RESUMO: O presente estudo visa analisar a recente decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, em sede do REsp nº 1640084-SP apresentado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
Palavras-chave: Desacato –Funcionário Público – Pacto de São José da Costa Rica - Status Supralegal - Descriminalização.
INTRODUÇÃO
A aproximação com o tema em discussão ocorreu nos estudos para as defesas dos indivíduos, em razão das constantes denúncias que cumulavam ou não determinado crime com o delito previsto no artigo 331 do Código Penal.
O presente trabalho analisará a temática a partir da recentíssima decisão da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça.
1. BREVE ANÁLISE DO CRIME DE DESACATO
O artigo 331 do Código Penal diz:
“ Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela:
Pena – detenção, de 06 (seis) meses a 2 (dois anos), ou multa”.
Em primeiro lugar, importante definir o conceito de funcionário público. Segundo o Vocabulário Jurídico, de Plácido e Silva:
"Já assim se diz, no sentido da lei brasileira, para a pessoa que está legalmente investida em cargo público. E, desse modo, toda pessoa que exerce cargo criado por lei, em número certo e denominação própria, remunerado pelos cofres públicos[1]"
No Direito administrativo, existem várias teorias e o brilhante Hely Lopes Meirelles leciona que:
“Funcionários públicos são os servidores legalmente investidos em cargos públicos da Administração Direta e sujeitos às normas do Estatuto da entidade estatal a que pertencem. O que caracteriza o funcionário público e o distingue dos demais servidores é a titularidade de um cargo criado por lei, com denominação própria, em número certo e pago pelos cofres da entidade estatal em cuja estrutura se enquadra (cargo público). Pouco importa que o cargo seja de provimento efetivo ou em comissão: investido nele, o servidor é funcionário público, sob regime estatutário, portanto”[2].
O Código Penal visando evitar essas discussões teóricas adotou uma visão ampliada do conceito de funcionário público em seu artigo 327:
“Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.
§ 1º - Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal.
§ 2º - A pena será aumentada da terça parte quando os autores dos crimes previstos neste Capítulo forem ocupantes de cargos em comissão ou de função de direção ou assessoramento de órgão da administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo poder público”.
Portanto, o conceito de funcionário público a ser utilizado é legal, previsto no artigo mencionado acima.
Em relação ao sujeito ativo e passivo, a doutrina e jurisprudência, de forma majoritária, entendem que qualquer pessoa pode praticar, inclusive funcionários públicos.
A questão fundamental em relação ao sujeito, após essa decisão do STJ, se refere a quem seria o sujeito passivo primário e secundário. Por enquanto, passaremos a visão anterior a decisão, ou seja, o sujeito passivo do crime de desacato é, de forma primária, o Estado e de forma secundária o funcionário público ofendido em sua honra profissional (funcional).
A conduta punida no crime de desacato é, em resumo, menosprezar, humilhar, achincalhar, desprestigiar o servidor, por qualquer meio, na presença do funcionário.
2. O JULGAMENTO DO RE 466.343 E O PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA
O julgamento do Recurso Extraordinário nº 466.343 representou uma mudança da jurisprudência dominante no Supremo Tribunal Federal a respeito do status dos tratados Internacionais de direitos Humanos no Brasil.
Em resumo, o STF entendeu, de forma majoritária, que a norma de direito humano deveria receber status de norma supralegal, ou seja, entre as normas constitucionais e as demais normas infraconstitucionais.
Destacaremos as palavras do Min. Gilmar Ferreira Mendes, em seu voto proferido nos autos do RE nº. 466.343, para exemplificar o entendimento adotado:
“Portanto, diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na Constituição, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante. Nesse sentido, é possível concluir que, diante da supremacia da Constituição sobre os atos normativos internacionais, a previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel (art. 5º, inciso LXVII) não foi revogada pela ratificação do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), mas deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria, incluídos o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e o Decreto-Lei n° 911, de 1º de outubro de 1969. Tendo em vista o caráter supralegal desses diplomas normativos internacionais, a legislação infraconstitucional posterior que com eles seja conflitante também tem sua eficácia paralisada. É o que ocorre, por exemplo, com o art. 652 do Novo Código Civil (Lei n° 10.406/2002), que reproduz disposição idêntica ao art. 1.287 do Código Civil de 1916”. (g.n., STF, Recurso Extraordinário, nº. 466.343, rel. Min. Cesar Peluso)[3]
Portanto, o STF entendeu que a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) possui status normativo supralegal.
3. DESCRIMINALIZAÇÃO DO CRIME DE DESACATO A AUTORIDADE PELO JULGAMENTO DO RECURSO ESPECIAL Nº 1.640.084- SP
A Defensoria Pública do Estado de São Paulo interpôs o Recurso Especial nº 1.640.084 requerendo a absolvição de um agente acusado da prática do crime de desacato, em razão da incompatibilidade deste delito com o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos.
Alegou, em síntese, que o crime não existe mais em nosso ordenamento jurídico, destacando que a Relatoria para Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos firmou entendimento de que as normas de direito interno que tipificam o crime de desacato são incompatíveis com o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos.
O relator Ministro Ribeiro Dantas acolheu o pedido da Defensoria Pública do Estado de São Paulo declarando a incompatibilidade do tipo penal de desacato com a Convenção Americana de Direitos Humanos nos seguintes termos.
O Ministro destacou que os Estados Partes, de acordo com artigo 2 cumulado com o artigo 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos, assumiram a obrigação de solucionar as questões de antinomias normativas que pudessem suprimir ou limitar o efetivo exercício de direitos e liberdades fundamentais.
Como o Brasil, através do Supremo Tribunal Federal, reconheceu, no mínimo, que os tratados internacionais de direitos humanos têm força supralegal, seria perfeitamente possível, a partir do controle de convencionalidade, compatibilizar as normas internas com os tratados de direitos humanos. Conforme ensinamentos da doutrina do professor Valério Mazzuoli
"Nesse sentido, entende-se que o controle de convencionalidade (ou o de supralegalidade) deve ser exercido pelos órgãos da justiça nacional relativamente aos tratados aos quais o país se encontra vinculado. Trata-se de adaptar ou conformar os atos ou leis internas aos compromissos internacionais assumidos pelo Estado, que criam para estes deveres no plano internacional com reflexos práticos no plano do seu direito interno. Doravante, não somente os tribunais internacionais (ou supranacionais) devem realizar esse tipo de controle, mas também os tribunais internos. O fato de serem os tratados internacionais (notadamente os de direitos humanos) imediatamente aplicáveis no âmbito do direito doméstico, garante a legitimidade dos controles de convencionalidade e de supralegalidade das leis no Brasil" (MAZZUOLI, Valério. O controle jurisdicional da convencionalidade”.[4]
Importante destacar que o controle de convencionalidade não se confunde com o controle de constitucionalidade, pois o caráter supralegal dos tratados de direitos humanos é suficiente para suprimir ou alterar normas internas.
No presente caso o STJ entendeu que o artigo 331 do CP seria incompatível com o artigo 13 do Pacto São José da Costa Rica, que protege as liberdades de pensamento e expressão, fundamentando principalmente nas seguidas decisões da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que já havia se manifestado em diversos casos que deveria prevalecer o artigo 13 do Pacto de São José da Costa Rica e na Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão que estatuiu no número 11 que “leis de desacato” atentam contra a liberdade de expressão e o direito à informação. Além de outros diversos argumentos.
4. CONSEQUÊNCIAS DA DECISÃO
Diante da recentíssima decisão, os fatos que configuravam o crime de desacato podem ser enquadrados como crime contra honra.
A primeira mudança notável é que o sujeito passivo primário e secundário foi alterado. Agora, o sujeito passivo primário seria o funcionário público ofendido e o sujeito passivo secundário seria o Estado.
Além disso, a ação penal passaria de Ação Penal Pública Incondicionada para Ação Penal Pública Condicionada à Representação ou Ação Privada (Queixa-Crime), nos termos da Súmula 714 do Supremo Tribunal Federal.
CONCLUSÃO
A decisão do STJ é de suma importância, pois a lei de desacato proporciona um maior nível de proteção aos funcionários públicos do que aos cidadãos privados, em direta contravenção com o princípio fundamental de um sistema democrático, que sujeita o governo a controle popular para impedir e controlar o abuso de seus poderes coercitivos.
Isso fica claro no caso brasileiro, pois os crimes contra a honra são de ação penal privada ou pública condicionada e possuem penas de um mês a um ano, enquanto que o desacato é de ação pública incondicionada e sua pena é de seis meses a dois anos. Ademais, as leis de desacato dissuadem as críticas pelo temor das pessoas às ações criminais. Inclusive, aquelas leis que contemplam o direito de provar a veracidade das declarações efetuadas restringem indevidamente a livre expressão porque não contemplam o fato de que muitas críticas se baseiam em opiniões, e, portanto, não podem ser provadas.
As leis sobre desacato não podem ser justificadas dizendo que seu propósito é defender a “ordem pública” (um propósito permissível para a regulamentação da expressão em virtude do artigo 13 da Convenção), já que isso contraria o princípio de que uma democracia, que funciona adequadamente e constitui a maior garantia da ordem pública.
Existem outros meios menos restritivos, além das leis de desacato, mediante os quais o Estado pode defender sua reputação frente a ataques infundados, como a réplica através dos meios de comunicação ou impetrando ações cíveis por difamação ou injúria.
Concluindo, a decisão do Superior Tribunal de Justiça parece ser acertada, mas ainda dependerá de uma confirmação no futuro em eventual controle de constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal.
REFERÊNCIAS BIBIOGRÁFICAS
DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2012.
CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal. 8ª ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2016
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Especial. 6ª ed. Niterói: Editora Impetus, 2010
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
MAZZUOLI, Valério. O Controle Jurisdicional da Convencionalidade das Leis. 2ª ed. v. 4. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011
[1] Vocabulário Jurídico, de Plácido e Silva, Ed. Forense, 3º ed., pág. 331
[2] Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, Ed. Revista dos Tribunais, 6º ed., pág. 370
[3] Disponível para consulta através do site: http://www.stf.gov.br/ portal/ inteiroTeor / pesquisar Inteiro Teor.asp.
[4] O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 2ª ed. v. 4. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, pp. 133-134
Defensor Público do Estado de São Paulo. Especialista em Ciências Penais. Especialista em Direito Constitucional.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GAZAL, Andre Vicentini. Da descriminalização da conduta tipificada como crime de desacato a autoridade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 jan 2017, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/48551/da-descriminalizacao-da-conduta-tipificada-como-crime-de-desacato-a-autoridade. Acesso em: 23 dez 2024.
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