Resumo: o presente artigo tem a finalidade de mostrar a importância do reconhecimento da multiparentalidade como garantia do direito à felicidade, norte interpretativo que direciona o juiz a uma solução jurídica para além da letra da lei, visando à efetiva concretização dos direitos da personalidade.
Palavras-chave: Multiparentalidade. Paternidade biológica. Paternidade Socioafetiva
Sumário: 1. Introdução. 2. O direito personalíssimo ao reconhecimento do estado de filiação. 3. O direito à felicidade como diretriz hermenêutica e norma constitucional implícita. 4. O direito ao Reconhecimento da Multiparentalidade e seus efeitos jurídicos. 5.Conclusão. 6.Referências.
1. INTRODUÇÃO:
O direito civil e, de forma mais específica, o direito de família, necessita renovar-se constantemente, a fim de adaptar-se às mudanças da sociedade. O Código Civil de 2002, em que pese atual, nasceu com disposições legais já ultrapassadas para a época, de forma a não considerar as diversas formas de família existentes na sociedade.
Deste modo, a doutrina e a jurisprudência, de forma inovadora, passaram a ampliar este conceito de família para entender que a sua configuração tem como principal pressuposto o vínculo afetivo entre as pessoas, de forma a reconhecer o conceito eudemonista de família, como sustentáculo do direito à felicidade. Em razão dessas mudanças, surgem situações jurídicas a serem solucionadas, a exemplo da multiparentalidade e seus efeitos jurídicos.
2. O DIREITO PERSONALÍSSIMO AO RECONHECIMENTO DO ESTADO DE FILIAÇÃO
O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, com previsão nos artigos 1.607 a 1.617 do Código Civil. Diz-se personalíssimo porque apenas o filho tem interesse jurídico em ser reconhecido, necessitando, pois, quando maior, do seu consentimento e, caso seja menor, poderá impugnar este reconhecimento nos quatro anos que se seguirem à maioridade ou à emancipação, nos termos do artigo 1.617 do código civilista.
Esta legitimidade ativa para a ação investigatória necessita de representação (se menor de 16 anos) ou assistênccia (se menor entre 16 e 18 anos) dos pais ou responsável.
Cumpre lembrar ainda que o reconhecimento é imprescritível, nos termos da súmula 149 do STF (“é imprescritível a ação de investigação de paternidade mas não o é a da petição de herança”). É incondicional, ou seja, não sujeito à condição ou a termo. É indisponível, não podendo ser renunciado, cabendo ao filho o exercício do direito.
3. O DIREITO À FELICIDADE COMO DIRETRIZ HERMENÊUTICA E NORMA CONSTITUCIONAL IMPLÍCITA:
A felicidade é um conceito amplíssimo, sofrendo variações conforme os interesses e objetivos de cada indivíduo. Pode-se dizer que felicidade é um estado de espírito. É estar bem consigo mesmo, aceitar-se e ser aceito pela sociedade, sem discriminações, preconceitos, rótulos. É poder gozar de direitos de forma isonômica, mas ao mesmo tempo ser amparado pelo Estado quando as suas diferenças o desiguale.
Cabe a cada indivíduo, pois, definir o que é a sua felicidade, devendo o Estado propiciar os meios adequados para que este direito seja assegurado.
O direito à busca da felicidade foi objeto de proposta de Emenda Constitucional, de autoria do então Senador da Republica Cristovam Buarque, em 2010. O objetivo era positivar o direito, incluindo-o no rol dos direitos sociais previsto no artigo 6 º da Constituição Federal. Porém, em razão de excesso de prazo no seu trâmite, a referida PEC foi arquivada em 2014.
Em que pese o arquivamento da PEC, o direito à busca da felicidade é norma constitucional implícita, derivada do postulado da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil, previsto no inciso III do artigo 1º da Constituição Federal de 1988.
Mas, se não há positivação, como o Estado pode garantir efetividade ao direito à busca da felicidade? Simplesmente respeitando e cumprindo a Constituição Federal em sua plenitude, observando o fundamento da dignidade da pessoa humana, o princípio da isonomia previsto no caput do artigo 5º, a liberdade de expressão, a intimidade, a vida privada e os demais direitos fundamentais.
Ao cumprir fielmente a Constituição Federal, em especial os direitos e garantias individuais, o Estado assegura aos indivíduos o direito à busca da felicidade.
O direito à felicidade é também uma diretriz hermenêutica bastante utilizada pelo Supremo Tribunal Federal para fundamentar suas decisões no campo dos direitos da personalidade, a exemplo do direito à multiparentalidade.
É, pois, utilizado para chegar-se a conclusões jurídicas mais adequadas, mais condizentes com a realidade de cada pessoa, levando-se em conta a ideia primordial de que o direito deve servir à plena satisfação dos jurisdicionados e não apenas para encontrar uma resposta formal a uma causa apresentada ao Judiciário.
Cada ser humano é único em sentimentos e anseios. O direito necessita desta compreensão de individualidade para que cumpra fielmente o seu papel de garantir paz e harmonia social. Eis, então, a importância do direito à busca da felicidade como diretriz hermenêutica no ato de decidir.
4. O DIREITO AO RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE E SEUS EFEITOS JURÍDICOS :
A paternidade biológica é resultante de vínculo sanguíneo. A socioafetiva, por sua vez, é oriunda da relação de afeto, estando protegida pelo artigo 1.593 do Código Civil quando dispõe sobre a possibilidade de parentesco de outra origem que não a sanguínea.
Estes casos de multiparentalidade são muito comuns no panorama atual da nossa sociedade, em que cresce demasiadamente o número de famílias mosaico, caracterizadas pela multiplicidade de vínculos.
Neste contexto, o direito depara-se com a dificuldade e, até mesmo, impossibilidade de exigir que o filho opte pelo reconhecimento de uma das duas paternidades em seu registro de nascimento, pois esta opção ,além de desnecessária, é injusta.
O direito ao reconhecimento da paternidade biológica é um direito constitucional previsto na §6 do artigo 227 da Constituição Federal, que assim dispõe:
§ 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
A paternidade socioafetiva, por sua vez, tem fundamento no princípio da proteção integral, previsto no artigo 227 caput da Constituição Federal:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010)
Percebe-se que tanto o reconhecimento da paternidade socioafetiva quanto a biológica estão protegidas pela Constituição Federal, sem ordem de prevalência de uma em detrimento da outra.
Ademais, no âmbito infraconstitucional, o Código Civil, no artigo 1.593 dispõe que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem”.
Admitindo esta realidade fática e jurídica, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o RE 898060-SC, com louvável maestria, aprovou a seguinte tese:
“A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios".
Ressalte-se, em que pese esta tese mencionar apenas a paternidade, o STF já decidiu casos em que reconheceu a simultaneidade de maternidades (biológica e socioafetiva), de forma a considerar que a dupla maternidade é um pedido juridicamente possível, conforme RESP 1.328.830-MS, corroborando a não discriminação de sexos.
Ademais, tramita no Legislativo o Projeto de Lei 470/2013 (Estatuto das Famílias), que objetiva positiviar a igualdade entre a filiação socioafetiva e biológica, nos seguintes termos:
Art. 75. Os filhos, independentemente de sua origem biológica ou socioafetiva, têm os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações ou práticas discriminatórias.
Superada a questão da possibilidade do reconhecimento da multiparentalidade no Registro Civil, resta o esclarecimento da seguinte dúvida: quais os efeitos jurídicos deste reconhecimento simultâneo?
O STF já se manifestou no sentido de que a paternidade socioafetiva não exime de responsabilidade o pai biológico, devendo as obrigações de educação, alimentação e moradia serem cumpridas por ambos.
Ponto polêmico é em relação aos direitos sucessórios, não havendo ainda jurisprudência consolidada sobre a matéria.
Em sede do Recurso Extraordinário que deu origem à tese sobre o direito ao reconhecimento da Multiparentalidade, o Ministério Público Federal alertou o Judiciário sobre a necessidade de estar atento a demandas futuras que visem exclusivamente o patrimônio do pai biológico, mas ao mesmo tempo pontuou que :
“Eventuais abusos podem e devem ser controlados no caso concreto. Porém, esperar que a realidade familiar se amolde aos desejos de um ideário familiar não é só ingênuo, é inconstitucional.”
Resta, pois, ao Judiciário, ao decidir eventuais demandas sobre Reconhecimento de Multiparentalidade, ter a sensibilidade e perspicácia para apurar se o caso visa salvaguardar um direito da personalidade ou se tem intuito meramente patrimonial.
5. CONCLUSÃO:
Conclui-se, pois, que a possibilidade jurídica do reconhecimento da multiparentalidade constitui um avanço importantíssimo na concretização dos direitos fundamentais e da busca da felicidade.
Ademais, a ausência de positivação deste direito não significa que a Constituição Federal não o proteja. Ao contrário, está implícito em todos os direitos da personalidade, sendo a eles inerente.
O direito de ter o reconhecimento judicial de dois pais ou duas mães é constitucional e indisponível, devendo ser garantido aos indivíduos, com os efeitos legais dele decorrentes: alimentação, educação, saúde, moradia e, inclusive, direitos sucessórios.
Eventual demanda de um filho que haja de má fé, que vise um enriquecimento ilícito, um interesse patrimonial, deve ser devidamente apurado pelo Judiciário, não sendo, pois, impeditivo para que não reconheçamos a importância desta tese do STF sobre a simultaneidade de paternidade na concretização da felicidade.
6. REFERÊNCIAS:
1. BRASIL. Código Civil. Lei n° 10406, de 10 de janeiro de 2002.
2. BRASIL. Constituição Federal, de 05.10.1988
3. Spagnol, Debora. Direito à felicidade.
Disponível em ://www.blogdothame.blog.br/v1/2016/11/05/direito-a-felicidade/ Acesso em 07/12/2016
4. Paternidade socioafetiva não exime de responsabilidade o pai biológico, decide STF.
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=325781. Acesso em 07/12/2016
5.Fugimoto, Denise. Paternidade socioafetiva e paternidade bioógica: possibilidade de coexistência.
https://denisefugimoto.jusbrasil.com.br/artigos/151621064/paternidade-socioafetiva-e-paternidade-biologica-possibilidade-de-coexistencia. Acesso em 07/12/2016
6.Karlla de Lima, Adriana. Reconhecimento de paternidade socioaetiva e suas consequências no mundo jurídico.
http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9280. Acesso em 06/12/2016
7.Constituição e o Supremo.http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/constituicao.asp. Acesso em 04/12/2016
8.Fernando Pinheiro, Raphael. A positivação da felicidade como direito fundamental: o projeto de Emenda Constitucional 19/2010.
http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11701. Acesso em 07/12/2016.
9.Senado Federal. Proposta de Emenda Constitucional nº 19 de 2010 (Pec da Felicidade)
https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/97622. Acesso em 08/12/2016
10.Fernando Pinheiro, Raphael . A família mosaico e os seus reflexos no direito: os meus, os teus, os nossos
http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12157. Acesso em 05/12/2016
11.STF admite coexistêcia de parentalidades simultâneas. http://www.ibdfam.org.br/noticias/6118/STF+admite+coexist%C3%AAncia+de+parentalidades+simult%C3%A2neas. Acesso em 05/12/2016.
12.Calderón, Ricardo. Reflexos da decisão do STF de acolher socioafetividade e multiparentalidade
http://www.conjur.com.br/2016-set-25/processo-familiar-reflexos-decisao-stf-acolher-socioafetividade-multiparentalidade. Acesso em 05/12/2106
Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba, em maio de 2008. Exerceu o cargo de Analista Legislativo na Câmara Municipal de Cabedelo/PB 2009-2010. Foi Analista Judiciária do Tribunal de Justiça da Paraíba 2010-2013. Advogada inscrita na OAB-PB.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VALLéRIA LINS FALCãO DE CARVALHO ASSUNçãO, . O Reconhecimento da multiparentalidade como garantia do direito à felicidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 dez 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/48505/o-reconhecimento-da-multiparentalidade-como-garantia-do-direito-a-felicidade. Acesso em: 08 dez 2024.
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