RESUMO: O presente trabalho tem como objeto de pesquisa o tema sistema de investigação preliminar e a processualização dos procedimentos. Com efeito, tem por objetivo a realização de uma abordagem acerca dos sistemas existentes, bem como a atual normatização pátria acerca do assunto, buscando, nesse contexto, contribuir na construção de uma investigação preliminar eficiente e que ao mesmo tempo permita a observância das garantias constitucionais, sobretudo os princípios do contraditório e da ampla defesa. Para tanto, contribuirá para o êxito da pesquisa uma análise detalhada dos ensinamentos doutrinários, bem como será relevante o estudo jurisprudencial acerca do tema, detalhando-se as vantagens e os inconvenientes de cada sistema. Ademais, o trabalho utilizou como fundo interpretativo a constitucionalização de todo o ordenamento jurídico, na medida em que a atual conjuntura jurídica não concebe qualquer interpretação que não tenha como ponto de partida a efetivação da Constituição Federal e o respeito a sua supremacia. Sendo assim, o Código de Processo Penal de 1941 merece ser aplicado com as devidas cautelas, devendo o aplicador do direito conformar suas normas aos ditames constitucionais, mormente no que se refere aos Direitos e Garantias fundamentais. É com esse espírito que foi desenvolvido o presente trabalho, buscando-se a correta e adequada medida entre a eficácia da investigação preliminar e as disposições constitucionais acerca do contraditório e da ampla defesa.
Palavras-chave: investigação preliminar, sistemas, processualização, contraditório, ampla defesa.
INTRODUÇÃO:
Como é do conhecimento jurígeno, para que seja possível a propositura de ação penal, faz-se necessária a existência cumulativa das condições da ação, dentre elas a presença de justa causa, caracterizada pela constatação de lastro indiciário mínimo dando sustentabilidade à ação e sem a qual a demanda seria temerária.
Com efeito, no que se refere a obtenção do mencionado lastro indiciário, o estudo acerca dos sistemas de investigação preliminar mostra-se relevante, sobretudo diante da atual conjuntura constitucional e seu viés interpretativo, que inevitavelmente influencia todos os demais ramos do Direito.
Em grande medida, o início da ação penal tem por base o que foi colhido na fase investigativa, razão pela qual importante que sejam analisadas as vantagens e inconvenientes dos sistemas de investigação existentes, com a finalidade de aprimorar e tornar mais eficaz a persecução penal realizada no Brasil.
Ademais, não se deve deixar de analisar a possibilidade de observância aos princípios do contraditório e da ampla defesa durante a investigação preliminar, bem como de todas as demais garantidas constitucionais. O estudo quanto a processualização dos procedimentos e a própria eficácia da atividade investigativa mostra-se imprescindível, pois é importante ponderar a obrigação do Estado de manter a estabilidade social com as garantias individuais do cidadão investigado.
O tema apresentado é inserido no contexto da investigação preliminar realizada no brasil, especificamente no que se refere a persecução penal. Com efeito, será dada ênfase ao inquérito policial, sem deixar de analisar os possíveis sistemas de investigação preliminar, seus inconvenientes e suas vantagens. Ademais, prevalece na doutrina nacional e ainda em sede jurisprudencial que não se aplicam os princípios do contraditório e da ampla defesa na fase preliminar.
Sucede que, tal posicionamento deve ser repensado, a fim de possibilitar uma verdadeira conciliação entre a eficácia da investigação e a observância das garantias constitucionais. Viabiliza-se, dessa forma, uma maior credibilidade ao momento preliminar que, mesmo não sendo necessário, é na maioria das vezes a única fonte da qual se retira o lastro indiciário mínimo para o início da ação penal. Justamente por isso, não restam dúvidas quanto a importância do tema ora apresentado: sistemas de investigação preliminar e a processualização dos procedimentos.
Nesse primeiro tópico do presente trabalho, serão abordados alguns temas que se fazem necessários à boa compreensão da matéria objeto de estudo. Com efeito, inicialmente será feita uma rápida abordagem acerca da importância dos sistemas de investigação preliminar existentes no mundo, tendo em vista que o inquérito policial adotado no Brasil, é apenas uma espécie dentre os vários sistemas coexistentes.
Ressalte-se que a discussão que será travada neste momento é de suma importância na construção de um raciocínio lógico e coeso no presente trabalho científico, viabilizando uma análise comparativa que terá grande valia no estudo da processualização dos procedimentos, mormente no que se refere às investigações preliminares de natureza criminal.
1.1 FUNDAMENTOS E RELEVÂNCIA DA INVESTIGAÇÃO.
A importância da investigação preliminar para o Processo Penal é inquestionável, sendo ela a mais notória e utilizada forma de angariar elementos justificadores da ação penal ou, em caso contrário, do não processo. Sendo assim, em que pese as deficiências dos sistemas, que serão analisadas mais a frente, a investigação prévia figura como momento imprescindível na efetiva perseguição do crime.
Não se concebe um processo sem uma investigação prévia. O processo imediato apenas potencializa as injustiças e também a ineficiência do Estado, que comumente ignora sujeitos culpáveis, deixando-os impune. Portanto, é possível concluir que a investigação preliminar justifica o processo penal e este, por sua vez, serve de instrumento à observância das garantias constitucionais, legitimando a eventual aplicação da pena.
Outro não é o entendimento da doutrina mais abalizada acerca do assunto. Por todos, vale os ensinamentos de Aury Lopes Junior, senão vejamos:
(...) a instrumentalidade fundamenta porque a instrução existe. Já explicamos no início desta obra que o fundamento da existência do processo penal é a sua instrumentalidade constitucional, na medida em que o processo penal é um caminho necessário para a efetivação da pena, mas, principalmente, está a serviço da máxima eficácia dos direitos e garantias previstos na Constituição.
A investigação preliminar não tem por fundamento a pena e tampouco a satisfação de uma pretensão acusatória. Não faz – em sentido próprio – justiça, senão que tem por objetivo imediato garantir a eficácia do funcionamento da Justiça.
Por isso, trata-se de uma instrumentalidade qualificada, pois a instrução preliminar está a serviço do instrumento-processo. Nesse sentido pode-se perfeitamente aplicar a doutrina de CALAMANDREI de que estamos ante uma instrumentalidade eventual e qualificada, por assim dizer, “elevada ao quadrado[1].
Ressalte-se ainda que, além do caráter instrumental supramencionado, existem outras razões de importância inexorável que justificam a necessidade da investigação prévia. Com efeito, no contexto da instrumentalidade constitucional, a fase pre-processual visa buscar o fato oculto referente ao crime.
O crime, na maioria das vezes, é cometido de forma dissimulada e uma investigação eficaz permite a revelação dos fatos ocultados, possibilitando que o processo seja iniciado de forma adequada, baseado em fatos concretos e não apenas em presunções ou pressões de qualquer ordem. Ademais, o bom desenvolvimento da investigação reduz a grande disparidade entre a criminalidade real e a criminalidade conhecida pelos órgãos públicos, denominada de cifra negra. Tal desproporção ocorre por diversas razões como por exemplo a própria natureza dissimulada do delito, postura da vítima e a tolerância social.
Nesse sentido, importante a lição de Nestor Sampaio Penteado Filho, senão vejamos:
Nesse contexto, ocorre aquilo que se denomina cifra negra, isso é, o número de delitos que por alguma razão não são levados ao conhecimento das autoridades, contribuindo para uma estatística divorciada da realidade fenomênica[2].
Finalmente, não se pode esquecer que a investigação preliminar serve como filtro processual, evitando acusações infundadas. Talvez essa seja a mais importante finalidade, visto que as já mencionadas cifras da ineficiência (processo sem embasamento) e cifras da injustiça (processo contra inocentes) são um mal muitas vezes irreparável. Afinal, um processo ineficiente ou injusto traz como consequências o custo desnecessário, o constrangimento do acusado e a estigmatização social.
1.2 FASE PRÉ-PROCESSUAL: SISTEMAS EM ESPÉCIE.
De proêmio, importante lembrar que é do Estado a incumbência da investigação preliminar, que poderá exercer sua função por meio da Polícia Judiciária, do Juiz Instrutor ou do Ministério Público. É justamente sob esse aspecto que serão analisados os sistemas.
Não obstante, cabe esclarecer que, apesar de ser tomado como parâmetro para classificação e comparação, mais importante do que se deter ao sujeito responsável pela investigação é estudar como esta será desenvolvida, a necessidade de observância da força normativa da constituição e a adequada relação entre a efetividade da investigação e os direitos e garantias constitucionais do acusado. Essa análise será feita mais adiante.
Nesse momento, cumpre apresentar o primeiro sistema que será estudado, o da investigação preliminar policial. Por este, a autoridade policial é o titular da investigação preliminar, sem qualquer vinculação funcional com o magistrado o mesmo como o Ministério Público.
Esse sistema possui algumas vantagens, que foram consideradas inclusive pelo legislador pátrio quando da elaboração do Código de Processo Penal de 1941. Com efeito, a principal vantagem da investigação policial é a possibilidade de se fazer presente em todos os lugares, principalmente em países de grandes proporções como o Brasil.
Nesse sentido, pela pertinência, vale transcrever trecho da exposição de motivos do Código de Processo Penal de 1941. Vejamos:
O ponderado exame da realidade brasileira, que não é apenas a dos centros urbanos, senão também a dos remotos distritos das comarcas do interior, desaconselha o repúdio do sistema vigente.[3]
Ademais, é possível indicar ainda como vantagem do sistema policial o fato de ser economicamente mais viável, na medida em que, por exemplo, com a remuneração de apenas um juiz ou promotor é possível custear toda uma equipe agentes policiais.
Sucede que, em que pese as vantagens supramencionadas, o sistema policial encontra-se em uma verdadeira crise e as suas deficiências não são pouca, ensejando o seu descrédito. Inúmeros são os problemas apresentados na investigação policial. Primeiramente, não se pode deixar de lembrar o alto grau de discricionariedade, característico do sistema, tornando o limite entre o lícito e ilícito muito tênue, o que pode dá margem a arbitrariedades das mais diversas ordens.
Ademais, não se desconhece a forte pressão política sofrida pelos agentes públicos responsáveis pelas investigações, sobretudo em casos de repercussão e que envolvem interesses escusos das classes mais elevadas e influentes da sociedade.
Registre-se ainda que não rara vezes as relações entre Polícia e Ministério Público são comprometidas pelo descompasso entre os posicionamentos de ambas as instituições, prejudicando toda a persecução penal.
Finalmente, outro grande inconveniente do sistema de investigação ora analisado é o fato de ter pouca utilidade para a atividade defensiva, na medida em que é tratada como procedimento unidirecional, vale dizer, dirigido unicamente à formação da opinião delitiva do órgão acusador. Nesse sentido, leciona Noberto Avena que “trata-se, assim, de um procedimento inquisitivo, voltado à obtenção de elementos que sirvam de suporte ao oferecimento de denúncia ou de queixa-crime”[4].
De outra banda, importante neste momento uma breve abordagem acerca da investigação preliminar judicial, desenvolvida por um Juiz Instrutor, que é o grande protagonista da investigação, colhendo os elementos justificadores do processo, decidindo medidas cautelares, agindo de ofício sempre que entender necessário, não precisando sequer da concordância do titular da ação penal.
Diante das características acima elencadas, resta evidenciado que o sistema do juiz instrutor tem como maior problema a imparcialidade, razão pela qual os países que ainda adotam tal sistema vedam de forma absoluta que o juiz instrutor julgue, ao final, a causa.
Trata-se de um modelo de investigação em desuso, tendo em vista sua natureza eminentemente inquisitiva. Ademais, é no mínimo contraditório que o juiz investigue para o Ministério Público posteriormente acusar.
Finalmente, cabe apresentar o sistema de investigação preliminar desenvolvido pelo próprio Ministério Público – promotor investigador – que poderá atuar com o auxílio da Polícia Judiciária. Sendo assim, o Ministério Público exercerá nitidamente a direção da atividade policial, sendo esta subordinada.
Por esse modelo, em que pese os amplos poderes investigativos do Parquet, este não poderá, sem autorização do Poder Judiciário, adotar medidas limitativas de direitos fundamentais. Portanto, o magistrado passa a atuar como órgão completamente imparcial e controlador da legalidade dos atos do acusador.
Nesse sentido, a investigação levada a cabo pelo promotor de justiça apresente algumas vantagens importantes como a já mencionada valorização do sistema acusatório, distanciando o Poder Judiciário de posturas comprometedoras da imparcialidade. Ademais, evita-se o inconveniente de uma investigação realizada pela Polícia Judiciária em total descompasso com o Ministério Público, verdadeiro titular da ação penal pública.
Registre-se, contudo, que, apesar das notórias vantagens do mencionado sistema, este não está livre de críticas, sobretudo quando se pensa nas suas origens históricas. Com efeito, o sistema de investigação preliminar do promotor investigador surgiu para combater a qualquer custo a criminalidade em países da Europa, como a Alemanha e Itália, onde o terrorismo e o crime organizado se fizeram presente em grandes proporções.
Destarte, é dessa supervalorização da atividade acusatória em sentido amplo, onde os fins passaram a justificar os meios, que se retira os delineamentos iniciais da investigação preliminar a cargo do Ministério Público. Esse ideal de combater a criminalidade a qualquer custo acaba por estabelecer uma completa insegurança social, colocando todos, culpados e inocentes, sob o temor da acusação.
Exemplificando essa situação, trazendo caso ocorrido na Itália, Aury Lopes Junior lembra:
Já em 1992, quando o promotor Antonio di Pietro começa a investigar um “caso de menor importância”, culmina por colocar em relevo um escândalo de corrupção política sem precedentes (tangentópolis). A partir de então, a operazione mani pulite – inicialmente levada a cabo por sete promotores de Milão e posteriormente por uma ampla equipe – processa em menos de um ano seis ministros e mais de uma centena de parlamentares e os dirigentes das mais importante empresas da Itália. São números elevados e preocupantes, não só pelo nível de criminalidade que representam, mas principalmente porque por trás deles está uma elevada cifra da injustiça[5].
Ademais, cabe ressaltar que, diante dos argumentos acima elencados, acreditar que o Ministério Público agirá de forma imparcial na investigação criminal seria no mínimo ingênuo, na medida em que o Parquet e suas funções são nitidamente acusatórios.
Diante de tudo que foi exposto até o momento, é fácil concluir que não há sistema de investigação imune às críticas. Sendo assim, mais importante do que a mera definição do órgão acusador, é a análise acerca da forma como os atos investigativos serão realizados. Não importa saber qual o órgão responsável pela investigação – polícia, Ministério Público ou Poder Judiciário – quando na verdade o problema de fundo é outro: a forma como o órgão encarregado conduzirá o procedimento.
2. INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR NO BRASIL: O INQUÉRITO POLICIAL E SUA CRISE.
Analisados os sistemas de investigação preliminar existentes no mundo, importante neste momento que seja apresentada, ainda que de forma sucinta, a maneira como o Brasil trata a matéria, as características principais do sistema adotado, bem como as dificuldades enfrentadas na busca de uma atuação do Estado eficaz.
O presente capítulo é relevante para que se possa visualizar as falhas do sistema, permitindo uma releitura do inquérito policial à luz das normas constitucionais garantidoras dos direitos fundamentais, o que reflete diretamente na possibilidade de aplicação do contraditório e da ampla defesa, com as devidas proporções, na fase pre-processual, por meio da chamada processualização dos procedimentos.
O inquérito policial, utilizado como regra no Brasil, foi mantido no Código de Processo Penal de 1941 e sobrevive até os dias atuais, razão pela qual deve ser compatibilizado em diversos aspectos com a Constituição Cidadã de 1988, como será visto em seguida.
Neste ponto, ressalte-se que não se desconhece a existência de outras formas de investigação que coexistem, juntamente com o inquérito policial. Com efeito, o próprio art. 4º, parágrafo único do CPP, estabelece que as atribuições das autoridades policiais não excluirão a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função.
Sendo assim, é plenamente possível que sejam realizadas diligências investigativas por outras instituições, como a Polícia Militar, por meio do Inquérito Policial Militar e as comissões parlamentares de inquérito, nos termos do art. 58, §3º, da Constituição Federal. Ademais, em recente julgado de 14/05/2015, o Supremo Tribunal Federal posicionou-se mais uma vez pela possibilidade da investigação realizada pelo Ministério Público. Pela pertinência vale a transcrição:
O Ministério Público dispõe de competência para promover, por autoridade própria, e por prazo razoável, investigações de natureza penal, desde que respeitados os direitos e garantias que assistem a qualquer indiciado ou a qualquer pessoa sob investigação do Estado, observadas, sempre, por seus agentes, as hipóteses de reserva constitucional de jurisdição e, também, as prerrogativas profissionais de que se acham investidos, em nosso País, os Advogados (Lei 8.906/94, artigo 7º, notadamente os incisos I, II, III, XI, XIII, XIV e XIX), sem prejuízo da possibilidade – sempre presente no Estado democrático de Direito – do permanente controle jurisdicional dos atos, necessariamente documentados (Súmula Vinculante 14), praticados pelos membros dessa instituição[6]
Sucede que, para os fins a que se destina o presente trabalho, serão tecidas considerações apenas quanto ao inquérito policial, que é o procedimento investigativo por excelência utilizado no Brasil.
2.1 O INQUÉRITO POLICIAL: NATUREZA, OBJETO E LIMITAÇÕES.
O inquérito policial pode ser considerado como o procedimento destinado a apuração de elementos relacionados com a autoria e a materialidade delitivas, diante da notícia do cometimento de uma infração penal. Visa tal procedimento fornecer fundamentos para a propositura ou não da ação penal pelo seu titular, seja o Ministério Público seja o querelante. Segundo Fernando Capez, no seu curso de Processo Penal:
É o conjunto de diligências realizadas pela polícia judiciária para a apuração de uma infração penal e de sua autoria, a fim de que o titular da ação penal possa ingressar em juízo (CPP, art. 4º). Trata-se de procedimento persecutório de caráter administrativo instaurado pela autoridade policial[7].
Como se percebe, o Brasil adotou o sistema policial de investigação preliminar. Nesse contexto, nos dizeres de Julio Fabbrini Mirabete, “a polícia é uma instituição de direito público destinada a manter a paz pública e a segurança individual”.[8] Destarte, a Constituição Federal prever expressamente a atividade investigativa a polícia judiciária – federal e estadual – no art. 144, §1º, inc. IV, e §4º, CF). Da mesma forma, é possível citar a Lei 12830/2013, que também elenca como função da polícia judiciária a apuração de infrações penais.
Por esse sistema, os procedimentos realizados têm natureza eminentemente administrativa, na medida em que são desenvolvidos pelo Poder Executivo, através das polícias civis, estudais e federais. As razões da adoção da mencionada forma de apuração, como já exposto anteriormente, foram elencadas na exposição de motivos do Código de Processo Penal e dizem respeito as dimensões territoriais do país.
Não obstante, em que pese a atribuição da polícia na condução da fase pré-processual, sobreleva anotar que esta não é totalmente livre para atuar, sem qualquer controle por parte do Poder Judiciário. Muito pelo contrário, a obrigatória observância das imposições constitucionais exige o constante controle da legalidade dos atos investigatórios, bem como requer apreciação judicial para adoção de medidas submetidas à cláusula de reserva de jurisdição. O juiz funciona, portanto, como verdadeiro garantidor dos direitos do acusado.
Outro não é o entendimento consolidado na jurisprudência e doutrina pátrias. Por todos, vale os ensinamentos de Aury Lopes Junior:
O juiz passa a assumir uma relevante função de garantidor, que não pode ficar inerte ante violações ou ameaças de lesão aos direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, como no superado modelo positivista[9].
No que se refere ao objeto do inquérito policial, será sempre o fato constante na notitia criminis. Os fatos configuradores de infrações penais são os grandes justificadores da investigação. Não é necessário que seja previamente identificado o autor da infração, tendo em vista que esta será uma das suas finalidades, a ser alcançada durante o procedimento.
Ademais, outro ponto característico do Inquérito Policial é sua limitação investigativa acerca do seu objeto. Não deve tal procedimento exaurir toda a investigação, de forma plena, subtraindo o desiderato do futuro processo penal. Vale dizer, o inquérito policial nasce da mera possibilidade da existência de um crime e busca a colheita de elementos que qualifiquem essa possibilidade numa probabilidade, justificando a ação penal.
Nesse contexto, o professor Aury Lopes Junior, com o fim de estabelecer os limites do inquérito policial, diferencia o plano de cognição em horizontal e vertical. O plano horizontal diz respeito ao campo probatório, não podendo este ser plenário. De outra banda, o plano vertical refere-se aos elementos do crime (tipicidade, ilicitude, culpabilidade). Esta análise também não deve ser exauriente, pois teses jurídicas e a completa instrução probatória deve ser realizada sob a estrutura dialética do processo.
2.2 A CRISE DO INQUÉRITO POLICIAL:
O sistema policial de investigação preliminar, em especial o Inquérito Policial realizado no Brasil, está em crise. As críticas são de todas as ordens; tal sistema desagrada magistrados, Ministério Público e principalmente advogados, situação que apresenta como maior prejudicada a sociedade como um todo, que é obrigada a assistir o crescimento desenfreado da criminalidade.
O primeiro problema, de ordem prática, está no respeito aos limites que deve observar a investigação preliminar. Como foi dito anteriormente, o inquérito policial possui limites tanto no plano horizonta como no vertical. Sucede que, é comum a existência de investigações que duram meses e até anos para conclusão, na tentativa de se provar o fato, quando deveria apenas demonstrar sua probabilidade.
Nessa monta, assevera Michel Misse:
Muitos inquéritos existem há mais de cinco anos, permanecendo na inércia do chamado pingue-pongue entre delegacia e o MP, até que resultem em pedido de arquivamento ou, raramente, de denúncia.[10]
Essa falha por parte da autoridade policial, que transforma um procedimento sumário por natureza em procedimento pleno, configura verdadeiro desvirtuamento do inquérito policial. O problema é ainda maior com a constatação de que todo esse desgaste desnecessário na fase preliminar não terá utilidade para o processo, pois todas as provas colhidas devem necessariamente ser repetidas em Juízo, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, aspectos intrínsecos ao devido processo legal, na perspectiva do processo justo.
Ao problema acima acrescenta-se ainda o conhecida contrariedade entre Ministério Público e Polícia Judiciária. Não faz sentido uma investigação realizada pela polícia para que o Ministério Público ofereça denúncia, com base em elementos colhidos em total descompasso entre as duas instituições. A falta de coordenação entre ambas pode gerar prejuízos irreparáveis para o exercício do jus puniendi estatal.
Por outro lado, os advogados também questionam veemente a forma como a investigação policial é conduzida no Brasil. Utilizando-se o argumento do sigilo e da inexistência de contraditório e direito de defesa na fase preliminar, é comum a negativa por parte da autoridade policial de qualquer atividade defensiva neste momento. Tal postura, infelizmente, desvirtua a maneira como o ordenamento jurídico deve ser interpretado, numa clara inversão de valores onde a Constituição é posta em segundo plano.
3. INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR BRASILEIRA À LUZ DA PROCESSUALIZAÇÃO DOS PROCEDIMENTOS:
Neste capítulo derradeiro será abordada o inquérito policial à luz da processualização dos procedimentos. Vale dizer, serão apresentados aspectos relevantes quanto à possibilidade de se assegurar um mínimo de contraditório e defesa já na fase preliminar, sendo este, aliais, o melhor viés interpretativo que deve ser dado à Constituição Federal de 1988.
Sendo assim, será por meio dessa análise que se indicará os primeiros delineamentos necessários a uma investigação preliminar fiel às suas finalidades e obediente a inevitável “oxigenação” constitucional. Os anseios políticos existentes no momento da elaboração do Código de Processo Penal de 1941 eram notoriamente diversos dos que ensejaram a Carta Cidadão, devendo esta, por óbvio, prevalecer.
3.1 DIREITO DE DEFESA E CONTRADITÓRIO NA INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR:
As garantias do contraditório e da ampla defesa estão elencadas no art. 5º, inc. LV, da Constituição Federal, segundo o qual “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.[11]
Analisando o supramencionado dispositivo constitucional, leciona Dirley da Cunha Junior:
Tais garantias completam e dão sentido e conteúdo à garantia do devido processo legal, pois seria demasiado desatino garantir instauração formal de processo e não se assegurar o contraditório e a ampla defesa àquele que poderá ter a sua liberdade ou o seu bem cerceado; ademais, também não haveria qualquer indício de razoabilidade e justiça numa decisão quando não se permitiu ao indivíduo às mesmas garantias do contraditório e da ampla defesa.[12]
Em que pese ser comum a afirmação doutrinária no sentido de que não existe direito de defesa e contraditório no inquérito policial, essa alegação é por demais simplista, não analisando o tema com a devido acuidade que ele merece.
Ora, como explicar então a possibilidade de o suspeito se manter em silêncio? E até mesmo quando resolve falar, é lhe dado oportunidade de apresentar a sua versão dos fatos. Isso não é ato de defesa? É claro que sim. Além do mais, é possível citar ainda a possibilidade de habeas corpus profilático, com a finalidade de trança a investigação.
Sendo assim, não restam dúvidas quanto à existência de algumas atividades defensivas na fase preliminar, entretanto, tal possibilidade merece ser potencializada, a fim de garantir a eficácia da Constituição Federal, situação aqui denominada como processualização dos procedimentos.
O supramencionado dispositivo constitucional é amplo e de forma ampla deve ser interpretado. Não há razões para excluir do seu âmbito de incidência o inquérito policial. Com efeito, a Carta de 1988 foi expressa ao assegurar o contraditório e a defesa a todos os acusados em geral.
Quanto à possibilidade de contraditório, especificamente, não se pretende sua integral aplicação na fase preliminar, até mesmo porque neste momento não existe a estrutura dialética que há na instrução processual, ou seja, não há partes que se contradigam, não há relação jurídico-processual.
Na verdade, o que se busca com o presente trabalho é demonstrar a importância do contraditório no inquérito policial, entretanto, no seu aspecto do direito à informação, viabilizando a atuação defensiva já neste momento.
Essa informação, contudo, não se estende a toda a sociedade, tendo em vista que é condição da próprio eficácia da investigação que esta seja mantida em sigilo, evitando inclusive a estigmatização do suspeito, muitas vezes influenciadas pela mídia. Nesse sentido, vale os ensinamentos de Guilherme de Souza Nucce:
Não cabe a incursão na delegacia, de qualquer do povo, desejando acesso aos autos do inquérito policial, a pretexto de fiscalizar e acompanhar o trabalho do Estado-investigação, como se poderia fazer quanto ao processo-crime em juízo.[13]
Registre-se que esse posicionamento vem ganhando força a um certo tempo, já encontrando respaldo na legislação infraconstitucional nacional, como é o caso da lei 8906/1994. Sucede que, apenas em 2009 o Suprema Tribunal Federal, por meio da súmula vinculante n. 14, pacificou a possibilidade de acesso amplo aos elementos de prova, já documentados, com o seguinte teor:
É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.
Diante das questões apresentadas acima, fica fácil perceber que mais importante do que definir qual órgão será encarregado pela investigação preliminar, seria desenvolver um estudo profundo, sempre à luz da Constituição Federal, acerca da maneira como tal investigação deve ser conduzida.
Essa análise envolve diversos aspectos, todos tendo como plano de fundo a processualização dos procedimento, na perspectiva de estabelecimento de um devido processo legal, também no momento preliminar, com as devidas proporções.
Sendo assim, é relevante firmar a função do juiz neste momento, que deve se limitar a garantir eficácia ao direitos fundamentais, não agindo como inquisidor. Importante também que seja estabelecido de uma vez por todas o controle externo da atividade policial, visando senão eliminar, ao menos reduzir ao máximo as falhas do sistema policial.
Esse controle permitiria inclusive o respeito aos limites horizontal e vertical que deve observar o inquérito policial, evitando dilações temporais desnecessárias. Finalmente, e talvez o mais importante, é necessária uma verdadeira conscientização por parte dos aplicadores do direito (juiz, promotor e autoridades policiais), no sentido de viabilizar ao máximo as disposições constitucionais, mormente no que se refere às garantias do acusado (em sentido amplo), em todas as fases da persecução penal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Diante de tudo o que foi exposto, é possível concluir que o tema referente aos sistemas de investigação preliminar possui relevância inexorável, em que pese, infelizmente, ainda ser analisada de maneira reducionista por parte da doutrina nacional e também pelos Tribunais Pátrios.
Os crescentes índices de criminalidade demonstram que o atual sistema de investigação policial não vem contribuindo de forma eficaz na resolução de casos criminosos, ao passo em que, comumente são desrespeitadas as garantias constitucionais fundamentais do cidadão, que se vê encurralado numa incontornável insegurança jurídica, principalmente quando é investigado.
O inquérito policial, utilizado como regra no Brasil, foi mantido no Código de Processo Penal de 1941 e sobrevive até os dias atuais, razão pela qual deve ser compatibilizado em diversos aspectos com a Constituição Cidadã de 1988. A tendência ideológica e interpretativa trazida pelo chamado neoconstitucionalismo exige respeito à força normativa da Constituição, na medida em que o texto constitucional, na atualidade, deixou de ser mera carta política dirigida ao legislador.
Nesse contexto, não resta outra postura senão buscar ao máximo medidas que garantam a imparcialidade do Juízo, o controle externo da atividade policial e a observâncias das garantias do cidadão investigado, como o contraditório e o direito de defesa.
Só assim, adotando-se todas essas posturas, será possível um sistema de investigação preliminar eficaz e que, ao mesmo tempo, permita a devida segurança jurídica ao investigado, que estará certo de que só responderá pelo que de fato cometeu, bem como à sociedade, que não mais verá infindáveis investigações que ao final resultam em processos sem o menor grau de confiabilidade. Outro não é o ideal trazido pela processualização dos procedimentos.
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[1] JUNIOR, Aury Lopes, Direito Processual Penal. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 316.
[2] FILHO, Nestor Sampaio Penteado, Manual Esquemáico de Criminologia. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 45.
[3] BRASIL, República Federativa do. Exposição de Motivos do Decreto-Lei 3.689 de 3 de outubro de 1941.
[4] AVENA, Noberto, Processo Penal Esquematizado. 6ª ed. São Paulo: Método, 2014, p. 339.
[5] JUNIOR, Aury Lopes, Direito Processual Penal. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 335..
[6] STF. Plenário. RE 593727/MG, red. p/ o acórdão Min. Gilmar Mendes, julgado em 14/5/2015.
[7] CAPEZ, Fernando, Curso de Processo Penal. 21ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 133.
[8] MIRABETE, Julio Fabbrini, Código de Processo Penal interpretado. 2ª ed. Atlas, 1994, p. 35.
[9] JUNIOR, Aury Lopes, Direito Processual Penal. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 354
[10] MISSE, Michel (organizador). O inquérito policial no Brasil: uma pesquisa empírica. Rio de Janeiro: Booklink, 2010. p. 57.
[11] BRASIL, República Federativa do. Constituição Federal de 1988.
[12] JUNIOR, Dirley da Cunha, Curso de Direito Constitucional. 8ª ed. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 571.
[13] NUCCI, Guilherme de Souza, Manual de Processo Penal e Execução Penal. 11ª ed. Rio de Janeiro: forense, 2014, p. 238.
servidor público no Ministério Público de PE, curso superior em Direito pela Faculdade Asces e pós-graduação em Processo Penal .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MACIEL, Alisson de Lima. Sistemas de investigação preliminar e a processualização dos procedimentos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 jan 2017, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/49059/sistemas-de-investigacao-preliminar-e-a-processualizacao-dos-procedimentos. Acesso em: 23 dez 2024.
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