Resumo: O presente artigo buscar apresentar uma visão geral e atual do crime de desacato, previsto no art. 331 do Código Penal, traçando seus elementos e analisando-o diante do controle de convencionalidade. O exercício da liberdade de pensamento e de expressão não deve se sujeitar à censura prévia, assim como o desacato não deve proporcionar desmesurada proteção aos funcionários públicos.
Palavras-chave: Desacato, Controle de Convencionalidade, Liberdade de Expressão.
1. Introdução:
A conduta de desacato é tipificada no art. 331 do CP – Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela: Pena - detenção, de seis meses a dois anos. Menosprezar, afrontar, humilhar, ofender e faltar com o respeito são ações alcançadas pelo núcleo “desacatar”.
Verifica-se, no item 85 da Exposição de Motivos da Parte Especial do Código Penal, que o desacato se verifica não só quando o funcionário se acha no exercício da função (seja, ou não, o ultraje infligido propter officium), senão também quando se acha extra officium, desde que a ofensa seja propter officium”. Em termos mais claros, para a caracterização do delito, é indispensável que as ofensas sejam dirigidas contra o funcionário púbico no exercício da função (praticando atos de ofício) ou em razão dela (ainda que fora da repartição pública); e que sejam proferidas na presença do funcionário público, restando configurada a finalidade de inferiorizar a função pública[1]. Não se exige, contudo, que a ofensa seja “face a face”, sendo suficiente que de alguma forma possa escutá-la, presenciá-la ou dela tê-la conhecimento direto.
De acordo com Nélson Hungria:
É a grosseira falta de acatamento, podendo consistir em palavras injuriosas, difamatórias ou caluniosas, vias de fato, agressão física, ameaças, gestos obscenos, gritos agudos etc. Uma expressão grosseira, ainda que não contumeliosa, proferida em altos brados ou de modo a provocar escândalo, bastará para que se identifique o desacato[2].
O bem jurídico protegido é a Administração Pública, especialmente o prestígio da função pública e, indiretamente, a honra do funcionário público. Este, por sua vez, representa o objeto material do tipo.
O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, trata-se, portanto, de um crime comum.
O STJ e o STF têm posição consolidada de que é possível a prática do crime de desacato por funcionário público, não importando a posição hierárquica do funcionário público em relação ao autor do delito, uma vez que o sujeito passivo imediato é o Estado e, apenas secundariamente, o funcionário ofendido.
Advogado pode ser sujeito ativo do crime de desacato. No julgamento da ADIN nº1.127-8, proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros, o STF decidiu pela inconstitucionalidade da imunidade profissional dos advogados relativamente ao crime de desacato no exercício de sua atividade, em juízo ou fora dele, prevista no art. 7, § 2º da Lei 8906/94. A decisão considerou que tal previsão criava situação de desigualdade entre o juiz e o advogado, retirando do magistrado a autoridade necessária à condução do processo, o que extrapolava o art. 133 da CF.
O Sujeito Passivo, como já pontuado, é o Estado, representado pela União, Estados-membros, Distrito Federal e Munícipios. Secundariamente, o funcionário público maculado na sua honra profissional. Cumpre advertir que o funcionário público eventualmente desacatado restringe-se àquele considerado pelo art. 327, caput, do CP, não abrangendo o equiparado. O Art. 327, §1, do CP só tem aplicação quando o sujeito ativo é funcionário público.
PENAL. APELAÇÃO. CRIME DE DESACATO. ART. 331 DO CP. FUNCIONÁRIO PÚBLICO POR EQUIPARAÇÃO. ART. 327, § 1º DO CP. APLICAÇÃO AO SUJEITO PASSIVO DO DELITO. IMPOSSIBILIDADE.
1. Impossibilidade de se estender o conceito de funcionário público por equiparação aos sujeitos passivos do delito de desacato, nos termos do art. 327, § 1º do Código Penal 2. Não merece reforma a sentença que determinou a extinção do processo em razão da ilegitimidade ativa do Ministério Público, ao fundamento de que o delito em questão é o de injúria - art. 140 do CP. 3. Apelação a que se nega provimento. (TRF-1. ACR 355211520124013300, Relator. JUIZ FEDERAL PABLO ZUNIGA DOURADO, 3º Turma, j. 29.07.14).
Conforme Luiz Regis Prado, não constituem desacato as ofensas feitas via telefone, fax, e-mail ou pela imprensa, condutas que podem, no entanto, tratar-se de calúnia, difamação, injúria, ameaça, dependendo das elementares presentes[3].
Se em um mesmo contexto fático, a humilhação for dirigida a uma pluralidade de funcionários públicos, haverá um só delito, pois o bem jurídico terá sido atingido somente uma vez. Contudo, a maior reprovabilidade da conduta deve ser utilizada pelo magistrado na dosimetria da pena-base, como circunstancia judicial desfavorável, à luz do art. 59 do CP.
O elemento subjetivo é o dolo, consistente na vontade livre e consciente de desprestigiar à função pública. Exige-se o dolo específico para a configuração do crime, ou seja, não basta a mera enunciação de palavras tidas por ofensiva, requer-se o fim específico de menosprezar o servidor em exercício. Meras críticas ao comportamento funcional não configuram o delito, pois qualquer cidadão tem direito de fiscalizar a Administração Pública. Não existe previsão de modalidade culposa.
Não admite a exceção da verdade.
Trata-se de crime formal, sendo indiferente se o funcionário público sentiu-se ou não ofendido, pois a tutela penal recai sobre a dignidade e prestígio da função pública e não a honra de quem exerce.
Sendo indispensável a presença do sujeito passivo mediato no momento da humilhação, parcela da doutrina não admite a tentativa. Segundo Damásio de Jesus:
O crime, por exigir a presença do sujeito passivo, torna-se unissubsistente, não admitindo a tentativa. Não convencem os exemplos que os autores dão como de crime tentado, como o arremesso de imundície com erro de alvo, tentativa de agressão física, etc. Nesses casos, segundo entendemos, o crime é consumado. Assim, se o sujeito lança excremento contra a vítima, errando o alvo, sua atitude já configura desacato. No outro exemplo, em que o sujeito dá um soco na direção da vítima, sendo seu braço desviado por terceiro, há também delito consumado. Não se pode esquecer que a lei pune a atitude do autor, que pode consistir em simples gesto[4].
A ação penal é púbica incondicionada. Trata-se de infração de menor potencial ofensivo, de competência dos Juizados Especiais Criminais e compatível com a transação penal e a suspensão condicional do processo.
2. Caso PALAMARA IRIBARNE VS. CHILE[5]
A Corte Interamericana de Direitos Humanos possui um importante julgado sobre leis de desacato e liberdade de pensamento. Trata-se do Caso Palamara Iribarne vs. Chile.
Humberto Antonio Palamara Iribarne foi militar das Forças Armadas do Chile aposentando-se do cargo em 1992. Em 1993, na condição de empregado civil contratado para desempenhar a função de analista no Departamento de Inteligência Naval, escreveu o livro “Ética e Serviços de Inteligência”, em que abordava questões relacionadas à inteligência militar e à necessidade de harmonizá-las à ética.
Palamara Iribarne foi proibido pelas autoridades militares navais de publicar o seu livro, sob o argumento de que o conteúdo nele veiculado “vulneraria a segurança e a defesa nacional”. Sofreu a apreensão dos livros em circulação, os originais do texto, um disco que continha o texto integral e também o maquinário utilizado na publicação. Tentou resistir e levou o episódio para a imprensa.
Ele foi condenado por três crimes no Juizado Naval de Magallanes: desobediência, descumprimento de deveres militares e desacato. O caso foi denunciado na Comissão Interamericana de Direitos Humanos e depois submetido à Corte Interamericana de Direitos Humanos. A Corte declarou que a criminalização do desacato é incompatível com o art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), porque proporciona maior nível de proteção aos funcionários públicos do que aos cidadãos, o que afronta o sistema democrático e viola os direitos de liberdade de expressão.
3. Hierarquia normativa dos tratados de Direitos Humanos no Brasil
Mesmo após a CF/88, o posicionamento do STF era de que os tratados de direitos humanos possuíam hierarquia equivalente à lei ordinária federal. Com a promulgação da EC 45/2004 e a entrada em vigor do art. 5, §3º, da CF, tornou-se possível conceder aos tratados de direitos humanos natureza constitucional (equivalentes às emendas constitucionais) se aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros.
No julgamento do RE 4666.343, referente à prisão civil do depositário infiel, o STF reconheceu que os tratados internacionais de direitos humanos não aprovados pelo Congresso Nacional pelo rito especial do art. 5, §3º, da CF, têm natureza supralegal, tornando inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante. Assim, ficou consagrada a teoria do duplo estatuto dos tratados de direitos humanos.
Após reiteradas decisões no sentido da proibição da prisão civil do depositário infiel foi aprovada a Súmula vinculante 25: “é ilícita a prisão civil do depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de deposito”. O Pacto de São José da Costa Rica não revogou o art. 5, LXVII, da CF.
Em 17 de março de 2015, o Juiz Alexandre Morais da Rosa, no julgamento do processo 0067370-64.2012.8.24.0023, da comarca da Capital de Santa Catarina – Florianópolis, efetuando controle de convencionalidade, reconheceu a inexistência do crime de desacato em ambiente democrático. Peço vênia aos leitores para transcrever trechos da Sentença:
[...] “o controle de compatibilidade das leis não se trata de mera faculdade conferida ao julgador singular, mas sim de uma incumbência, considerado o princípio da supremacia da Constituição (http://www.conjur.com.br/2015-jan-02/limite-penal-temas-voce-saber-processo-penal-2015). Cabe ainda frisar que, no exercício de tal controle, deve o julgador tomar como parâmetro superior do juízo de compatibilidade vertical não só a Constituição da República (no que diz respeito, propriamente, ao controle de constitucionalidade difuso), mas também os diversos diplomas internacionais, notadamente no campo dos Direitos Humanos, subscritos pelo Brasil, os quais, por força do que dispõe o art. 5º, §§ 2º e 3º[1], da Constituição da República, moldam o conceito de “bloco de constitucionalidade” (parâmetro superior para o denominado controle de convencionalidade das disposições infraconstitucionais). (Grifo nosso).
[...]
“Em que pese reconhecer-se a inexistência, a priori, de caráter vinculante na interpretação do tratado operada pela referida instituição internacional, filio-me ao entendimento apresentado, considerando, antes de tudo, os princípios da fragmentariedade e da interferência mínima, os quais impõem que as condutas de que deve dar conta o Direito Penal são essencialmente aquelas que violam bens jurídicos fundamentais, que não possam ser adequadamente protegidos por outro ramo do Direito. Nesse prisma, tenho que a manifestação pública de desapreço proferida por particular, perante agente no exercício da atividade Administrativa, por mais infundada ou indecorosa que seja, certamente não se consubstancia em ato cuja lesividade seja da alçada da tutela penal. Trata-se de previsão jurídica nitidamente autoritária – principalmente em se considerando que, em um primeiro momento, caberá à própria autoridade ofendida (ou pretensamente ofendida) definir o limiar entre a crítica responsável e respeitosa ao exercício atividade administrativa e a crítica que ofende à dignidade da função pública, a qual deve ser criminalizada. A experiência bem demonstra que, na dúvida quanto ao teor da manifestação (ou mesmo na certeza quanto à sua lidimidade), a tendência é de que se conclua que o particular esteja desrespeitando o agente público – e ninguém olvida que esta situação, reiterada no cotidiano social, representa infração à garantia constitucional da liberdade de expressão”[6]. (grifos nossos)
Nesse sentido, no dia 15 de dezembro de 2016, a Quinta Turma do STJ, descriminalizou a conduta de desacato, em controle de convencionalidade, por entender que a tipificação é incompatível com o art. 13 do Pacto de São José da Costa Rica.
Cumpre advertir que o afastamento da tipificação criminal do desacato não obsta a responsabilidade ulterior, civil ou até mesmo o enquadramento em outro tipo penal (calúnia, difamação ou injúria, majorados em virtude do art. 141, II, do CP), dos excessos que venham a ser cometidos diante de funcionários públicos.
4. Conclusão
O crime de desacato é, ainda que de menor potencial ofensivo, um mecanismo autoritário para conter a liberdade de expressão, em face do abuso de poder conferido aos funcionários públicos para definir entre crítica responsável e a crítica que humilha à função pública, em muitos casos, ausente o dolo específico.
O caso Palamara Iribarne vs. Chile foi importante pela decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos de que a criminalização do desacato é incompatível com o art. 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), tendo em vista que proporciona maior nível de proteção aos funcionários públicos do que aos cidadãos afrontando o sistema democrático e violando os direitos de liberdade de expressão.
Tendo o STF reconhecido que os tratados internacionais de direitos humanos não aprovados pelo Congresso Nacional pelo rito especial do art. 5, §3º, da CF, têm natureza supralegal, deve-se afastar a aplicação de legislação infraconstitucional com estes incompatíveis. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos por conseguinte, encontra-se acima do Código Penal, fato que, aliado ao controle de convencionalidade, aponta para a descriminalização do desacato.
REFERÊNCIAS
Corte Interamericana de direitos Humanos. Caso Palamara Iribarne Vs. Chile. Sentença de 22 de novembro de 2005.
CUNHA, Rogério Sanches. Manual de direito penal: parte especial (arts. 121 ao 361). 8 ed. rev., atual. e ampl. Salvador: Juspodivm, 2016.
GALVÃO, Bruno Haddad. O crime de desacato e os direitos humanos. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2012-set-15/bruno-galvao-desacato-comissao-interamericana-direitos-humanos>. Acesso em: 10 de janeiro de 2017.
GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 5 ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2011.
HUNGRIA, Nélson, Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1958, volume IX.
JESUS, Damásio de. Direito penal. Parte Especial. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, volume 4.
MASSON, Cleber. Código Penal Comentado. 4 ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense. São Paulo: Método, 2016.
MASSON, Cleber. Direito Penal Esquematizado – Parte Geral - vol. 1. 10 ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense. São Paulo: Método, 2016.
PAIVA, Caio Cezar de Figueiredo; HEEMANN, Thimotie Aragon. Jurisprudência internacional de direitos humanos. Manaus: Dizer o Direito, 2015.
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. 7 ed. São Paulo: Revista dos tribunais, 2011. Volume 3.
RAMOS, André de Carvalho. Processo internacional de direitos humanos. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. 3 ed. ver. , atual. e . ampl. São Paulo: Saraiva 2016.
ROSA, Alexandre Morais da. Desacato não é crime, diz Juiz em controle de convencionalidade. Disponível em: Acesso em 4 de janeiro de 2017.
Superior Tribunal de Justiça. RECURSO ESPECIAL Nº 1.640.084 – SP. Quinta Turma. Rel. Min. Marcelo Navarro Ribeiro Dantas. Em 15 de Dezembro de 2016. DJ 16/12/2016
[1] MASSON, Cleber. Código Penal comentado, 4 ed. p.1397
[2] HUNGRIA, Nélson, Comentários ao Código Penal, volume IX, p. 424.
[3] PRADO, Luiz Regis. Volume 3. Parte Especial. P.567
[4] JESUS, Damásio de. Direito penal. Parte Especial. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, volume 4, p. 228.
[5] Corte Interamericana de direitos Humanos. Caso Palamara Iribarne Vs. Chile. Sentença de 22 de novembro de 2005.
[6] ROSA, Alexandre Morais da. Desacato não é crime, diz Juiz em controle de convencionalidade. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/desacato-nao-e-crime-diz-juiz-em-controle-de-convencionalidade/> Acesso em 4 de janeiro de 2017.
Advogado, Graduado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, Pós-Graduado em Direito Público pelo Centro Universitário Maurício de Nassau - UNINASSAU.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARROS, Thiago José de Oliveira. Desacato e controle de convencionalidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 jan 2017, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/48894/desacato-e-controle-de-convencionalidade. Acesso em: 23 dez 2024.
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