que orienta predominantemente a persecutio criminis no Direito Pátrio, tendo em vista a atribuição a órgão distinto do julgador a tarefa de acusar os indivíduos. O recebimento da acusação pelo Judiciário é o que marca o início da ação penal, antes da qual não há verdadeiramente uma acusação contra o investigado. Sobre isso, merece transcrição o seguinte fragmento da doutrina: “a solução da lide só será dada pelo Poder Judiciário após lhe ser apresentada uma acusação formal pelo titular do direito de ação. Uma vez aceita esta acusação, estará iniciada a ação penal, sendo que, durante o seu transcorrer, deverão ser observadas as regras que disciplinam o seu tramitar até que se chegue à decisão final.” (REIS, Alexandre Cebrian Araújo; GONÇALVES, Victor Eduardo Rios Gonçalves. Direito processual penal esquematizado; coordenador Pedro Lenza. – São Paulo : Saraiva, 2012, p. 31)
[5] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de·processo penal /. -15.ed., ver. e atual. - Rio de Janeiro: LumenJuris, 2011, p. 56.
[6] REIS, Alexandre Cebrian Araújo. Direito processual penal esquematizado / Alexandre Cebrian Araújo Reis e Victor Eduardo Rios Gonçalves ; coordenador Pedro Lenza. – 2. ed. – São Paulo : Saraiva, 2013, p. 68.
[7] A Lei 12.015 de 2009 trouxe a referida inovação, passando a englobar em um só tipo penal as modalidades de condutas antes correspondentes ao tipo penal de atentado violento ao pudor. Não se pode ter este por extinto, pois que verificado o fenômeno da continuidade normativo-típica. É o que reza a doutrina: “não houve abolitio criminis no tocante ao atentado violento ao pudor (princípio da continuidade típico normativa)” (MASSON, Cleber. Código Penal comentado / 2ª ed. rev., atual. e ampl.. – Rio de Janeiro; Forense; São Paulo: Método, 2014, p. 822.
[8] Não se lança qualquer juízo de valor acerca do mérito desses casos, isto é, sobre a inocência ou a culpa dos envolvidos, apenas a eles se fazendo referência por conta da dimensão que respectivamente adquiriram nos noticiários.
[9] http://g1-globocom.jusbrasil.com.br/noticias/113648875/stj-condena-sbt-a-pagar-indenizacao-no-caso-escola-base. Acesso em: 20 de outubro de 2016. http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI195776,41046-SBT+e+condenado+por+reportagens+sensacionalistas+sobre+caso+Escola. Acesso em 20 de outubro de 2016.
[10] http://noticias.bol.uol.com.br/ultimas-noticias/esporte/2015/03/26/ha-23-anos-mike-tyson-era-preso-acusado-de-estuprar-miss-de-18-anos.htm. Acesso em: 20 de outubro de 2016.
[11] Dentre outros que envolveram o famoso cantor, como explica o hebdomadário Folha de São Paulo no seguinte link: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u49137.shtml
[12] Cadastrado no Banco de Dados da Internet de Filmes sob o link: http://www.imdb.com/title/tt2106476/?ref_=ttrel_rel_tt.
[13] Essas nuances são retratadas mais precisamente pelos doutrinadores quando do estudo do tipo penal de denunciação caluniosa, que será comentado mais adiante, como se pode ler no seguinte fragmento:
“A falsidade da imputação: a denunciação caluniosa reclama não somente a imputação de crime ou de contravenção penal. É preciso mais. A imputação há de ser falsa, o que pode ser verificado em três situações: a) o crime ou contravenção penal atribuído a alguém não existiu; b) o crime ou contravenção penal foi praticado por pessoa diversa; c) a pessoa imputada realmente praticou um crime ou contravenção penal, mas o agente lhe imputa infração penal diversa e substancialmente mais grave.” (MASSON, Cleber. Código Penal comentado / 2ª ed. rev., atual. e ampl.. – Rio de Janeiro; Forense; São Paulo: Método, 2014, p. 1232).
[14] Art. 340 do CP - Provocar a ação de autoridade, comunicando-lhe a ocorrência de crime ou de contravenção que sabe não se ter verificado.
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
[15] CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, volume 3, parte especial: dos crimes contra a dignidade sexual a dos crimes contra a administração pública (arts. 213 a 359- H) /– 10. ed. – São Paulo : Saraiva, 2012, p. 739.
[16] Seria temerário asseverar que as únicas consequências para a falsa acusação de crime seriam as do enquadramento como calúnia ou denunciação caluniosa. Sabe-se que uma falsa acusação pode reverberar em outras alas jurídicas, como a cível, a respeito da qual se abrirá tópico adiante, ou mesmo na criminal, pois que tipos penais outros há que combatem essa deslealdade, como o do artigo 41 da Lei das Contravenções Penais (provocar alarma ou pânico, anunciando perigo inexistente) e o do artigo 19 da Lei de Improbidade Administrativa (falsa representação por ato de improbidade). Não bastasse, ainda há outras previsões legais. A título de ilustração, vale esclarecer que se encontram no Código Penal Militar, em seu artigo 343, a denunciação caluniosa militar, e no Código Eleitoral, no artigo 324, o delito de calúnia eleitoral.
[17] MASSON, Cleber. Direito penal esquematizado - Parte geral - vol.1 / - 10.ª ed. rev., atual. e ampl. - Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2016., p. 339.
[18] Há outras diferenças entre os tipos penais em estudo. Aprofundamentos, no entanto, não se afiguram imprescindíveis ao presente debate. A título de exemplo, como se viu rapidamente alhures, para o tipo penal de calúnia, a persecução penal procede mediante queixa; para a denunciação, a ação penal é pública incondicionada.
[19] CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, volume 3, parte especial: dos crimes contra a dignidade sexual a dos crimes contra a administração pública (arts. 213 a 359- H) / 10. ed. – São Paulo: Saraiva, 2012, p. 736.
[20] Uma das distinções entre os crimes contra a honra de injúria e de calúnia reside bem na questão de o agente propalar a ofensa neste último, atingindo sua honra objetiva (a imagem e reputação da pessoa perante a sociedade). Nesse sentido: GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito penal esquematizado : parte especial / – São Paulo : Saraiva, 2011, p. 253. E a preocupação do legislador com a difusão da alarmante notícia de um (falso) crime é tamanha que equiparou no § 1º do artigo 138 a conduta daquele que assim procede, mesmo não tendo dele se originado a notícia.
[21] Deliberou-se por dividir a responsabilização nas duas diferentes áreas do Direito tendo em vista a independência das instâncias, reafirmada pela própria lei: “art. 935 do Código Civil: a responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal”.
[22] Não se deve olvidar que a normatividade positivada na legislação vai além. Juntamente ao artigo 186 do Código Civil – cláusula geral de responsabilidade civil – deve ser chamado à incidência o artigo 927, que reza, em sua cabeça: “aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”, geral nesse assunto, bem como o específico artigo 953: “a indenização por injúria, difamação ou calúnia consistirá na reparação do dano que delas resulte ao ofendido. Parágrafo único. Se o ofendido não puder provar prejuízo material, caberá ao juiz fixar, equitativamente, o valor da indenização, na conformidade das circunstâncias do caso.” Da literalidade deste dispositivo já se pode inferir haver consequências outras para além da fixação de danos morais, pois que a lei fala em danos que resultem da ofensa, danos estes que podem ser, inclusive, materiais, como por exemplo no caso de alguém que tem sua situação profissional e laboriosa agravada pela difusão da mentira no ambiente laboral. Em mais de uma passagem a lei assenta a multifacetada característica dos danos: “art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar.”
[23] A bem da verdade, como lecionam os estudiosos, “o direito à honra continua sendo pecuniariamente imensurável; quer dizer, o dinheiro que (...) receberá a título de indenização pelo dano moral não equivale ao valor do direito lesionado. É apenas uma quantia arbitrada para fins de tentar atenuar a agressão moral havida.” (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil : parte geral, volume 1 /— 5. ed. — São Paulo : Saraiva, 2012, p. 309)
[24] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil esquematizado v. 1 / Coord. Pedro Lenza – 2. ed. – São Paulo: Saraiva, 2012, p. 732.
[25] FARIAS, Cristiano Chaves de et al. Código Civil para concursos; 2ª edição rev., ampl. e atual. / Salvador: Juspodivm, 2014, p. 630.
[26] Tanto é assim que os tipos penais de estupro e de estupro de vulnerável (artigos 213 e 217-A do Código Penal, respectivamente) recebem a pecha de hediondo pela Lei 8.072 de 1990 (artigo 1º, incisos V e VI)
[27] A pena do estupro é, em regra, de 6 a 10 anos. Diz-se em regra porque a lei prevê modalidades qualificadas para este crime, podendo o preceito secundário do tipo remontar a 30 anos de reclusão (na espécie preterdolosa do artigo 213, §2º, do Código Penal). Por conta desta alta cominação de pena, o estupro é crime que não tolera, como já era de se esperar, em quaisquer das benesses legislativas dos delitos de menor potencial ofensivo (pois que é delito grave do ponto de vista quantitativo da pena), não permitindo sequer suspensão condicional o processo. Não autoriza igualmente a progressão de regime de cumprimento de pena senão após o cumprimento de 3/5 ou 2/5 da pena (conforme vislumbrada ou não a reincidência na hipótese), nem a anistia, a graça ou o indulto, e o livramento condicional do condenado por este tipo demanda fração mais rígida (2/3). Não bastasse, o lapso temporal previsto para a prisão temporária nesse crime hediondo é mais extenso: 30 dias , prorrogáveis por mais 30. Por fim, por força da Lei 12.015 de 2009, o estupro já é crime impulsionado por ação penal pública, não se procedendo mais mediante queixa-crime (artigo 225 do Código Penal).
[28] Por desdobramento da excepcionalidade do tipo penal culposo, que exige previsão expressa, artigo 18, parágrafo único, do Código Penal: “salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente”.
[29] “Não se pode confundir culpa consciente com dolo eventual. Em ambos, o autor prevê o resultado, mas não deseja que ele ocorra; porém, na culpa consciente, ele tenta evitá-lo; enquanto no dolo eventual, mostra-se indiferente quanto à sua ocorrência, não tentando impedi-lo. Assim, por exemplo, se o agente dirige um veículo perigosamente e em alta velocidade e vê um pedestre atravessando a rua, tentando, sem êxito, evitar o atropelamento, teremos culpa consciente. Se, nas mesmas circunstâncias, em vez de buscar evitar o acidente, o motorista continua com sua direção imprudente, pensando “se morrer, morreu”, haverá dolo eventual” (ESTEFAM, André. Direito penal esquematizado: parte geral / André Estefam e Victor Eduardo Rios Gonçalves. Coordenação: Pedro Lenza. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 293).
Adaptando esse clássico modo de aclarar os possíveis desdobramentos do elemento subjetivo no crime ao cenário da calúnia, tem-se que aquele que propaga informação inverídica consistente em crime que atribui a outrem sob a consciência de que “tanto faz” se o fato chegará a ofender ou não a vítima, pratica calúnia, porque o dolo eventual, que se afasta da culpa, já permite a responsabilização penal daquele agente.
[30] GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito penal esquematizado : parte especial /– São Paulo : Saraiva, 2011, p. 235.
[31] Diz-se isso porquanto o tipo penal de denunciação caluniosa (artigo 339 do Código Penal), com pena in abstrato de reclusão de dois a oito anos, inadmite seu enquadramento como infração de menor potencial ofensivo, e não permite também a suspensão condicional do processo, consoante a Lei 9.099 de 1995.
[32] A doutrina alerta para o fato de que a norma do artigo 104, parágrafo único, do Código Penal, na parte em que reza que “não a implica, todavia, o fato de receber o ofendido a indenização do dano causado pelo crime” encontra derrogação diante da norma especial da Lei dos Juizados Especiais, prevalecendo assim que o pagamento de indenização do agente à vítima causa a extinção da punibilidade (LIMA, Renato Brasileiro de. Código de Processo Penal comentado/ Salvador: Juspodivm, 2016, p. 207).
Especialista em Direito Penal e Processual Penal e Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Assistente jurídico do Ministério Público de São Paulo. Foi advogado e funcionário do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ROMANO, Phelipe Gabriel. Repercussões jurídicas da falsa acusação de estupro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 dez 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/48045/repercussoes-juridicas-da-falsa-acusacao-de-estupro. Acesso em: 23 dez 2024.
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