RESUMO: O presente estudo tem como escopo fazer uma abordagem crítica ao Direito Penal, sobretudo no que se refere à aplicação dos princípios da insignificância e da intervenção mínima nos crimes de natureza tributária, direcionando um olhar aprofundado ao posicionamento adotado pelos Tribunais Pátrios, que, de maneira desproporcional, vem considerando valores altíssimos, que chegam a R$ 10.000,00 (dez mil reais), como insignificantes. Serão apresentados os principais argumentos defendidos pela doutrina e jurisprudência majoritárias, que tomam como parâmetro algumas leis de caráter administrativo para justificar a tese de que se a Administração Pública não tem interesse na execução dos débitos fiscais, não caberá a intervenção do Direito Penal. Por outro lado, como principal objetivo do presente artigo científico, serão expostas todas as críticas referentes à postura adotada atualmente, na tentativa de demonstrar que a não responsabilização dos “pequenos sonegadores”, da maneira como acontece, pode trazer males irreparáveis para toda a sociedade, tendo em vista que tais condutas retardam a consecução dos objetivos da República Federativa do Brasil. Além do mais, o que de fato existe, é uma falsa impressão de que o Estado não tem interesse na cobrança de débitos inferiores a R$ 10.000,00 (dez mil reais). Na verdade, o Estado não tem estrutura para cobrar tais valores, sendo muito onerosa a impetração de ação judicial para tanto.
O presente trabalho faz uma abordagem acerca da aplicação dos princípios da insignificância e da intervenção mínima no âmbito dos delitos contra a ordem tributária, cujo valor sonegado não ultrapasse limites estipulados pela administração fazendária.
De proêmio, serão apresentados alguns conceitos pertinentes à proteção dos bens jurídicos, mormente ao que se refere à incidência do Direito Penal nos casos concretos. Com efeito, será evidenciado o caráter subsidiário desse ramo do direito, bem como o que a doutrina entende como sendo a função da pena.
É de se observar que, com a insofismável função atribuída aos princípios, sobretudo depois das grandes mudanças que permitiram aplicabilidade imediata aos postulados constitucionais, o cidadão passou a ter em suas mãos diversos meios de proteger e garantir seus direitos fundamentais.
Nesse contexto, a aplicação de uma sanção penal, justamente pela possibilidade de retirar do cidadão seu direito fundamento à liberdade, só terá cabimento quando observado veementemente a cláusula geral do devido processo legal, em todas as suas vertentes.
Por outro lado, não obstante o Direito Penal seja a última opção a ser buscada para resolução dos conflitos sociais, devendo ser aplicado apenas quando os outros ramos do direito não sejam eficazes, não podemos ir ao extremo com esses conceitos e acabar garantindo a impunidade.
Os postulados que regem qualquer ramo do Direito devem ser aplicados aos casos concretos com responsabilidade, sob pena de gerar males expressivos para toda sociedade. Acerca do tema, a importância é ainda maior, na medida em que as mais altas cortes judiciais do nosso país têm demonstrado não estarem muito preocupadas com as consequências da não incriminação de “pequenos sonegadores”.
Utilizando-se de um critério unicamente monetário, os Tribunais pátrios vêem afastando a tipicidade penal daquelas condutas que enquadram-se formalmente nas espécies penais consideradas como de natureza tributária.
Os parâmetros utilizados são algumas leis de natureza administrativa que permitem a não execução, por parte da Fazenda Pública, de créditos fiscais cujos valores sejam inferiores aos indicados nos referidos diplomas legais. Atualmente o entendimento do STF é de a importância atingiu o patamar de R$ 20.000,00 (vinte mil reais).
Ora, como pode um valor tão alto ser levado em consideração para fins de afastar a tipicidade material de condutas que agridem a sociedade de maneira direta, causando ainda grandes desorganizações no aparelho Estatal?
Como será demonstrado no presente estudo, os tributos possuem íntima relação com os objetivos da República Federativa do Brasil, na medida em que são um meio de consolidação do Estado Social de Direito e podem contribuir para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais e regionais.
Portanto, é no mínimo desmedido o posicionamento adotado pelos Tribunais Superiores, podendo, inclusive, estimular a prática de delitos fiscais, tendo em vista que a mais alta Corte do Poder Judiciário não condena essas condutas, consideradas insignificantes.
Destarte, carece de lógica o argumento de que o Estado demonstra desinteresse ao deixar de executar os débitos tributários inferiores a certas quantias em dinheiro. O que de fato existe é uma falta de estrutura e de recursos humanos, tornando a propositura da devida ação judicial muito onerosa, a ponto de trazer mais prejuízos, além dos já sofridos com a sonegação.
Dessa forma, em suma, o presente estudo levantará a discussão acerca do tema sobredito, trazendo os argumentos defendidos pela maioria jurisprudencial e doutrinária, bem como tentará esclarecer que esse entendimento, embora majoritário, não é o mais adequado, não subsistindo a tese de que não cabe a intervenção do Direito Penal quando a própria Administração Pública mostra desinteresse na execução dos valores sonegados.
Antes de se realizar qualquer análise acerca de temas atinentes à matéria penal, imprescindível é um estudo, ainda que em linhas gerais, acerca das finalidades do Direito Penal, ou seja, a sua missão dentro do Estado Social Democrático de Direito, sempre em consonância com as disposições da Carta Constituição vigente.
Nesse contexto, o Direito Penal tem certas funções. A primeira delas é a de proteger os bens jurídicos considerados essenciais ao indivíduo e a coletividade. Bem, em sentido amplo, pode ser considerado como tudo o que for objeto de desejo do humano. Assim, a felicidade, o amor, a liberdade, a vida, o trabalho, todos se enquadram no conceito de bem.
Entretanto, deve-se ter em mente que o Direito não se preocupa com todos os bens desejados pelo ser humano, mas apenas com aqueles considerados relevantes e necessários ao convívio em sociedade. Nesse sentido, afirma Bianchini, Molina e Gomes, ser jurídico:
O bem relevante para o indivíduo ou para a comunidade (quando comunitário não se pode perder de vista, mesmo assim, sua individualidade, ou seja, o bem comunitário deve ser também importante para o desenvolvimento da individualidade da pessoa) que, quando apresenta grande significação social, pode e deve ser protegido juridicamente. A vida, a honra, o patrimônio, a liberdade sexual, o meio ambiente etc. são bens existenciais de grande relevância para o indivíduo. [1]
Em se tratando de proteção a bens jurídicos pelo Direito Penal, a situação é ainda mais restrita, na medida em que estão aptos a sua tutela, apenas aqueles bens que não são protegidos suficientemente por outras esferas jurídicas. Conforme ensina Rogério Greco[2], “com o Direito Penal objetiva-se tutelar os bens que, por serem extremamente valiosos, não do ponto de vista econômico, mas sim político, não podem ser suficientemente protegidos pelos demais ramos do direito”.
Portanto, por meio de um critério político, a sociedade elege, através de seus representantes no Congresso Nacional, quais bens merecem ser penalmente tutelados. Diz-se critério político porque a sociedade evolui e, justamente por isso, bens que anteriormente eram considerados fundamentais e merecedores da proteção do Direito Penal, podem perder esse status, tornando-se suficiente a proteção pelos demais ramos do Direito.
Sobreleva anotar, ainda, que o fato de um determinado bem possuir o status de bem jurídico-penal não o torna incondicionalmente protegido pelo Direito Penal. Com efeito, além do citado status que o bem deve ter, é necessário que a atuação do Direito Penal, no caso concreto, seja indispensável.
Por outro lado, além da tutela de bens jurídicos, o direito penal tem ainda uma função garantidora, na medida em que impõe limites ao Estado, para o exercício do seu Jus Puniendi. É certo que, diante do cometimento de uma infração penal, o Estado terá o poder-dever de realizar a persecução penal, para, ao final, aplicar uma sanção ao autor do delito. Entretanto, essa atuação do Estado não pode ocorrer ao seu arbítrio, devendo sempre respeitar as normas preexistentes ao fato criminoso. Dessa forma, a dignidade do indivíduo supostamente autor de um crime será sempre respeitada.
Diante da atual conjuntura jurídica, não podemos deixar de observar a inexorável importância dos princípios para os diversos ramos do Direito. O Estado de Direito, alicerçado unicamente em elaborações jurídicas feitas pelo Poder Legislativo por um viés demasiadamente positivista, foi deixado de lado para fazer surgir normas com grande influência principiológica, que, conforme ensinamentos do professor Walber de Moura Agra[3], “têm como principal função, ao positivarem valores encontrados na sociedade, diminuir a distância entre a norma e a justiça”.
Guilherme de Souza Nucci, em uma de suas obras, afirma:
Etimologicamente, princípio tem vários significados, entre os quais o de momento em que algo tem origem; causa primária, elemento predominante na constituição de um corpo orgânico; preceito, regra ou lei; fonte ou causa de uma ação. No sentido jurídico, não se poderia fugir de tais noções, de modo que o conceito de princípio indica uma ordenação, que irradia e imanta os sistemas de normas, servindo de base para a interpretação, integração, conhecimento e aplicação do direito positivo.[4]
Nesse sentido, o Direito Penal moderno tem como base determinados princípios fundamentais, inerentes ao Estado Democrático de Direito, dentre os quais estão o da intervenção mínima e da insignificância, também conhecido como bagatela.
Com efeito, o princípio da intervenção mínima, também nos dizeres do já citado jurista, Guilherme de Souza Nucci:
Quer dizer que o direito penal não deve interferir em demasia na vida do indivíduo, retirando-lhe autonomia e liberdade. Afinal, a lei penal não deve ser vista como a primeira opção (prima ratio) do legislador para compor os conflitos existentes em sociedade e que, pelo atual estágio de desenvolvimento moral e ético da humanidade, sempre estarão presentes. [5]
Portanto, como já fora afirmado outrora, o Direito penal só deve se preocupar com a proteção dos bens jurídicos mais relevantes e necessários ao convívio em sociedade. Destarte, ao se falar em intervenção mínima, importante ter em mente sua função limitadora do poder punitivo do Estado.
Depois de analisado o princípio da intervenção mínima, o legislador finalmente poderá impor sanções àqueles que perpetrarem condutas consideradas lesivas aos bens jurídicos selecionados. Contudo, antes de se aplicar a lei penal, é preciso perquirir se o legislador, quando tipificou determinada conduta, pretendia punir toda e qualquer ofensa ao bem jurídico lesado.
Como se sabe, uma conduta será considerada criminosa quando estiverem presentes os seguintes elementos: fato típico, antijurídico e culpável. Para que possamos falar em fato típico, faz-se necessária a existência de uma conduta (dolosa ou culposa), um resultado, o nexo entre a conduta e o resultado e, por fim a tipicidade.
A ideia de insignificância está presente no conceito de tipicidade, especificamente na tipicidade conglobante. Vejamos, a tipicidade penal pode ser dividida em formal e conglobante. A primeira é a perfeita adequação entre a conduta perpetrada pelo agente e o tipo previsto na Lei penal.
Quanto à tipicidade conglobante, ensina Rogério Greco:
Para que se possa concluir pela tipicidade conglobante, é preciso verificar dois aspectos fundamentais: a) se a conduta do agente é antinormativa; b) se o fato é materialmente típico. O estudo do princípio da insignificância reside nesta segunda vertente da tipicidade conglobaste, ou seja, na chamada tipicidade material. [6]
No mesmo sentido, já se pronunciou o STF, nos seguintes termos:
O princípio da insignificância - que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos valores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada - apoiou-se, em processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do direito penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público em matéria penal. [7]
Então, para que uma conduta seja considerada típica, além da adequação formal ao texto da Lei, é imprescindível que aquele venha a lesar ou pôr em risco significativamente o bem jurídico tutelado. A ação ou omissão que não tem certa relevância não será enquadrada no tipo penal, sendo insuficiente para configurar o crime. Como se percebe, o princípio da insignificância acaba por reafirmar o princípio da intervenção mínima do direito penal, diante de seu caráter subsidiário.
Tendo em vista os esclarecimentos até aqui expostos, será analisada neste momento, a aplicabilidade dos princípios da insignificância e da intervenção mínima nos crimes de natureza tributária, mormente no que diz respeito àqueles cujos valores sonegados não ultrapassem limites estabelecidos por órgãos da administração pública.
Os tribunais pátrios, bem como parcela significativa da doutrina nacional, vêem se posicionando favoravelmente à utilização dos referidos princípios para fins de exclusão da tipicidade das condutas criminosas perpetradas por “pequenos sonegadores”.
Tal entendimento restou consolidado depois de várias alterações na legislação que trata da execução de débitos tributários. Com efeito, passou a ser considerado como parâmetro, o valor mínimo que o Estado tomou para fins de execução fiscal. Nesse contexto, os patamares atuais já chegam à cifra de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), e, não obstante o altíssimo valor, este continua a ser levado em conta para fins exclusão de tipicidade.
Podemos dizer que a importância de se punir condutas como as de suprimir ou reduzir tributos tem íntima relação com os objetivos da República Federativa do Brasil, sobretudo no que diz respeito à construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais e regionais, todos previstos no art. 3ª da Constituição Federal.
A arrecadação de tributos não tem um fim em se própria. Deve ser entendida como um meio de realização do Estado Social de Direito, como uma forma de se garantir o bem estar social, através da justiça distributiva. Afinal de contas, como afirma o professor Ricardo Alexandre[8], “o Estado existe para a consecução do bem comum. Para atingir tal mister, precisa obter recursos financeiros”.
Com efeito, o bem jurídico tutelado pelos crimes tributários seria a própria ordem tributária, entendida como “o complexo de normas jurídicas limitadoras do poder de instituir e cobrar tributos, vale dizer, o complexo de normas jurídicas limitadoras do exercício do poder de tributar.”[9]
Nos termos do art. 1º da Lei 8137/90:
Art. 1º Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias; II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal; III - falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável; IV - elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato; V - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação. Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. Parágrafo único. A falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10 (dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V[10].
O primeiro ponto digno de nota diz respeito à classificação das citadas condutas quanto ao resultado. A doutrina majoritária informa que os delitos contra a ordem tributária são crimes materiais, sendo indispensável a supressão ou redução de tributos ou contribuição social e qualquer acessório para configuração do ilícito penal. Seguindo esse entendimento, ensina Hugo de Brito Machado:
O núcleo do tipo, no crime de que se cuida, é suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório. O modo de fazê-lo consiste em uma das condutas meio, descritas nos incisos do art. 1º, da Lei nº. 8.137/90. Assim, o aperfeiçoamento do tipo penal depende da ocorrência da supressão, ou da redução do tributo e das condutas desenvolvidas para esse fim. [11]
E arremata o Magistrado:
Todas as condutas descritas nos nº I a V do art. 1º da Lei 8.137/90 pressupõem que, por meio delas, haja efetiva supressão ou redução de tributo. É crime material, de dano, pois para sua consumação é indispensável a ocorrência do resultado consistente na supressão ou redução do tributo devido aos cofres públicos. Nesse sentido a doutrina é praticamente unânime. [12]
Nos crimes contra a ordem tributária, previstos na Lei nº. 8.137/90, a ação penal é pública incondicionada, prescindindo portanto da manifestação de vontade da vítima, até mesmo porque, como reza o art. 24, § 2º, do CPP, “seja qual for o crime, quando praticado em detrimento do patrimônio ou interesse da União, Estado e Município, a ação penal será pública”.[13]
Entretanto, registre-se que o Ministério Público não poderá iniciar a devida ação penal antes de encerrado todo o procedimento administrativo de verificação do débito tributário.
Neste ponto, oportuno registrar os ensinamentos de Hugo de Brito Machado:
Seja como for, desde logo fica esclarecido que a definição do tributo devido, como elemento normativo do tipo no crime de supressão ou redução de tributo, é tarefa da autoridade da Administração Tributária competente para o respectivo lançamento. Assim, se a autoridade administrativa competente afirma não ser devido o tributo cuja supressão ou redução é imputada ao agente, não se terá configurado o crime em questão[14].
Assim, compete privativamente à autoridade administrativa analisar e constituir o débito tributário, por meio do lançamento. Tal procedimento busca verificar a ocorrência do fato gerador do tributo, calcular o valor devido e, depois de identificado o sujeito passivo, representar pela aplicação de sanção penal, se for o caso.
Portanto, deve ficar claro que a ação penal pela prática de crimes contra a ordem tributária é condicionada ao resultado do respectivo procedimento administrativo anterior. Reforçando tal posicionamento, foi editada a Lei 9.430 de 27 de dezembro de 1996, que dispões em seu art. 83:
A representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária previstos nos arts. 1o e 2o da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e aos crimes contra a Previdência Social, previstos nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), será encaminhada ao Ministério Público depois de proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente[15].
Da mesma forma, são inúmeros os julgados proferidos pelos Tribunais Superiores, sobretudo no STF, acerca da necessidade da representação fiscal para fins penais referente à infrações de natureza tributária, ou seja, considera-se imprescindível o exaurimento prévio da via administrativa.
Diante da vasta jurisprudência, no dia 02 de dezembro de 2009, o STF aprovou a Súmula Vinculante 24 com o seguinte teor: “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no artigo 1º, inciso I, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”.
Tal enunciado consolidou o entendimento de que o elemento normativo do tipo, qual seja o tributo, só estará presente depois da manifestação da autoridade administrativa lançadora.
Como já foi demonstrado inicialmente, para a aplicação do princípio da insignificância, faz-se necessária a observância de alguns requisitos que, ao longo do tempo, foram firmados pelo Supremo Tribunal Federal.
Portanto, de acordo com o posicionamento majoritário, tanto na doutrina como na jurisprudência, a análise dessa causa de exclusão da tipicidade deve passar por um estudo quanto aos seguintes aspectos: a mínima ofensividade da conduta do agente; a inexistência de periculosidade social da ação; o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada.
Ocorre que, no que se refere aos crimes de natureza tributária, todos os critérios necessários à incidência da insignificância foram substituídos por apenas um requisito, de natureza objetiva, qual seja, a imposição, por meio de normas de caráter administrativo, de limites em dinheiro para impetração de execução fiscal.
Nesse contexto, o posicionamento firmado tomou por base algumas Leis de ordem administrativa. Tais diplomas legais promoveram uma sequência de mutações na jurisprudência até chegar ao atual conceito de bagatela, mormente aos crimes tributários.
Inicialmente, sob o argumento de que o Direito Penal é a “ultima ratio”, devendo intervir apenas quando for extremamente necessário, utilizou-se a Lei nº. 9.469 de 19 de julho de 1997 como parâmetro para a não impetração de ação penal.
O art. 1º, do citado dispositivo legal afirmava:
Art. 1º O Advogado Geral da União e os dirigentes máximos das autarquias, das fundações e das empresas públicas federais poderão autorizar a realização de acordos ou transações, em Juízo, para terminar o litígio, nas causas de valor até R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), a não propositura de ações e a não interposição de recursos, assim como requerimento de extinção das ações em curso ou a desistência dos respectivos recursos judiciais, para cobrança de créditos, atualizados, de valor igual ou inferior a R$ 1.000,00 (mil reais), em que interessadas essas entidades na qualidade de autoras, rés, assistentes ou opoentes, as condições aqui estabelecidas.[16]
Posteriormente, a edição da Lei nº. 10.522 de 19 de julho de 2002, com as alterações trazidas pela Lei nº. 11.033 de 21 de dezembro de 2004, traçou novos limites para a cobrança de débitos fiscais por parte da Administração Pública Fazendária.
Os supramencionados diplomas legais estabeleceram que poderá ocorrer o cancelamento do débito tributário quando o seu valor for igual ou inferior a R$ 100,00 (cem reais). Além dessa disposição, restou prescrito que serão arquivados, sem baixa na distribuição, os autos das execuções fiscais cujos valores não ultrapassem R$ 10.000,00 (dez mil reais).
Pela pertinência, vale a transcrição dos seguintes artigos legais:
Art. 18. Ficam dispensados a constituição de créditos da Fazenda Nacional, a inscrição como Dívida Ativa da União, o ajuizamento da respectiva execução fiscal, bem assim cancelados o lançamento e a inscrição, relativamente:
§ 1o Ficam cancelados os débitos inscritos em Dívida Ativa da União, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 100,00 (cem reais).
Art. 20. Serão arquivados, sem baixa na distribuição, mediante requerimento do Procurador da Fazenda Nacional, os autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais).
§ 1o Os autos de execução a que se refere este artigo serão reativados quando os valores dos débitos ultrapassarem os limites indicados.[17]
Ato contínuo, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), depois de estudos realizados, publicou um comunicado com a seguinte temática: Custo e tempo do processo de execução fiscal promovido pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN). A pesquisa constatou que só será viável a impetração de ação judicial para execução fiscal quando os débitos ultrapassarem a quantia de R$ 20.000,00 (vinte mil reais).
Concluiu-se que, diante dos custos necessários e do tempo levado para a satisfação do valor litigioso, o Estado só teria alguma chance de resgatar seus créditos quando estes forem superiores a R$ 21.731,45. Esclarecedoras são as recomendações constantes no comunicado nº 127 do IPEA, senão vejamos:
Conforme os resultados apresentados, pode-se afirmar que o custo unitário médio total de uma ação de execução fiscal promovida pela PGFN junto à Justiça Federal é de R$ 5.606,67. O tempo médio total de tramitação é de 9 anos, 9 meses e 16 dias, e a probabilidade de obter-se a recuperação integral do crédito é de 25,8%. Considerando-se o custo total da ação de execução fiscal e a probabilidade de obter-se êxito na recuperação do crédito, pode-se afirmar que o breaking even point, o ponto a partir do qual é economicamente justificável promover-se judicialmente o executivo fiscal, é de R$ 21.731,45. Ou seja, nas ações de execução fiscal de valor inferior a este, é improvável que a União consiga recuperar um valor igual ou superior ao custo do processamento judicial (...). Por essas razões, seria razoável reajustar, a partir de 1º de janeiro de 2012, o piso mínimo para o ajuizamento de ações de execução fiscal da PGFN dos atuais R$ 10.000,00 para R$ 20.000,00.[18]
Baseado nessas conclusões feitas pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada foi publicada a portaria MF nº 75, de 22 de março de 2012, trançando novos limites para o ajuizamento das ações de execução pelo Estado. O referido instrumento normativo dispõe:
Art. 1º Determinar: I - a não inscrição na Dívida Ativa da União de débito de um mesmo devedor com a Fazenda Nacional de valor consolidado igual ou inferior a R$ 1.000,00 (mil reais); e II - o não ajuizamento de execuções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional, cujo valor consolidado seja igual ou inferior a R$ 20.000,00 (vinte mil reais).
Art. 2º O Procurador da Fazenda Nacional requererá o arquivamento, sem baixa na distribuição, das execuções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional, cujo valor consolidado seja igual ou inferior a R$ 20.000,00 (vinte mil reais), desde que não conste dos autos garantia, integral ou parcial, útil à satisfação do crédito.[19]
Como se observa, o atual limite financeiro para a execução de débitos fiscais é de R$ 20.000,00 (vinte mil reais). Valores inferiores a este serão arquivados sem baixa na distribuição. Essa situação também terá influência na maneira como o Poder Judiciário vem tratando a matéria de crimes tributários, sobretudo no que diz respeito ao início da respectiva ação penal, é o que será demonstrado no próximo tópico.
Com efeito, o Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de se pronunciar acerca do tema em julgamento proferido pela primeira turma, ocasião em que a Suprema Corte manifestou-se pela aplicação do princípio da insignificância, afastando a justa causa para a propositura da ação penal por parte do Ministério Público. Vejamos:
HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL. DESCAMINHO. VALOR INFERIOR AO ESTIPULADO PELO ART. 20 DA LEI 10.522/2002. PORTARIAS 75 E 130/2012 DO MINISTÉRIO DA FAZENDA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE. ORDEM CONCEDIDA. 1. A pertinência do princípio da insignificância deve ser avaliada considerando-se todos os aspectos relevantes da conduta imputada. 2. Para crimes de descaminho, considera-se, para a avaliação da insignificância, o patamar de R$ 20.000,00, previsto no art 20 da Lei n.º 10.522/2002, atualizado pelas Portarias 75 e 130/2012 do Ministério da Fazenda. Precedentes. 3. Na espécie, aplica-se o princípio da insignificância, pois o descaminho envolveu elisão de tributos federais que perfazem quantia inferior ao previsto no referido diploma legal. 4. Ordem concedida. .[20]
Dentre os inúmeros doutrinadores que defendem a aplicação da ideia de bagatela nos crimes que afrontam o patrimônio público, podemos citar professor Luiz Flávio Gomes, que, em artigo publicado no ano de 2005, afirmou:
“A novidade na matéria, agora, reside na Portaria 49, de 01 de abril de 2004, do Ministro da Fazenda, que autoriza (a) a não inscrição como dívida ativa da União de débitos com a Fazenda Nacional de valor até R$ 1.000,00 e (b) o não ajuizamento das execuções fiscais de débitos até R$ 10.000,00. Ora, se esse último valor não é relevante para fins fiscais, com muito maior razão não o será para fins penais. Débitos fiscais com a Fazenda Pública da União até R$ 10.000,00, em suma, devem ser considerados penalmente irrelevantes. Se nem sequer é o caso de execução fiscal, com maior razão não deve ter incidência o Direito penal.”[21]
Seguindo o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, os Juízes de Direito do primeiro grau de jurisdição adotam a mesma postura. Além do mais os Ministérios Públicos deixam de denunciar, baseados nos mesmos argumentos.
Nesse sentido, o Ministério Público do Estado de Pernambuco, analisando caso de sonegação de tributos, exarou parecer onde pugnou pelo arquivamento dos autos, alegando a incidência dos princípios da insignificância e da intervenção mínima nos seguintes termos:
No caso concreto, remanesce para fins penais, portanto, o saldo sonegado de R$ 361,79 (trezentos e sessenta e um reais e setenta e nove centavos), segundo aponta o auto de infração de fls. 05. Destarte, em virtude do montante correspondente às exações em aberto, não há tipicidade penal na conduta perpetrada pelo investigado, visto que não há lesividade da decorrente conduta em análise. Tal posicionamento resta demonstrado no art. 20 da Lei 10522/04, que dispões: Art. 20. São arquivados, sem baixa na distribuição, mediante requerimento do Procurador da Fazenda Nacional, os autos das execuções fiscais de débitos inscritos como dívida ativa da União pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais). Nessa esteira, apesar do referido diploma legal tratar do Cadastro Informativo dos Créditos não quitados de órgãos e entidades federais, deve-se entender que essa regra aplica-se por simetria no âmbito estadual. Dessa forma, resta cristalino que o Estado, atualmente, não possui interesse em promover execução fiscal contra os devedores fiscais, sempre que o valor inscrito for igual ou inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais). Ante o exposto, com base no art. 28 do CPP, o Ministério Público requer o arquivamento dos autos, por ser esta a melhor expressão do direito e da verdadeira JUSTIÇA.[22]
Concordando com o parecer ministerial, o Juízo da Primeira Vara Criminal de Caruaru determinou o arquivamento dos autos nº. 4663-86.2005.8.17.0480, senão vejamos:
Como se sabe, o Ministério Público é o titular da ação penal e a ele cabe decidir qual a providência a ser tomada após a conclusão do trabalho policial. In casu, não requereu diligências, mas sim o arquivamento do inquérito por não vislumbrar a existência de conduta típica. Evidentemente, se fosse o caso, poderia o juiz discordar e remeter, fundamentadamente, as peças ao Procurador Geral de Justiça, para as providências do art. 28 do Código de Processo Penal. No entanto, concordo com o representante ministerial e não enxergo utilidade em realizar possíveis diligências, pelo que não resta outro caminho a não ser o do arquivamento.[23]
É de se observar que os argumentos levantados pela Corte Suprema são os mesmos utilizados por todos os aplicadores do Direito, quando estudam o ordenamento jurídico-penal. Nesse esteio, é tranquilo que, sendo a conduta considerada administrativamente irrelevante, também será irrelevante na esfera penal, não justificando a propositura de ação penal.
Na verdade, o cerne da questão encontra-se especificamente na identificação do que é ou não relevante para fins de responsabilização penal daqueles que incidirem nas condutas típicas de ordem tributária. Com efeito, o Pretório Excelso, definitivamente, utiliza o limite de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), como já foi afirmado acima.
Em que pese o posicionamento majoritário exposto no capítulo anterior, a não responsabilização penal pela prática de condutas criminosas contra a ordem tributária, quando os valores sonegados forem menores que R$ 20.000,00 (vinte mil reais) ou mesmo R$ 10.000,00 (dez mil reais), não parece ser a medida mais razoável a ser tomada, muito pelo contrário, pode trazer consequências irremediáveis ao bom desenvolvimento econômico e social da nação.
Ora, é no mínimo ilógico considerar insignificantes valores tão elevados. Para se ter uma ideia do quão desmedida é a postura defendida pela jurisprudência pátria, basta ter em mente os crimes contra o patrimônio, como por exemplo o furto, no qual o princípio da insignificância já não é aplicado quando o valor subtraído ultrapassa quantias muito inferiores a acima exposta.
Não restam dúvidas de que o Direito Penal só deverá ser utilizado quando o resultado da conduta criminosa seja de fato relevante, ou seja, quando a violação ao bem jurídico ocorra de maneira clara e evidente, justificando a intervenção penal. A questão ora discutida não é essa, mas sim os parâmetros utilizados para considerar a supressão de tributos como algo irrelevante.
Como já foi esclarecido, o único argumento para aplicação do conceito de bagatela aos crimes fiscais encontra-se na permissão que o Estado fornece aos seus agentes públicos, para que estes deixem de executar judicialmente os débitos tributários, cujos valores sejam inferiores aos estipulados em legislação específica.
Ocorre que, a ofensividade de um delito contra a ordem tributária salta aos olhos. Ora, os valores que o Estado deixa de recolher deveriam ser aplicados em políticas voltadas à saúde, educação e segurança públicas. Destarte, a obtenção de riquezas por meio da tributação auxilia na consecução das finalidades da República federativa do Brasil, elencadas no art. 3º da Constituição Federal.
Inconformado com a atual postura adotada pelo Poder Judiciário, o Magistrado Pierre Souto Maior Coutinho de Amorim indaga:
Com a devida vênia, como se pode afirmar que não tem relevância o resultado de um crime que diminui a capacidade do Estado em fornecer um mínimo de qualidade bis serviços públicos que presta, causando a morte de milhares de pessoas anualmente? Como enxergar insignificância no desfalque de numerário público, quando o quadro que se apresenta no país é de falta de aulas nas escolas públicas, epidemias medievais atingindo a população sem saneamento público, mortes em filas de hospitais públicos por falta de atendimento? É no plano valorativo, axiológico, que o resultado da conduta há de ser considerado como irrelevante ou não. Pois bem, enxergamos como impossível a aplicação do princípio da insignificância, que exige resultado jurídico relevante, em delitos que produzem, não apenas uma, mas milhares de mortes por fome, doenças e falta de um abrigo qualquer, todos os anos, meses e dias nessa república.[24]
Não merece prosperar a ideia de que o Estado perdoa determinadas dívidas quando autoriza a não inscrição de valores na dívida ativa. Muito embora tal situação de fato mostre-se semelhante ao perdão do débito fiscal, na verdade a semelhança é apenas aparente, não existindo em hipótese alguma a falta de interesse por parte do ente tributante.
Como se sabe, a forma de governo adotada no Brasil é a República e, justamente por isso, o interesse que deve prevalecer durante a administração dos bens e valores pelo Estado é o interesse público, que está sempre vinculado ao conceito de indisponibilidade.
Portanto, como consequência do que se afirmou acima, é inconcebível que o Estado perdoe ou mesmo alegue desinteresse em arrecadar quantias tão imprescindíveis à concretização dos objetivos da própria República Federativa do Brasil, quais sejam, construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização; reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, todos postos na CF de 1988.
Além do mais, a autorização fornecida pelo art. 20 da Lei nº. 10.522/2002 e pela portaria MF nº. 75 resumem-se a uma mera relação de custo benefício. Com efeito, a Administração Pública apenas não executa os débitos fiscais de valores inferiores a R$ 20.000,00 (vinte mil reais), devido a falta de estrutura dos órgãos responsáveis por tal mister. Destarte, a movimentação da máquina judiciária também onera os cofres públicos, tornando-se, por vezes, inviável a impetração da respectiva ação de execução.
Ora, a ineficácia na estrutura administrativa em hipótese alguma poderá servir de norte para se afastar a tipicidade das condutas criminosas de natureza tributária. Aliás, é inclusive contraditório o argumento de que não se executa porque não existe estrutura para isso.
Com efeito, afirma-se que não se cobra um valor de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) diante da falta de recursos para tanto, contudo, como poderá ser alterada esta situação sem angariar valores aos cofres públicos?
Destarte, o critério monetário de incidência utilizado pode dar margem a uma insegurança jurídica sem precedentes, sobretudo quando se fala em Direito Penal, onde é possível a restrição da liberdade do indivíduo pelo Estado.
Fala-se em insegurança jurídica porque se hoje a administração não consegue executar um débito de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) ou mesmo R$ 10.000,00 (dez mil reais), amanhã poderá melhorar sua estrutura e apenas deixar de cobrar débito inferiores a R$ 10,00 (dez reais), por exemplo.
Por outro lado, piorando-se ainda mais a situação enfrentada pela Administração Pública, no que diz respeito aos recursos para a cobrança das dívidas ativas, poderá o Estado deixar de cobrar valores inferiores a 100.000,00 (cem mil reais). Será que esses novos valores também poderão ser considerados insignificantes para fins penas? Obviamente que não.
Acerca do tema, Raquel Elias Ferreira Dodge, Procuradora da República, dissertando sobre o tema, ensina:
“A circunstância de o Estado não promover a cobrança (mediante execução fiscal) dos valores inferiores hoje a R$ 10.000,00 não significa dizer que não haja interesse em receber as quantias. A providência insculpida em norma legal que autoriza o arquivamento (momentâneo) na distribuição das execuções fiscais diz tão somente com uma questão de política econômica e operacional da máquina de cobrança do Estado. Ou seja, a inserção de tal dispositivo justifica-se pelo fato de ser mais oneroso para o Estado cobrar as quantias objeto da prática criminosa, dado que as despesas para tanto superam aquele limite referido na norma retrorreferida. Mas o dano social – protegido pena norma penal – parece continuar evidente, dependendo do caso concreto.” [25]
Concluindo o pensamento ora defendido, Pierre Souto Maior Coutinho de Amorim assevera:
“Concluímos, pois, que qualquer delito que afete de forma grave a capacidade do Estado de fornecer melhores serviços públicos essenciais e cumprir com seus objetivos republicanos, expostos, de forma congente, na C.R, de 1988, tem resultado penalmente relevante, na medida em que evitaria milhares de mortes em todo o país, sendo incabível a aplicação do princípio da insignificância.” [26]
Portanto, diante do que já foi dito acima, pode-se concluir com veemência que é inaceitável a utilização da ideia de bagatela nos crimes que atingem violentamente o patrimônio público. É de se observar que os valores protegidos pelos tipos penais tributários são apenas administrados pelo Estado, mas, na verdade, seu legítimo titular é o povo, inserido no ideal republicano da Nação.
De proêmio, é de se observar que não se sustenta a impossibilidade de aplicação dos princípios da insignificância e da intervenção mínina aos crimes contra a ordem tributária ou de natureza fiscal. Esta, definitivamente, não é a postura mais adequada.
O que se está a defender não é isso. Muito pelo contrário, deve sim ser afastado Jus Puniend do Estado quando a aplicação de sanção de natureza penal for considerada desnecessária e desproporcional. Ora, como já argumentava Roxim, a insignificância deve ser entendida como o auxiliar interpretativo, objetivando restringir o teor literal do tipo formal.
Na verdade, o que se está a criticar é basicamente o critério monetário de incidência utilizado pelos tribunais pátrios, tendo em vista os argumentos apresentados no tópico anterior. Dessa forma, terá cabimento a aplicação do princípio da insignificância e, consequentemente, da intervenção mínima, quando estes forem apreciados de acordo com os mesmos parâmetros usados para os delitos contra o patrimônio privado.
Enriquecendo a discussão levantada no presente trabalho, Pierre Souto Maior Coutinho de Amorim, Juiz de Direito da 1ª Vara Criminal da Comarca de Caruaru – PE, argumenta:
O patrimônio público não merece proteção menor que o patrimônio privado. Se não lhe é dada melhor proteção, pelo menos de mesmo nível, quando se tem em mente o patrimônio privado, deve ser a preocupação de todos os poderes da República no cuidado com o erário que é arrecadado diretamente dos bolsos deste pobre e explorado povo.[27]
Além do mais, o art. 20 da Lei nº. 10.522/02, ao permitir o arquivamento dos autos de execução, cujo valor seja inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais), bem como a alteração para R$ 20.000,00 (vinte mil reais) efetivada por meio da Portaria/MF, em momento algum, demonstra desinteresse por parte do Estado com relação ao débito fiscal.
Ora, o citado artigo legal dispõe que haverá apenas arquivamento sem baixa na distribuição, por outras palavras, a aplicação do dispositivo não acarreta a extinção do crédito tributário, que continuará existindo. Destarte, no momento em que o débito ultrapassar o patamar de R$ 10.000,00 (dez mil reais), deverá a Fazenda Pública imediatamente promover a execução da dívida.
Esse é o entendimento, embora minoritário, adotado pela Terceira Sessão do STJ, senão vejamos:
Observa-se assim, que a legislação acima mencionada, ao indicar o limite, hoje, de R$ 10.000,00 (dez mil reais), não estabelece a extinção do crédito tributário, mas o mero arquivamento, sem baixa na distribuição, das execuções fiscais, ou seja, promove a suspensão da execução, até que o valor devido atinja o patamar ali previsto, por uma questão única e exclusivamente relacionada com a falta de aparelhamento do Estado para cobrar todos os débitos tributários.[28]
Portanto, o melhor entendimento é o de que deve ser analisado os mesmos valores já consolidados pelo STF, quais sejam, a mínima ofensividade da conduta do agente; a nenhuma periculosidade social da ação; o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica.
Nesse contexto, e reconhecendo o alto grau de subjetividade presente nos valores supramencionados, pode ser utilizado com parâmetro para análise desses requisitos, o que determina o art. 18, §1º, da Lei 10.522/02, segundo o qual “ficam cancelados os débitos inscritos em Dívida Ativa da União, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 100,00 (cem reais)”.[29]
Como se observa, somente na referida hipótese é que haverá a extinção do crédito tributário, evidenciando que o Estado, definitivamente, pedeu o interesse em cobrar a dívida fiscal, por meio da Fazenda Pública. Portanto, somente aquí, será possível falar em princípio da insignificância e da intervenção mínima.
Sendo assim, a quantia de R$ 100,00 (cem reais), além de admitir a valoração de bagatela, também é comumente utilizados para afastar a tipicidade penal referente a outras espécies de delitos. Nesse ponto, pela pertinência, vale a transcrição do julgado:
Ou seja, a invocação da insignificância como excludente da tipicidade penal somente teria lugar quando constatado que débito tributário não ultrapassasse a quantia de R$ 100,00 (cem reais). Isso porque, conforme prescedentemente já sustentado, somente aqui haverá extinção do crédito tributário e, por conseguinte, desinteresse definitivo na cobrança da dívida pela Administração Fazendária.[30]
Da mesma forma, Dermeval Farias Gomes Filho, membro do MPDF, assevera que:
Ora, o fato de não existir, por ora, interesse fiscal na cobrança judicial de débitos iguais ou inferiores a R$ 10.000,00 (dez mil reais) não pode levar à conclusão de que o não pagamento do tributo é insignificante, que constitui uma lesão ínfima ao bem jurídico penal e, portanto, uma atipicidade penal material. Assim além dos pressupostos genéricos para a incidência do princípio, é crucial afirmar que, no tocante ao descaminho, se existe algum critério razoável para a incidência do princípio da insignificância, esse há de ser o amparado no limite de R$ 100,00 (cem reais), valor que possibilita o cancelamento da cobrança com suporte no §1º do art.18 da Lei 10.522/2002, pois constitui o limite para arquivamento com baixa na distribuição. Além de ser um patamar que admite a valoração de bagatela, inclusive, em outras infrações penais. Soma-se a isso a falta de fundamento jurídico sólido para valorar como uma atipicidade material a conduta parâmetro de perpetrar descaminho com valor não superior a dez mil reais. As peculiaridades sócio-econômicas do Brasil não suportam tamanha interpretação, capaz de favorecer a prática do delito em análise. Ademais, a prática do descaminho, em não poucas vezes, fomenta outros crimes conexos que decorrem da importação de produtos sem o recolhimento do tributo devido. Desse modo, o critério atual (limite de R$ 10.000,00) não preenche o conteúdo de crime insignificante, que exige uma lesão ínfima ao bem jurídico tutelado e leva em conta as consequências sociais da conduta.[31]
Diante do que foi exposto, não há como conceber que valores tão exorbitantes, que chegam a R$ 20.000,00 (vinte mil reais), possam ser considerados insignificantes a ponto de afastar a justa causa para propositura de ação penal contra agentes sonegadores. Tal postura poderá, inclusive, estimular a pratica de condutas criminosas, tendo em vista que o Estado deixa de exercer seu Jus Puniende de maneira, a meu ver, injustificável.
Essa discrepância pode se claramente percebida quando se está diante de crimes que atingem o patrimônio privado. Com efeito, delitos como o furto só são considerados insignificantes quanto o valor subtraído não ultrapassa em média R$ 200,00 (duzentos reais). Portanto, como pode uma lesão tão alta ao patrimônio público ser considerada insignificante?
Sendo assim, a incidência dos postulados supramencionados justifica-se apenas quando forem analisados os mesmos critérios utilizados para os demais delitos contra o patrimônio. Nesse contexto, razoável que seja levado em consideração o art. 18, §1º, da Lei 10.522/02, segundo o qual os débitos fiscais inferiores a R$ 100,00 (cem reais) restaram cancelados, não cabendo qualquer medida executiva.
Com efeito, o valor acima, além ensejar o cancelamento definitivo do débito fiscal, evidenciando a falta de interesse do Estado, também é utilizado como referência para a idéia de bagatela nos demais crimes patrimoniais.
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[1]BIANCHINI, Alice; MOLINA, Antonio García Pablo de; GOMES, Luiz Flávio. Direito penal. Introdução e princípios fundamentais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. Coleção Ciência Criminais, v.1. p. 232.
[2]GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal Parte Geral. 12ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010. p. 02.
[3]AGRA, Walber de Moura, Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 99
[4]NUCCI, Guilherme de Souza, Código Penal Comentado.10ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 45.
[5]NUCCI, Guilherme de Souza, Código Penal Comentado.10ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 46.
[6]GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal Parte Geral. 12ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010. p. 61
[7]STF - HC 89.104/RS - Rel. Celso de Mello - j . 13.10.2006i. IBCCRIM 169/1042.
[8]ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado. 6ª ed. São Paulo: Método, 2012. p. 04.
[9]DE PAULA, Wellington da Silva. Do Bem Jurídico tutelado nos crimes contra a Ordem Tributária. Disponível em < http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=3417> Acesso em 16/09/2012.
[10]BRASIL, República Federativa do. Lei nº. 8.137 de 27 de dezembro de 1990
[11]MACHADO, Hugo de Brito. Crimes Contra a Ordem Tributária. 3ª Ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 328.
[12]MACHADO, Hugo de Brito. Crimes Contra a Ordem Tributária. 3ª Ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 328.
[13]BRASIL, República Federativa do. Decreto-Lei nº. 3.689 de 03 de outubro de 1941
[14]MACHADO, Hugo de Brito. Crimes Contra a Ordem Tributária. 3ª Ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 373
[15]BRASIL, República Federativa do. Lei nº. 9.430 de 27 de dezembro de 1996
[16]BRASIL. República Federativa do. Lei nº. 9.469 de 19 de julho de 1997
[17]BRASIL. República Federativa do. Lei nº. 10.522 de 19 de julho de 2002
[18] IPEA. Custo e tempo do processo de execução fiscal promovido pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional. Disponível em <http://www.ipea.gov.br/ portal/images/stories/PDFs/comunicado/120103_comunicadoipea127.pdf > Acesso em 15/10/2012
[19]Brasil, República Federativa do. Portaria do Ministério da Fazenda nº. 75, de 22 de março de 2012.
[20]STF. 1ª Turma. HC 120617, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 04/02/2014.
[21]GOMES, Luiz Flávio. Princípio da Insignificância no âmbito Federal: débitos até R$ 10.000,00. Disponível Acesso em 16/11/2012
[22]Conteúdo extraído dos autos do processo nº. 4663-86.2005.8.17.0480, que tramitou na Primeira Vara Criminal da Comarca de Caruaru – PE
[23]Conteúdo extraído dos autos do processo nº. 4663-86.2005.8.17.0480, que tramitou na Primeira Vara Criminal da Comarca de Caruaru – PE
[24]AMORIM, Pierre de Souto Maior. O uso indevido do princípio da insignificância. Disponível em < http://fundacaopedrojorge.org.br/images/stories/Documentos/boletins/boletim73.pdf > acesso em 19 de novembro de 2012.
[25]DODGE, Raquel Elias Ferreira. Pocedimento MPF nº 1.35.000.001091/2006-23. Disponível em < http://2ccr.pgr.mpf.gov.br/docs_institucional/arquivos-hospedados/28_boletim/RD_1091.pdf > acesso em 14 de dezembro de 2012.
[26]AMORIM, Pierre de Souto Maior. O uso indevido do princípio da insignificância. Disponível em < http://fundacaopedrojorge.org.br/images/stories/Documentos/boletins/boletim73.pdf > acesso em 03 de janeiro de 2013.
[27]AMORIM, Pierre de Souto Maior. O uso indevido do princípio da insignificância. Disponível em < http://fundacaopedrojorge.org.br/images/stories/Documentos/boletins/boletim73.pdf > acesso em 22 de janeiro de 2013.
[28]STJ – EREsp 966077/GO, 3ª Seção – Rel. Min. Laurita Vaz - Dje de 20 de agosto de 2009
[29]BRASIL. República Federativa do. Lei nº. 10.522 de 19 de julho de 2002
[30]STJ - REsp 1112748/TO, 3ª Seção – Rel. Min. Felix Fischer – Dje de 13 de outubro de 2009.
servidor público no Ministério Público de PE, curso superior em Direito pela Faculdade Asces e pós-graduação em Processo Penal .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MACIEL, Alisson de Lima. Aplicabilidade dos princípios da insignificância e da intervenção mínima nos crimes de natureza tributária em que o valor sonegado não ultrapasse r$ 20.000,00 (vinte mil reais) Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 jan 2017, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/49036/aplicabilidade-dos-principios-da-insignificancia-e-da-intervencao-minima-nos-crimes-de-natureza-tributaria-em-que-o-valor-sonegado-nao-ultrapasse-r-20-000-00-vinte-mil-reais. Acesso em: 23 dez 2024.
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