RESUMO: O presente estudo é baseado numa análise do instituto jurídico da posse, partindo-se das controvérsias quanto a sua origem e das divergências quanto ao emprego do próprio vocábulo ''posse''. Através de um breve traçado das teorias acerca da posse em seu sentido próprio, torna-se mais claro o entendimento quanto ao seu conceito, classificação e efeitos. Numa outra vertente, faz-se a análise da acepção da posse no esteio da aquisição da propriedade, tecendo-se considerações e classificações acerca do usucapião para, por fim, chegar-se a problemática da irregularidade da posse no Brasil, que leva em conta o aspecto da legitimação da posse e o desenvolvimento da função social da propriedade urbana.
Palavras-chave: posse - modalidades - aquisição da propriedade - legitimação da posse - função social
Sumário: 1. Introdução. 2. Origem e conceito. 3. Teorias sobre o sentido próprio da posse: objetiva e subjetiva. 4. Classificação da posse. 4.1. Direta e indireta. 4.2. Justa e injusta. 4.3 De boa-fé e de má-fé. 4.4 Ad interdicta e ad usucapionem. 5. Modos de aquisição da posse: originário e derivado. 5.1. Modalidades de aquisição derivada. 5.1.1. Tradição. 5.1.2. Sucessão. 5.1.3. Constituto possessório. 6. Perda da posse. 7. Efeitos da posse. 7.1.1. Percepção dos frutos. 7.1.2. Responsabilidade pela perda e deteriorização da coisa. 7.1.3. Indenização pelas benfeitorias e direito de retenção. 7.1.4. Usucapião. 7.2. Proteção possessória: autodefesa e interditos possessório. 7.2.1. Autodefesa. 7.2.2. Ações possessórias. 8. Usucapião. 8.1 Espécies. 9. A posse no esteio da aquisição da propriedade. 9.1. Evolução história acerca das acepções sobre propriedade: do caráter absoluto à função social. 9.2. As irregularidades da posse no brasil: a legitimação da posse e o desenvolvimento da função social da propriedade urbana. 10. Conclusão. 11. Referências bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
A princípio, cumpre-se ressaltar a grande controvérsia que gira em torno dessa vertente temática do Direito das Coisas. Controvérsia esta que parte desde a simples definição do que é a posse, ante os vários sentidos impróprios em que é empregado tal vocábulo na linguagem comum, que prossegue a respeito de sua natureza jurídica e remete até mesmo a sua origem.
Relativas ao sentido próprio da posse, contudo, surgem duas teorias dicotômicas, que, apesar de remontarem a séculos passados, continuam a exercer papel ímpar na influência da produção legislativa civil nos ordenamentos jurídicos da civilização ocidental.
A teoria subjetivista, proposta por Savigny, propunha que a posse seria caracterizada pela conjunção de dois elementos: o animus e o corpus. Seriam, tais elementos, na verdade, o elemento material, isto é, o poder de dispor fisicamente da coisa, e o elemento volitivo, a intenção de ter a coisa como sua.
Apesar de ter influenciado sobremaneira o pensamento jurídico do século passado, foi contrariada pela teoria de Jhering, denominada doutrinariamente como ''teoria objetiva''. Para Jhering, seria dispensada a intenção de ser o dono da coisa, sendo suficiente a affectio tenendi, independentemente de querer ser dono. A teoria é denominada objetiva justamente por dispensar tal intenção.[1]
Ambas teorias são de fundamental importância para o entendimento da dinâmica evolutiva que envolve a posse, ante o fato de que, a partir de uma análise conjunta daquelas com as formas de classificação, efeitos, pode-se entender as diferentes modalidades aquisição de propriedade através da posse de acordo com a normatização do ordenamento jurídico pátrio.
A necessidade da correlação desses conhecimentos é patente para entender-se a conjuntura atual, podendo ser visualizado em trecho da obra do jurisconsulto Caio Mário, ao tratar da posse ensejadora de usucapião:
Não é qualquer posse, repetimos; não basta o comportamento exterior do agente em face da coisa, em atitude análoga à do proprietário; não é suficiente a gerar aquisição, que se patenteie a visibilidade do domínio. A posse ad usucapionem, assim nas fotnes como no direito moderno, há de ser rodeada de elementos, que nem por serem acidentais, deixam de ter a mais profunda significação, pois a lei requer contínua, pacífica ou incontestada, por todo o tempo estipulado, e com intenção de dono. (PEREIRA, 2009, p. 119)
Nesse aspecto, percebe-se que a dinâmica evolutiva da posse tem sua importância e reflexo direto com a atual problemática questão da regularização da posse. Apenas a partir do entendimento dos preceitos daquela é que se cogita, por exemplo, formas de legitimação da posse que, diante da infinidade de assentamentos irregulares aos quais se encontram sujeita boa parcela da população, buscam garantir o direito social à moradia e o desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana.
2. ORIGEM E CONCEITO
Disciplinada primeiramente pelos romanos, a posse ainda é um dos temas mais controvertidos entre os doutrinadores, a começar pela etimologia do vocábulo. Além disso, nem mesmo a origem da posse é algo pacífico, visto que:
a) há aqueles que se filiam à teoria de Niebuhr, adotada por Savigny, que defende a tese de que a posse surgiu com a repartição de terras conquistadas pelos romanos, que eram posteriormente loteadas. Como parte dos lotes era cedida a título precário, os beneficiários não eram os proprietários das terras, mas, apesar de não poderem invocar ações reivindicatórias para se defenderem, valiam-se dos interditos possessórios.[2]
b) e aqueles que aderem à teoria de Jhering, para quem a posse surge da medida arbitrária tomada pelos pretores, que, na fase inicial das ações reivindicatórias, outorgavam, sem critérios, a guarda ou detenção litigiosa a qualquer dos litigantes.
Apresentada a controvérsia quanto a sua origem, voltemos à pluralidade de significados do termo "posse", que pode ser empregado para designar: a propriedade, como já mencionado; a utilização dos direitos ou existência de um estado; a investidura em cargo público; bens de fortuna, quando se diz que "Tício é de altas posses"; o domínio político, visto que no direito internacional público fala-se em possessão de um país.
Superada a discussão acerca das ambiguidades do termo, historicamente, a posse foi entendida como uma situação de fato, ante a conduta de uma pessoa (proprietária ou não), de exercer poderes defensivos sobre uma coisa, conservando-a, pelo que se assemelharia à detenção, diferindo desta pela sua própria essência e pelos seus efeitos.
Noções primitivas acerca da posse remetem ao entendimento de ser esta o fato de ter uma coisa em seu poder, que conferia poder de uso e gozo. Era, pois, a compreensão da posse relacionada àquilo que a mão toca e mantém fisicamente junto ao corpo.
Com o aumento da complexidade das relações intersubjetivas, contudo, surge a necessidade de repensar a compreensão da posse, pelo que surgem duas principais teorias: a subjetiva e a objetiva.
3. TEORIAS SOBRE O SENTIDO PRÓPRIO DA POSSE: OBJETIVA E SUBJETIVA
Em relação ao seu sentido próprio da posse, há duas teorias, que influenciaram e influenciam estudos acerca do tema e tiveram papel significativo no conteúdo de legislações existentes na atualidade, que são a teoria objetiva, formulada pelo alemão, Rudolf Ritter von Jhering, e a subjetiva, do alemão Friedrich Karl von Savigny.
Antes de passar à distinção entre as duas teorias, importa salientar que, apesar da grande influência exercida pela teoria objetiva de Jhering nas legislações modernas, ainda persiste a dicotomia entre as duas concepções sobre a posse. Isto porque, embora muitos jurisconsultos considerem que a teoria de Savigny tem apenas valor histórico, segundo Ulhoa, ela ainda pode ser visualizada em determinadas legislações, a exemplo do Código Civil italiano, como pode ser observado da leitura do art. 1.140 do atual Codice Civile italiano, que faz referência ao poder sobre a coisa:[3]
Art. 1140. Possesso. Il possesso è il potere sulla cosa che si manifesta in un'attività corrispondente all'esercizio della proprietà o di altro diritto reale.
Si può possedere direttamente o per mezzo di altra persona, che ha la detenzione della cosa. COMO FAZER REFERÊNCIA DE LEGISLAÇÃO
Para Savigny, o corpus, o elemento material da posse, corresponde, na verdade, ao poder físico da pessoa sobre a coisa possuída, caracterizado como o poder direto que a pessoa tem de dispor de um bem e defendê-lo contra às agressões de quem quer que seja.
O elemento psíquico, interior, portanto, é o animus, que é a intenção de ter a coisa como sua, a vontade de ser proprietário da coisa, o animus domini. Ausente esse elemento, ter-se-á mera detenção (naturalis possessio). Já no caso da ausência do primeiro elemento, o corpus, caracterizar-se-á um fenômeno da natureza psíquica,irrelevante para o Direito.
Para que o estado de fato da pessoa junto à coisa constitua posse, segundo tal teoria, seria necessário, então, a conjugação do elemento físico com a vontade de proceder em relação à coisa como procede o proprietário (affectio tenendi), acrescentando-se a isso a vontade de ser dono (animus domini). Nesses termos, não se adquire posse somente pela apreensão física, nem somente com a intenção de ser dono.[4]
Justifica-se, assim, como consequência dessa doutrina, a ausência de relação possessória, por exemplo, na locação e no comodato, pois, ainda que exista o poder físico sobre o bem, pois falta a intenção de ter a coisa como dono.
Jhering, contudo, defendeu que, para que haja a configuração da posse, é bastante que exista apenas o corpus, visto que o animus, segundo ele, não se situa na intenção de ser dono, mas na vontade de proceder como procede habitualmente o proprietário (affectio tenendi), independentemente de querer ser o dono. O corpus é a relação exterior que há entre a pessoa e a coisa, a conduta externa, semelhante ao procedimento normal do proprietário.
Embora também adote em sua teoria a ideia de corpus trazida por Savigny, diferencia-se quando sustenta que não há a necessidade de o possuidor exercer um poder efetivo real para ser tido tal, até mesmo pelo fato de ser impossível a um sujeito exercer, de modo permanente e contínuo, poder sobre todos seus bens possuídos. Na verdade, a existência de posse sobre determinada coisa é definida pela sua destinação econômica: se a coisa encontra-se em estado de exploração econômica, aquele que explora exerce posse sobre a coisa. Para Jhering, o elemento volitivo, isto é, o animus de Savigny, seria uma decorrência da própria exploração econômica do bem, sendo desnecessária a sua identificação para a caracterização da posse.[5]
Como já mencionado, a teoria objetiva influenciou muitas legislações do mundo ocidental, tendo sido adotada também pelo nosso Código Civil:
Art. 1196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.
Neste artigo, percebe-se que para que haja a caracterização da figura do possuidor, não se cogita a intenção de dono, nem se evidencia necessidade de poder sobre a coisa.
4. CLASSIFICAÇÃO DA POSSE
O instituto jurídico da posse apresenta-se no Código Civil de acordo com modalidades influenciadas pela relação possessória que se apresenta no mundo jurídico, concebidas, portanto, através de certas nuanças qualificadoras.[6]
Nesses termos, a posse pode ser classificada em:
4.1. Direta e indireta: com o escopo do aproveitamento econômico (elemento material da posse na teoria objetivista), há, certas vezes, a utilização da coisa por outrem que não o proprietário. Embora os poderes de domínio concentrem-se num único titular, via de regra, é plausível sua distribuição a outras pessoas, o que pressupõe relação jurídica.
Apesar de se inadmitir mais de uma posse sobre uma mesma coisa, há, quanto ao seu exercício, o desdobramento da relação possessória, o que permite afirmar que as posses direta e indireta coexistem; não colidem nem se excluem.[7]
Num contrato de usufruto, por exemplo, onde se percebe esse viés de exploração econômica de um bem, o usufrutuário tem a posse direta, enquanto o nu-proprietário, a indireta. A posse do usufrutuário, fundada no contrato para que a utilização econômica do bem, em nada afeta a posse do nu-proprietário.
4.2. Justa e injusta: diz-se que a posse é justa quando não tiver sido adquirida mediante força física ou violência moral (posse violenta), não tiver sido estabelecida às ocultas contra quem é praticado o apossamento (posse clandestina), ou, ainda, quando não tiver se originado do abuso de confiança por parte daquele que recebe a coisa com o dever de restituí-la (posse precária).
Será considerada injusta, contrariamente, quando apresentar algum desses vícios. É de se frisar que a violência e a clandestinidade apenas podem ser acusadas pela vítima, e que a posse produz efeitos normais em relação às outras pessoas. Assim, apesar de a posse ser injusta, pode o possuidor defender a coisa valendo-se dos interditos contra terceiros, mas nunca contra o verdadeiro possuidor.
A posse, inicialmente injusta, pode converter-se em justa, mediante a interferência de causa diversa, tal qual ocorre no caso de quem tomou por violência comprar do esbulhado, ou de quem possui clandestinamente herdar do desapossado.[8]
4.3. De boa-fé e de má-fé: em relação à subjetividade do adquirente, a posse pode ser classificada como de boa-fé ou de má-fé.
A primeira encontra-se presente no art. 1.201 do Código Civil pátrio:
Art. 1.201. É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa.
Parágrafo único. O possuidor com justo título tem por si a presunção de boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite esta presunção.
O possuidor de boa-fé, portanto, tem a convicção de que age em conformidade com as normas legais, realmente acreditando possuir a coisa. Sua posse passa a ser de má-fé, entretanto, a partir do momento em que toma ciência do vício ou obstáculo. Assim, a posse de má-fé é percebida quando há consciência da ilegitimidade do direito.
4.4. Ad interdicta e ad usucapionem: se diz que a posse é ad usucapionem quando o possuidor poderá adquirir a propriedade da coisa por meio de usucapião, ante o decurso do tempo e o preenchimento dos requisitos legais.
Com essas considerações, percebe-se que qualquer posse enseja algum tipo de proteção, independentemente de sua qualidade. Conforme visto, mesmo a posse injusta produz seus efeitos normais perante terceiros. Nesse sentido, além da posse injusta, também a de má-fé incluem-se no que se denomina como posse ad interdicta, que é aquela que poderá ser defendida contra terceiros por meio dos interditos possessórios, ou seja, ações judiciais que visam proteger a posse.
5. MODOS DE AQUISIÇÃO DA POSSE: ORIGINÁRIO E DERIVADO
Prescreve o art. 1.204 do Código Civil:
Art. 1.204. Adquire-se a posse desde o momento em que se torna possível o exercício, em nome próprio, de qualquer dos poderes inerentes à propriedade.
O Código estabelece que a posse se adquire no momento exato que a pessoa obtém o poder de ingerência sobre a coisa, excluindo a ação de terceiros. De maneira didática, os modos de adquirir a posse classificam-se em originários e derivados.
Segundo Caio Mário:
Os primeiros traduzem um estado de fato da pessoa, em relação à coisa, oriundo de assenhoramento autônomo, sem a participação de um ato de vontade de outro possuidor. Os segundos, derivados, pressupõem a existência de uma posse anterior, transmitida ou transferida ao adquirente, ou, noutros termos, incidem numa coisa que passa À sujeição de outra pessoa, por força de título jurídico. (PEREIRA, 2009, p. 35-6)
A aquisição originária ocorre independente de translação, visto que, em regra, é unilateral, ocorrendo apenas pela simples vontade do adquirente. São modos de aquisição originária a apreensão da coisa e o exercício de direito.
A apreensão do bem é a apropriação deste, por meio de ato unilateral, quando o possuidor passa a ter o poder de domínio sobre a coisa, desde que preenchidos certos requisitos, como, por exemplo, o de ser a coisa disponível. É unilateral, posto que recai sobre coisas destituídas de possuidor atual, abandonadas ou sem dono. Às vezes a apreensão exige mais que o mero contato físico, reclamando uma conduta a mais, como o próprio deslocamento da coisa, e outras vezes dispensa o contato externo.
O exercício do direito é a manifestação externa do direito que pode ser objeto na relação possessória. Por exemplo, quando alguém precisa atravessar um caminho em terreno alheio para chegar em sua propriedade, ante a inexistência de outro caminho alternativo, e o faz sem oposição do proprietário, exerce a posse de uma servidão de passagem, e, com o decurso do tempo terá adquirido esta posse e poderá, a partir de então, protegê-la mediante os interditos possessórios. É o que preceitua o Código Civil:
Art. 1.379. O exercício incontestado e contínuo de uma servidão aparente, por dez anos, nos termos do art. 1.242, autoriza o interessado a registrá-la em seu nome no Registro de Imóveis, valendo-lhe como título a sentença que julgar consumado a usucapião.
Parágrafo único. Se o possuidor não tiver título, o prazo de usucapião será de vinte anos.
Não obstante, há a aquisição derivada da posse quando presente um negócio jurídico, pelo que se aplicam os requisitos para a validação do negócio, previstos no art. 104 do CC. A posse é, nesta hipótese, transmitida pelo possuidor a outrem, e pode ocorrer pela tradição, constituto possessório, sucessão inter vivos e causa mortis.
5.1. MODALIDADES DE AQUISIÇÃO DERIVADA
5.1.1. Tradição
Modo mais frequente de aquisição da posse, pressupõe um acordo de vontades e, em momento subsequente, um negócio jurídico, que pode ser a título gratuito ou oneroso. Consiste basicamente na entrega física da coisa ao novo possuidor, mas, às vezes, inexiste necessidade de remoção e, noutras, o grande volume da coisa impede o seu deslocamento. Nesse sentido, fala-se em 4 espécies de tradição: real, que envolve a entrega material e efetiva da coisa, de mão em mão; simbólica, quando o simbolismo do ato indica a intenção de transmitir a posse, mesmo não tendo havido a entrega material dos bens; traditio longa manu, que se refere à tradição de coisa posta à disposição do adquirente, por ser impossível a entrega manual; traditio brevi manu, quando, pelo fato de alguém já se encontrar com a posse direta em razão de vínculo jurídico, não ser necessário devolver-se a coisa ao dono para que este novamente lhe faça a entrega.
5.1.2. Sucessão
Pode a posse ser adquirida por meio da sucessão, que se dá inter vivos ou mortis causa:
A transmissão da posse mortis causa pode ocorrer por sucessão universal ou a título singular, sendo aquela presente quando o herdeiro sucede a totalidade da herança ou fração dela - o que se dá através de sucessão legítima ou testamentária - e esta outra quando o testador deixa ao beneficiário um bem certo e determinado, denominado como "legado".
Pelo art. 1.207 do CC, o sucessor universal continua de direito a posse do seu antecessor, enquanto que ao singular é facultada a junção da sua posse à do antecessor.
Ficando o herdeiro a título universal no lugar do falecido, dá prosseguimento à posse daquele, com os mesmos vícios e as mesmas qualidades, ante o efeito direto da transmissão hereditária.
A sucessão legítima ocorre sempre a título universal, transmitindo aos herdeiros a totalidade ou fração ideal do patrimônio do falecido. Já no caso da sucessão testamentária, existe a possibilidade de ocorrer a título universal ou singular.
Já a sucessão inter vivos ocorre unicamente a título singular, que é o que acontece na compra e venda (como também na doação e dação em pagamento,) quando ao adquirente faculta-se unir à sua posse a do antecessor. Caso opte por uni-la, sua posse permanecerá com os vícios anteriores; se preferir desligar sua posse da do antecessor, os vícios serão extintos.
5.1.3. Constituto possessório
Trata-se da operação jurídica que altera a titularidade da posse, onde o alienante conserva a coisa em seu poder, mas passa à qualidade de possuidor em nome alheio, por força de cláusula do contrato de alienação.
6. PERDA DA POSSE
Resumidamente, perde-se a posse das coisas:
a) Pelo abandono, quando o possuidor renuncia a posse, de maneira voluntária, largando o bem. Para que se conclua pelo abandono, são necessários dois requisitos: o não uso da coisa e o ânimo de renunciar ao direito.
b) Pela tradição, quando há a intenção definitiva de transferir a coisa a outrem, tal qual na venda de um bem.
c) Pela perda da coisa, ocorrendo na hipótese de ser impossível o exercício do poder físico sobre o bem, ante o seu desaparecimento.
d) Pela destruição da coisa, pois perecendo o objeto, extingue-se o direito. Pode se dar mediante o desaparecimento de sua substância (incêndio da casa) ou quando perdidas as qualidades essenciais à sua utilização (servidão de passagem em trecho de praia submersa permanentemente).
7. EFEITOS DA POSSE
A posse possui efeitos próprios, atribuídos pelos doutrinadores, que a distinguem da detenção. Como já aduzido, assim como acerca da definição e da origem da posse, existem grandes divergências doutrinárias quanto aos efeitos que a posse pode produzir, havendo quem lhe atribua setenta e dois diferentes (Tapia), como quem lhe negue qualquer efeito (Sintenis). No entanto, identificam-se no Código Civil os seguintes: [9]
7.1.1. Percepção dos frutos
Enquanto persistir a boa-fé do possuidor, assistir-lhe-á a faculdade de perceber os frutos da coisa possuída, sendo exceção ao princípio segundo o qual ao proprietário pertencem os frutos da coisa.
7.1.2. Responsabilidade pela perda e deteriorização da coisa
Ao possuidor é atribuída a responsabilidade pela deterioração e perda da coisa, excetuando-se o caso do possuidor de boa-fé que à perda ou à deterioração não tenha dado causa que, quando condenado à restituição, devolverá a coisa no estado em que ela se encontrar.
7.1.3. Indenização pelas benfeitorias e direito de retenção
O possuidor tem direito a ser indenizado pelo valor das benfeitorias necessárias e das úteis (desde que, no caso destas últimas, tenha havido autorização) e a reter a coisa até que tal indenização ocorra, sendo-lhe permitido a oposição à devolução até haver o pagamento.
7.1.3. Usucapião
É modo de aquisição - pela posse prolongada e qualificada pela boa-fé - da propriedade. Por depender de requisitos como o decurso de tempo, pacificidade, animus domini e boa-fé, alguns autores afirmam não ser efeito da posse. Entretanto, como a posse é essencial para sua configuração, isto é, requisito para o usucapião, diz-se que este é um efeito seu.
7.2. Proteção possessória: autodefesa e interditos possessório.
A proteção conferida ao possuidor, sem dúvidas, é o principal efeito da posse, podendo ocorrer através da legítima defesa e desforço imediato, quando o possuidor MANTEM ou RESTABELECE a posse pelos seus próprios recursos (autodefesa), ou através das ações possessórias, meios defensivos para repelir a agressão assegurados pela lei.
7.2.1. Autodefesa
Prevê o artigo 1.210 do Código Civil:
Art. 1.210. O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado.
§ 1o O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse.
§ 2o Não obsta à manutenção ou reintegração na posse a alegação de propriedade, ou de outro direito sobre a coisa.
Estando o possuidor sob o domínio da coisa e havendo a turbação, pode, fora de ação judicial ou antes dela, repelir o atentado à posse pela defesa direta, agindo em legítima defesa . No caso de esbulho, tendo ocorrido a perda da posse (o ato encontra-se, portanto, consumado), vale-se o possuidor do desforço imediato.
Para que se considere a defesa como legítima, a reação deve ocorrer de maneira imediata após a agressão e deve ser limitada àquilo que for indispensável para a retomada da posse.
7.2.2. Ações possessórias
a) Manutenção de posse
Ação válida na hipótese de o possuidor sofrer embaraço no exercício de sua condição, não tendo havido a perda, quando se postula a expedição de mandado de manutenção, devendo haver a comprovação da existência da posse e, naturalmente, da moléstia. Quanto à moléstia, entende-se que pode ser ''de fato'', quando a turbação consistir em via de fato, e ''de direito'', quando tiver sido realizada por via judicial ou administrativa. Importante atentar para o fato de que a sentença nesta modalidade de ação deverá restituir ao stato quo ante, o que pode incluir, além da cessação da moléstia, a demolição de obras realizadas pelo turbador.
b) Reintegração de posse
Destinada àquele que foi desapossado da coisa, para que, como o próprio nome já diz, seja reintegrado na posse. Para tal modalidade de ação requisita-se a existência da posse e seu titular e o esbulho, que priva o possuidor da coisa ou do direito arbitrariamente. Neste ponto, ressalte-se que não se considera esbulho a privação da coisa por justa causa. Prolatada a sentença, deverá condenar à restituição da coisa ao esbulhado ou, caso ela não mais exista, ao pagamento do seu respectivo valor.
Tanto na manutenção quanto na reintegração de posse, não é concebível acolher a alegação de domínio pelo réu, turbador ou esbulhador, porque não é cabível, ante tal alegação de propriedade, molestar posse alheia.
c) Interdito proibitório
Na esteira do entendimento de Cario Mário, interdito proibitório é a defesa preventiva da posse, em face da ameaça de turbação ou esbulho, postulando-se mandado judicial para resguardar o possuidor da moléstia iminente, cominando ao réu o pagamento de multa pecuniária, em favor do autor ou de terceiro. Para tal, é necessário haver a comprovação da posse, da ameaça da moléstia e da probabilidade de que esta venha a ocorrer, não sendo necessário ao possuidor aguardar a concretização da turbação ou do esbulho.
d) Ação de dano infecto
Assim como o interdito proibitório, é medida preventiva que se aplica quando o possuidor tiver fundado receio de que ruínas em prédios ou vícios em construções poderão causar-lhe prejuízo. Através dessa modalidade de ação, pode-se obter sentença que condene o réu ao depósito de caução para assegurar o possuidor contra dano futuro.
e) Imissão de posse
Diferentemente das ações supra mencionadas, a ação de imissão de posse não tem o condão de proteger a posse, que o autor não tem, mas de adquiri-la. Busca-se, na verdade, proteger quem, embora não tenha a posse, tem direito a ela, sendo utilizada, por exemplo, para haver a posse de bens adquiridos contra o próprio alienante que os conserve, sem fundamento em título jurídico.
A propositura de uma ação possessória em vez de outra não obstará a que o juiz conheça do pedido e outorgue a proteção legal correspondente àquela, cujos requisitos estejam provados.
8. USUCAPIÃO
O usucapião corresponde à aquisição da propriedade e de outros direitos reais, tais como usufruto, uso, habitação e servidões prediais, pelo decurso do tempo, unido à ação humana, observados os requisitos instituídos em lei. A posse, juntamente com o tempo são, portanto, requisitos básicos para a sua concretização.
Modernamente, os juristas perfilam-se, quanto ao fundamento do usucapião, nas teorias subjetivas, que remetem à renúncia presumida pelo dono e à necessidade de se atribuir certeza ao direito de propriedade, e nas teorias objetivas, que levam em consideração a segurança social aliada ao aproveitamento econômico do bem usucapido.
O não-uso, a falta de aproveitamento e a inutilidade da coisa - que se reduz a mero componente patrimonial - ensejam análise objetiva do próprio fato, indicando absoluto contraste com a função social, que traz implícitos o uso e o proveito. Inclina-se, atualmente, ao prestígio de quem trabalha o bem usucapido, ante os pressupostos dos valores efetivos de utilidade social, que condena o proprietário inerte. [10]
O possuidor, que exerce a posse ad usucapionem, demonstra agir com base nos pressupostos da função social, o que justifica a aquisição de seu direito. É interessante notar que o atributo da função social, conferido pelo possuidor ao bem, antecede a propriedade, que o pressupõe. O possuidor confere à coisa possuída o atributo que lhe foi negado pelo proprietário, que teria o dever legal de concretizá-lo, pelo seu exercício.
Consumada a aquisição, pelo decurso do tempo legal exigido – observando-se as demais qualificações da posse –, o possuidor, que antes dava plenitude à função social pelo exercício efetivo e de fato, passa a ser obrigado a observá-la.
Primeiramente, faz-se míster atentar para o fato de que, o decurso de tempo, ao que remete a prescrição, muito embora determine a extinção de relações jurídicas, também autoriza a aquisição de direitos. Daí se subdivide, segundo a dualidade proposta por Clóvis Bevilaqua, a prescrição em extintiva e aquisitiva - que remetem, respectivamente, a uma energia extintiva e a uma energia criadora -, correspondendo esta última ao usucapião.
Para alguns doutrinadores, dentre os quais se encontra Maria Helena Diniz, a usucapião é, concomitantemente, uma energia extintiva e criadora, pois corresponde à perda da propriedade por parte daquele que dela se desobriga pelo decurso do tempo, mas, simultaneamente, à apropriação da coisa pela posse prolongada. [11]
Na linha de entendimento de Carlos Roberto Gonçalves, a prescrição aquisitiva remonta aos romanos, os quais, embora considerassem que a propriedade era perpétua, entendiam que a inércia do proprietário perante um bem consistia numa renúncia tácita ao direito de propriedade.
Não é pacífico na doutrina quanto a ser a usucapião modo originário ou derivado de se adquirir a propriedade, havendo, ainda, aqueles que, como De Ruggiero, propõem o enquadramento da usucapião numa classe intermediária entre ambas.[12] Os que defendem ser um modo derivado, como Cario Mário, concluem que, a circunstância de ser a aquisição por usucapião relacionada com outra pessoa que era proprietária daquela coisa específica, que perdeu a titularidade dominial em proveito do adquirente, é clara para perfilar a usucapião como tal modo de aquisição, ainda que lhe seja ausente a transmissão voluntária, sendo a aquisição originária reservada àquelas coisas que jamais estiveram sob o senhorio de outrem. Maria Helena Diniz, ao contrário, pontua que o fato de uma propriedade desaparecer e outra surgir não significa que tal propriedade foi transmitida, entendendo pela aquisição como modo derivado, uma vez que a nova relação jurídica formada em favor do adquirente não deriva de nenhuma relação face ao antecessor. [13]
8.1.Espécies
Ante a existência de outros fatores específicos que vão além da posse e do decurso do tempo, sobressaem três espécies de usucapião: o extraordinário, o ordinário e o especial, este último dividido em rural e urbano, este último baseado na Lei n.º 10.257/2001 (Estatuto da Cidade).
a) Usucapião extraordinário
O usucapião extraordinário é definido pelo art. 1.238 do Código Civil, que preconiza:
Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.
Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.
Nesse sentido, consideram-se como requisitos para tal espécie de usucapião: a) a posse pacífica e ininterrupta, exercida com animus domini; b) o decurso do prazo de 15 anos, ou de 10 anos, caso o possuidor tenha estabelecido sua morada habitual no imóvel, ou nele efetuou obras ou serviços de caráter produtivo, aumentando sua utilidade; c) dispensa de justo título e boa-fé; d) sentença judicial declaratória de aquisição do domínio por usucapião, que constituirá o título a ser registrado em cartório.
Basta, portanto, para adquirir o imóvel por usucapião extraordinário, que o possuidor aja tal qual o proprietário e que a posse seja tranquila e pacífica por 15 anos. Presentes justo título e constatada a boa-fé, servirão estes apenas como uma prova complementar.
b) Usucapião ordinário
Art. 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos.
Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico.
Tal forma de usucapião apresenta os seguintes pressupostos: a) posse mansa, pacífica e ininterrupta, exercida, também, com a intenção de dono; b) decurso do tempo de dez ou cinco anos, neste último caso, se o bem houver sido adquirido onerosamente e cujo registro foi cancelado, desde que o possuidor nele tenha sua morada ou nele tenha realizado investimentos de interesse social ou econômico; c) justo título, idôneo, formalizado e devidamente registrado e existência de boa-fé; d) sentença judicial que declare a aquisição do domínio ao adquirente.
c) Usucapião especial
Também chamada de usucapião constitucional, pelo fato de ter sido introduzida pela Constituição, tal espécie subdivide-se em duas: usucapião especial rural, denominada de ''pro labore'', dada a necessidade do estabelecimento do trabalho, e usucapião especial urbano, denominado de ''pró-moradia'', sendo fundamental a utilização do imóvel para fins de moradia.
c.1) Rural
Art. 1.239. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como sua, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra em zona rural não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.
No usucapião especial, portanto, além dos requisitos comuns ao usucapião, faz-se necessária a fixação do homem no campo, exigindo-se a ocupação produtiva do imóvel, o que significa dizer que o possuidor deve morar e trabalhar no imóvel. Ocorrerá apenas se o usucapiente não for proprietário de outro imóvel, seja ele urbano ou rural.
c.2) Urbana
Proposta para atender às reivindicações em prol de uma política urbana, ante o fato de que o solo urbano não deve ficar sem o devido aproveitamento econômico, de maneira a reconhecer a possibilidade de aquisição do domínio, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 183, §§ 1º a 3º, e o Código Civil, no art. 1.240, contemplaram a chamada usucapião especial de imóvel urbano. Preconiza referido artigo do Código Civil:
Art. 1.240. Aquele que possuir, como sua, área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1o O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
§ 2o O direito previsto no parágrafo antecedente não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
Esta espécie de usucapião não se aplica à posse de terreno sem construção, pois é requisito para sua implementação a moradia do possuidor. A lei, aqui, também dispensa o justo título e a boa-fé.
Tem legitimidade para propor a ação de usucapião o possuidor, como pessoa física, desde que utilize o imóvel como moradia, sua ou/e de sua família. O brasileiro nato e naturalizado tem legimitidade para usucapir, bem como estrangeiro, desde que residente no país.
A lei fixou em 250m² a extensão máxima do imóvel para ser adquirido por essa modalidade de usucapião, por ter o legislador entendido como um tamanho suficiente para a moradia do possuidor e de sua família numa área urbana. Tal metragem abrange a área do terreno e a da construção. No caso de tratar-se de apartamento, segundo preconiza Carlos Roberto Gonçalves, leva-se em conta apenas a área da unidade autônoma.
9. A POSSE NO ESTEIO DA AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE
De antemão, em sendo a posse a exteriorização da propriedade, faz-se míster, neste presente tópico, lançar-se mão de concepções acerca desta, no intuito de esclarecer as influências que as concepções sobre esta remeteram ao regramento e evolução do instituto da posse.
9.1. Evolução história acerca das acepções sobre propriedade: do caráter absoluto à função social
Ao longo de sua evolução histórica, o direito de propriedade sofreu grandes modificações, sofrendo influencias que ora remontam ao Direito Romano, ora ao legado produzido no período medieval e ora às construções da Era Moderna (em maior parte aos ideais iluministas), chegando-se ao direito contemporâneo onde, agora, se pode observar um grande incentivo tendente à justiça social e função social da propriedade.
Com a revolução francesa, atrelada aos interesses burgueses, a propriedade marcou-se pela concepção individualista, passando a ter papel central no contexto social e político da época moderna. Tal concepção fomentava o aspecto liberal proposto pela Revolução, baseadas nos ideais iluministas, que, em determinados aspectos, em muito prescindia dos interesses coletivos.
Nessa conjuntura revolucionária, surge o Código Napoleônico, também conhecido como ‘Código da Propriedade’, que basicamente reiterou a concepção individualista da propriedade, assentando-a como centro do ordenamento jurídico, linha que foi seguida pela grande maioria dos Códigos do Séc. XIX.
Se na Idade Moderna predominou o viés individualista da propriedade, com as doutrinas sociais que fomentaram os movimentos sindicais e a luta de classes, posteriormente às revoluções industriais, surge a necessidade de a propriedade atender não mais apenas aos interesses do proprietário, mas, sobretudo, os interesses da coletividade. Por essa ótica, passa-se a levar em conta os aspectos ambientais, geradores de renda e, principalmente, de utilização econômica, que culminam na possibilidade de o direito de propriedade não ser protegido pelo Estado quando o proprietário descumprir a função social da propriedade.
No Brasil, com a promulgação da Constituição Federal em 1988, a propriedade deixa de ser considerada como uma instituição tipicamente privada, ante o interesse público do Estado de, então, encontrar-se legitimado para controlar o exercício da propriedade frente a sua função social.
Em sendo a posse concebida, de acordo com Daibert, como a visibilidade ou desmembramento da propriedade, torna-se mais fácil visualizar a função social neste instituto que no da propriedade em si. Talvez por essa constatação é que o Código Civil de 2002 alterou o antigo conceito de posse do Código de 16, pondo-o em consonância com os fins da propriedade. [14]
Embora tenha a Carta Magna estabelecido o direito de propriedade no artigo 5º, XXII, não preconizou, contudo, nada semelhante em relação ao instituto da posse. Nesse sentido, o embasamento da posse, em um sentido constitucional, ficará atrelado ao cumprimento da função social sobre o imóvel, segundo Zavascki, tendo a CF/88 estabelecido duas formas de tutela da posse em face do proprietário, que correspondem às modalidades especiais de usucapião.[15]
9.2. As irregularidades da posse no Brasil: a legitimação da posse e o desenvolvimento da função social da propriedade urbana.
De início, é sabido que, de acordo com o Código Civil pátrio, de viés patrimonialista, não existe a possibilidade de registro de posse, mas tão apenas de propriedade, reservando-se àquela, entretanto, a possibilidade de sua averbação.
As críticas a essa legislação são inúmeras, principalmente quando se leva em consideração que, nas capitais e nas regiões metropolitanas brasileiras, cerca de 2/3 dos imóveis são ocupados sob o regime de posse, e não de propriedade. Esse dado revela que, mesmo nos dias atuais, a propriedade privada ainda é algo restrito a uma parcela minoritária da população.
Discute-se que tal problema remonta ao fluxo migratório, ocorrido a partir de 1900, do campo para as cidades, que cresceram caoticamente, ao ponto de, devido à especulação imobiliária, habitar-se áreas irregulares muitas vezes de risco. Sendo a propriedade privada um luxo restrito às classes mais abastadas, à população de baixa renda restou ocupar irregularmente tais áreas, carecedoras de infra-estrutura e serviços básicos, como saneamento.
Ante tal conjuntura vivenciada no país, o Poder Público vem estimulando, através de políticas públicas, a regularização da posse em assentamentos irregulares, por meio de programas tais como "minha casa, minha vida", preconizado pela Lei n.º 11.977/09.
Nesse intuito, a Lei n.º 11.977/09 traz instrumentos céleres para regularização das ocupações irregulares, mediante alguns novos institutos e releituras de outros já existentes no ordenamento, tal qual a legitimação da posse, que corresponde, segundo o art. 47, IV, da Lei n.º 11.977/09:
Art. 47
IV – legitimação de posse: ato do poder público destinado a conferir título de reconhecimento de posse de imóvel objeto de demarcação urbanística, com a identificação do ocupante e do tempo e natureza da posse;
Da leitura dessa Lei, conclui-se que, a regularização fundiária das ocupações irregulares pode se dar mediante interesse específico ou social, este último nos casos: a) em que a área esteja ocupada, de forma mansa e pacífica, há, pelo menos, 5 (cinco) anos; b) de imóveis situados em ZEIS; ou c) de áreas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios declaradas de interesse para implantação de projetos de regularização fundiária de interesse social;
Seguindo-se o conjunto de medidas previstas pela lei, regulariza-se assentamentos irregulares e a titulação de seus ocupantes através do registro da legitimação da posse, pelo que se garante o direito social à moradia e o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana, previstas constitucionalmente.
Desta feita, passadas todas as fases elencadas pela Lei e colacionando todos os documentos exigidos por ela, requerer-se-á ao Oficial do Registro Imobiliário a conversão do registro de legitimação de posse em registro de propriedade, tendo em vista sua aquisição por usucapião extrajudicial, nos termos do art. 183 da Constituição Federal.
10 CONCLUSÃO
Após a análise exposta no presente trabalho, mostrou-se extremamente pertinente o avanço em relação às normas positivadas pelo presente Código Civil para a possibilidade do registro da posse.
Como ressaltado, considerando-se a sistemática das grandes cidades brasileiras, é certo afirmar que a posse, na maior parte das vezes irregular, encontra-se difundida como instrumento basilar a assegurar o que se entende por moradia, especialmente entre camadas mais pobres da sociedade. Faz-se necessário conferir legitimidade jurídica, a fim de regularizar as inúmeras situações de vulnerabilidade habitacionais, de forma a concretizar os objetivos fundamentais da República e assegurar os seus fundamentos.
Tais inovações, sem dúvida, representam um significativo avanço jurídico para a regularização de uma realidade tão comum e, por tanto tempo, negligenciada no Brasil.
11. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COELHO, Fábio Ulhoa. Dos elementos da posse no direito comparado in Revista Jurídica Justitia. V. 46. N. 126, jul/set 1984.
DAIBERT, Jefferson. Direito das coisas. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978.
DE RUGGIERO. Istituzioni di diritto civile. V. 1.6 ed. Milano: Guiseppe Principato. 1947.
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. V. 4. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Vol. 5. 6. Ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil. v. 6. 2 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos.
MARTINS-COSTA, Judith (Org.). A reconstrução do direito privado: reflexos dos princípios, diretrizes e direitos fundamentais constitucionais no direito privado. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2002.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 20ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
Savigny. Traité de la possession en droit romain, 7. Ed. Paris: A. Durand, 1866.
[1] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 20ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. P. 13
[2] Sobre a origem da posse vide: Savigny, Traité de La possession em droit romain, 7. Ed., p. 178.
[3] COELHO, Fábio Ulhoa. Dos elementos da posse no direito comparado. Revista Jurídica Justitia. V. 46. N. 126, p. 77, jul/set 1984.
[4] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Ob cit, p. 15.
[5] COELHO, Fábio Ulhoa. Op. Cit., p. 88.
[6] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. Cit., p. 22.
[7] DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. V. 4. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2012. P. 69.
[8] PEREIRA, Caio Mário. Op. Cit., p. 23.
[9] PEREIRA. Caio Mário. Op. Cit., p. 49.
[10] LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil. v. 6. 2 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, n. 355.
[11] DINIZ, Maria Helena. Op. Cit. P. 172; LOPES, Miguel Maria de. Op. Cit. p. 537-43.
[12] DE RUGGIERO. Istituzioni di diritto civile. V. 1.6 ed. Milano: Messina, §78, p. 455.
[13] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. Cit. P. 118-9; DINIZ, Maria Helena. Op. Cit. P. 172-4.
[14] DAIBERT, Jefferson. Direito das coisas. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 50.
[15] ZAVASCKI, Teori Albino. A tutela da posse na constituição e no projeto do novo código civil. In: MARTINS-COSTA, Judith (Org.). A reconstrução do direito privado: reflexos dos princípios, diretrizes e direitos fundamentais constitucionais no direito privado. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2002. P. 847.
Advogado, especialista em Direito Público com pós-graduação pela Universidade Anhaguera.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUTO, Rafael José Farias. A evolução da concepção jurídica sobre a posse: A legitimação da posse, as ocupações irregulares e a função social da propriedade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 fev 2017, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/49300/a-evolucao-da-concepcao-juridica-sobre-a-posse-a-legitimacao-da-posse-as-ocupacoes-irregulares-e-a-funcao-social-da-propriedade. Acesso em: 23 dez 2024.
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