RESUMO: Este trabalho tem como objetivo discorrer acerca das relações entre democracia e os movimentos populares no Brasil, com destaque à evolução das mobilizações ao longo da história, seus ápices de mobilização e seus eventuais silêncios históricos. Objetiva-se ainda, através de uma observação da evolução cronológica dessas mobilizações, indicar as noções de democracia manejadas pelos movimentos populares como alvos a serem atingidos, bem como a reação estatal durante essas manifestações. Serão estudados os atuais desafios dos movimentos populares no Brasil e, por fim, como os resultados dessas lutas e conquistas, somados ao novo contexto social vigente, e mesmo diante de novidades para ao auxílio do debate político política, tais como ferramentas tecnológicas, transformaram estes movimentos e a discussão pela democracia.
1. NOÇÕES INTRODUTÓRIAS
“O uivo é a presença do cidadão na vida da sociedade, na vida do país, fora dessa rotina cinzenta em que, mais ou menos, estamos. Quando eu digo ‘uivemos’, estou a pretender dizer ‘digamos, reclamemos, protestemos’”.
(José Saramago)
A democracia pode ser vista como um projeto político produto da força e dos valores próprios da natureza do animal cívico que é o homem (BARZOTTO, 2003).
As raízes etimológicas da palavra “democracia” conservam uma história genealógica de seu vínculo humano e resvalam no liame profundo com a noção de povo: demos, em grego, é capaz de significar tanto “o povo”, em seu aspecto mais amplo no sentido de totalidade de indivíduos, quanto no seu aspecto mais específico, restrito às classes mais populares (FINLEY, 1988) – uma ambivalência que converge, tanto a um quanto a outro significado, para a amálgama entre democracia e sociedade.
A democracia, portanto, é inerente de um esforço popular devotado a mais ampla participação do corpo de cidadãos à constituição do poder que os rege, “isto é, a capacidade de dar leis a si próprio” (BOBBIO, 2000, 26).
No Brasil, entretanto, o encontro entre democracia e povo tardou a ocorrer. Foi a partir da proclamação da República que surgiu ao povo brasileiro a oportunidade de saborear algumas nuances “primárias” acerca de alguns institutos democráticos, tal como o direito ao voto ao chefe do Poder Executivo.
Mas, mesmo nos primórdios da democracia brasileira, estes não foram períodos de paz.
Os encontros da democracia com o povo brasileiro ao longo da história se deram de forma conturbada e, por vezes, com curta duração (CARVALHO, 2002), sob o custo de embates ideológicos e sacrifícios, ora de projetos, ora de vidas.
A República da Espada, primeiro rascunho de uma sociedade democrática, já traz em seu nome as cores sombrias de um projeto malfadado à intolerância estatal em relação aos civis. Nos primeiros anos após a queda do regime imperial, a sociedade brasileira se viu regida pela batuta da espada dos militares, com métodos de disciplina os quais não se mostraram dispostos a ouvir reivindicações populares[1] (VERA, 2011).
O transcurso dos anos, infelizmente, não suavizou a trajetória política nacional, haja vista nesta época o uso do “constante recurso ao estado de sítio durante a República Velha” (PAIXÃO, 2011, p. 148).
Após um breve período de fôlego democrático em 1946, livre do recente “Estado Novo”, não demorou muito para que, em 1964, as sombras de um regime ditatorial permeassem a história brasileira com sofrimento e terror, até, finalmente, raiar as primeiras luzes de um Estado Democrático de Direito sob os auspícios da Carta Cidadã de 1988.
Nessa trajetória histórica, o povo brasileiro não permaneceu imberbe, secundarizado aos bastidores. Longes das posições de meros expectadores, movimentos populares foram registrados na História, sempre dispostos a lutar por suas reivindicações, mesmo quando isso implicasse no confronto direto com o governo. Do sanguinolento massacre de Anhatomirim, outros tantos se repetiram. Inesquecível, pois, a heroica oposição de Canudos; a luta contra a barbárie fascista tal como ilustrada por Olga Benário; os grupos resistentes à ditadura e, por fim, os “caras-pintadas” pós-Constituição de 1988.
Subitamente nessa jornada histórica, no meio do caminho havia uma pedra. Atualmente, emerge uma espécie de obstáculo sólido o suficiente para arrefecer as participações populares outrora constantes, tornando-se a pedra fundamental para o surgimento de uma estrutura de sociedade brasileira mais tímida e quase emudecida, mesmo diante de violações à democracia conquistada com sofreguidão.
Teria sido a conquista da democracia a causa desse silêncio popular que tem perdurado por anos? Mas teria sido a democracia mesmo consolidada? E se assim o for, limitar-se-á a participação popular a se movimentar somente em tempos de ameaça, resultando numa massa de reivindicações adormecida, tal como um cavaleiro messiânico à espera de proféticas eras apocalípticas que abalem os pilares do Estado Democrático do Brasil?
Essas são algumas das questões que este trabalho se propõe a examinar, cuja busca se inicia a partir do eco vindo da história daqueles que muito uivaram pela ascensão da democracia.
2. UMA SOCIEDADE DE FILHOS QUE NÃO FOGEM À LUTA NEM TEMEM A PRÓPRIA MORTE
2.1 Movimentos populares “por essência”
Embora grandes conquistas políticas e legais do ordenamento jurídico brasileiro tenham sido auferidas na disputa de classes da sociedade brasileira, através dos esforços do movimento operário, falar da temática dos movimentos populares revela uma dinâmica estrutural absolutamente distinta, sendo salutar destacar a fim de não confundi-los.
O movimento operário no Brasil, em sua jornada histórica de existência, possuiu como objetivo bem definido as melhorias das condições laborais, com origens que remontam aos primeiros anos do século XX, “influenciado pelas ideias anarquistas trazidas pelos imigrantes europeus” (MIRANDA et al., 2009, p. 181).
Por outro lado, a abordagem sobre movimentos populares não se restringe tampouco se origina a partir dos movimentos operários. Não se restringe a eles porque se situam tais movimentos além da luta de classe (DAHRENDORF, 1992), primando por uma reivindicação que se consagra multidimensional ao pautar questões de justiça social, cidadania, igualdade e, entre outras tantas, a democracia. Também não se origina deles porque sua existência reivindicatória é anterior ao movimento de classe, sendo possível verificar as raízes do movimento popular brasileiro já no período colonial.
“Desde os tempos do Brasil Colônia, a sociedade brasileira é pontilhada de lutas e movimentos sociais contra a dominação, a exploração econômica e, mais recentemente, contra a exclusão social. A memória histórica registra lutas de índios, negros, brancos e mestiços pobres que viviam nos vilarejos, e brancos pertencentes às camadas médias influenciados pela ideologia libertária, contra a opressão dos colonizadores europeus” (GOHN, 2000, p. 15).
Por esta razão, a edificação dos movimentos populares no Brasil se dá em virtude do autorreconhecimento de sujeitos cujas demandas “não se encaixavam na figuração tradicional e paradigmática da classe operária” (TELLES, 1987, 66). Eram movimentos constituídos de operários sim, mas não apenas deles. Os problemas da vida do individuo passaram a ser percebidos fora da esfera de seu local de trabalho - local onde, de fato, passavam maior parte da rotina –, alcançando outros espaços de vivência. O operário, então, passa a se reconhecer como eleitor, filho, aposentado, pai, mulher, cidadão. E essa diversidade consistiu na representatividade popular do movimento (TELLES, 1987).
Assim, os integrantes dos movimentos populares eram indivíduos para quem a luta de classes era mais um ponto de opressão dentre vários outros que formavam uma muralha densa, limitadora dos direitos básicos e obstativa à fruição da condição de cidadão ou do gozo de uma vida inclusiva, livre, igualitária, enfim, digna.
2.2 Percalços democráticos: um bosquejo histórico pela participação popular eleitoral
No Brasil, os movimentos populares, inicialmente, deram-se de forma esparsa pelo território nacional, com focos específicos de acordo com cada movimento, em virtude das necessidades locais da população que os constituía. Como ressalta NAVES, “os movimentos populares se caracterizaram por um alcance limitado a questões localizadas na vida prática da comunidade” (2003, p. 568). Desta maneira, tornam-se ideologicamente distantes os movimentos populares brasileiros como a Inconfidência Mineira (1789), a Cabanagem (Pará, 1835) e Canudos (Bahia, 1897).
A preocupação com alterações de natureza política foi pauta de alguns movimentos populares, mas o tema ganhou uma proporção mais homogênea entre diversos grupos quando outros pontos de discussão foram cedendo espaços em virtude das conquistas obtidas (CARVALHO, 2002). Desta forma, ilustrativamente falando, parcela dos membros de movimentos abolicionistas, após a abolição da escravatura, somaram-se às fileiras da luta pela participação popular na política, uma vez que seus objetivos anteriores de luta haviam sido satisfeitos.
De modo peculiar e ao avesso das demais pautas populares, a discussão em torno da democracia não foi fraquejando após seus respectivos paulatinos avanços. É possível que o clamor popular pelo exercício da democracia, em virtude da complexidade do tema, não tenha se satisfeito mesmo mediante pontuais alterações legais.
Percorrendo a história, a oportunidade do voto no Brasil, por exemplo, iniciou com as eleições municipais das Câmaras, órgãos inferiores da administração de um país dividido em capitanias e que exprimiam, essencialmente, os interesses das elites locais (CANÊDO, 2003). Tanto assim que o processo eleitoral, como conta Letícia Bicalho Canêdo (2003, p. 521) “era reduzido aos ‘homens bons’, vocábulo que qualificava os ‘indivíduos mais respeitáveis das classes nobres e privilegiadas’”, restando excluída toda a massa popular pluriforme que consistia a sociedade.
No Brasil Imperial, a participação popular foi mais diversificada, abrangendo os brasileiros naturais e naturalizados com mais de 25 (vinte e cinco anos), oficiais militares com mais de 21 (vinte e um) anos, bacharéis e padres sem limite de idade. Ainda havia aos eleitores as exigências de gênero masculino, etnia branca e renda mínima anual (CANÊDO, idem).
Com a promulgação da República, uma das maiores conquistas da democracia brasileira foi o direito ao voto feminino, com uma campanha muito expressiva na década de 1920, graças a um “grupo de mulheres de mentalidade mais avançada, que tiveram oportunidade de viajar e de conhecer outras realidades” (CORRÊA, 2012, p. 72).
Manifestações em favor desse direito político feminino remontam muito antes da primeira Constituição Republicana, conquanto esse sonho tenha sido soterrado pela mens legislatoris da época, ainda em descompasso com os anseios dos movimentos feministas, calcado em ideias de caráter sexista, o qual relegava às mulheres o papel de objeto de satisfação masculina[2]. Apenas quando o “direito de escolher os próprios governantes mobilizou mulheres de todo o mundo durante grande parte da metade do século XX” (CORRÊA, 2012, p. 72), os movimentos femininos no Brasil ganharam uma nova força.
Com o final da denominada República Velha, muitos movimentos populares em busca da maior abrangência da participação civil no processo eleitoral tiveram seus pleitos atendidos, somando-se à vitória conquistas como o voto secreto e a “implantação de partidos políticos nacionais” (CANÊDO, 2003, p. 537). Parecia o fim da luta popular pela democracia.
Teria assim a democracia brasileira se consolidado?
2.3 A luta pela democracia em sua forma mais ampla
Até agora se bordejou na história da democracia brasileira revelando a evolução da inserção popular no processo de eleição de seus representantes, avanço que corroborou para a solidificação da democracia representativa no cenário nacional.
Engana-se quem vê aí os limites da participação do povo. A democracia vai além do voto (SARTORI, 2009). Ela abrange uma auscultação popular permanente, processo complexo e perene, o qual não pode ficar à mercê da espera de ciclos anuais eleitoreiros, devendo pairar ininterruptamente sobre todos os atos e políticas públicas (SARTORI, 2009).
A democracia no Brasil, mesmo nos períodos de governos da primeira metade do século XX, calcados numa constituição permissiva de uma diversidade fenotípica do eleitorado, foi assombrada por práticas autoritárias de perseguição a opositores políticos, censura da imprensa e desrespeito às prerrogativas constitucionais parlamentares (PAIXÃO, 2011).
Portanto, a violação à democracia não reinou apenas nas eras restritivas ao exercício do voto, lembrando Cristiano Paixão, por exemplo, que “não cabe qualificar como “democráticos” os anos 1930-1937, para eventualmente diferenciá-los do “autoritarismo” de 1937-1945. Em toda a extensão de tempo, predominaram práticas autoritárias” (2011, p. 151).
Apesar disso, a falsa noção reinante era a de que a democracia consistia na faculdade do voto, pensamento que permeou tranquilamente na primeira metade do século XX, mantendo tranquilos os movimentos populares que haviam conseguido a positivação do direito de votar aos que, até então, estiveram secularmente excluídos do processo eleitoral.
Mas era a calmaria antes da tempestade.
Em 1964, a sociedade brasileira sofreu seu memorável golpe ao sistema democrático. Vale destacar, o que pode parecer curiosa contradição, que “entre 1966 a 1982, a participação do eleitorado cresceu 163%” (CANÊDO, 2003, p. 540). Tal aumento se deu principalmente resultante no estabelecimento de multa de até três salários mínimos aos que não votassem ou não se alistassem, além da exigência de prova do ato de voto para fins de empréstimo e inscrição em concursos públicos (CANÊDO, 2003, p. 540).
O crescimento do eleitorado e a insurgência de movimentos populares contrários ao regime político do período ditatorial traz à tona uma nova concepção da sociedade sobre democracia não mais como um “direito de eleger e ser eleito”, mas um direito de se expressar politicamente, exigir direitos e ser ouvido.
O direito de participação da sociedade ganha, aos olhos dos movimentos populares, contornos mais amplos, permitindo que o período ditatorial não fosse simplesmente visto sob a ótica cerceadora das eleições diretas. Viu-se que ali não se feria o cidadão apenas em seu direito ao voto. O cidadão era um “corpo matável” (AGAMBEN, 2002). Matavam-no por inteiro, ceifando-lhe suas liberdades civis para, no silêncio forçado da perseguição e tortura, sepultar uma história política de direitos recém-adquiridos e construídos com o esforço de lutas sociais, e, por fim, atirá-los ao cadafalso de um regime militar antidemocrático.
Daí que, na “maior campanha popular da história brasileira, considerando o número de pessoas mobilizadas nas ruas das capitais e das demais cidades” (CANÊDO, 2003, p. 541), a força das massas reivindicantes fez surgir um sujeito novo, um sujeito coletivo (CHAUÍ, 2005), com identidade agora não mais regional como dantes, mas nacional, fruto da autoconsciência como povo brasileiro.
Desta feita, a luta pela democracia desse movimento popular deixa de ser pelo voto, e passa a ser pela sua afirmação de soberania do poder como uma qualidade inerente ao povo, imbuída da concepção de democracia a qual só pode se realizar mediante a luta popular, a fim de que o povo se constitua “como um contra-poder social que determina, dirige, controla, limita e modifica a ação estatal e o poder dos governantes.” (CHAUÍ, 2005, p. 25).
E é com esse espírito combatente, em período de dura opressão, que o movimento popular descobre “a sociedade como lugar de política” (TELLES, 1987, p. 62); desvenda que o poder da soberania de uma nação pertence ao povo, do qual o Estado deve ser mero instrumento (GOHN, 2000) e o povo é o núcleo essencial do movimento popular em si, protagonista de sua história, filho de sua pátria, que não foge à luta.
Nessa onda de ideias, venceu a democracia com o fim da ditadura. Mas, para onde foram os heróis da luta popular?
2.4 O epílogo pós-ditadura dos movimentos populares
O movimento popular no Brasil, embora tendo vencido sua heroica batalha pela democracia em pleno regime político opressor, não perdurou para viver sua glória. A positivação dos direitos almejados foi um dos fatores determinantes que motivaram a dissipação da mobilização popular tão aguerridamente estruturada. Como relata Gonh, “muitos movimentos que tiveram muito vigor nos anos 70 e 80, quando clamavam por direitos, passaram a encontrar dificuldades para manter a mobilização após terem conquistado alguns daqueles direitos em lei [...]” (1997, p.234).
Isso ocorreu a partir do momento em que se visualizou que o direito da democracia tão buscado estava sendo garantido gradualmente através de diplomas normativos, o que apaziguou o ânimo popular e conferiu um grau de confiança sobre a expectativa de um futuro de normalidade democrática na política. A Constituição de 1988, conhecida como Carta Cidadã, veio sedimentar esse entendimento.
Contudo, apenas pouco tempo depois, o surgimento de escândalos políticos envolvendo a corrupção presente nos setores da cúpula do novo governo republicano, somado à constatação da manutenção das desigualdades sociais sensivelmente sentidas desde o arrocho do “pseudomilagre econômico” durante a ditadura, fez com que os movimentos populares, num último fôlego, ainda fossem às ruas clamando por mudanças na recente conjuntura política republicana - mobilização a qual ficou conhecida como dos “caras-pintadas” (CARVALHO, 2000). Seguiu-se a isso uma sensação de desconforto dos movimentos populares. Como destaca Murilo de Carvalho (2000, p. 203):
“Houve frustração com os governantes posteriores à democratização. A partir do terceiro ano do governo Sarney, o desencanto começou a crescer, pois ficara claro que a democratização não resolveria automaticamente os problemas do dia-a-dia que mais afligiam o grosso da população. As velhas práticas políticas, incluindo a corrupção, estavam todas de volta. Os políticos, os partidos, o Legislativo voltaram a transmitir a imagem de incapazes, quando não de corruptos e voltados unicamente para seus próprios interesses.”
Após lutas travadas pela plenitude da democracia, a necessidade de reivindicar a saída de um Presidente da República em meio à sobrevivência de um contexto inalterável de violência, corrupção, falência da moralidade pública e miséria social, trouxe ares de desesperança ao futuro, razão pela qual aqueles que constituíram o movimento popular perderam “a crença de que a democracia política resolveria com rapidez os problemas da pobreza e da desigualdade” (CARVALHO, 2002, 219).
Uma década de silêncio dos movimentos populares se transcorreu até a atualidade, salvo pontuais movimentações locais. Não porque inexista o que se reivindicar, atualmente, sobre a democracia. A plena democracia, a qual envolve igualdade, justiça, cidadania e inclusão social com condições dignas de vida são elementos ainda carentes.
Porém, a decepção com os caminhos da nova República repercutiram com pesar sobre os uivos pela democracia.
3. ATUAIS DESAFIOS DOS MOVIMENTOS POPULARES NO BRASIL
3.1 O movimento popular como o vulcão adormecido na democracia contemporânea
Como visto até aqui, os movimentos populares no Brasil revelaram ao longo de sua história uma natureza volúvel, cuja mobilização se dá com maior frequência ou intensidade de acordo com as circunstâncias sociopolíticas do contexto de cada época. Segundo aduz Faleiros “se a conjuntura é favorável à mobilização popular e expansão das lutas, a estratégia pode ser mais ofensiva, se o momento se apresenta desfavorável é marcado por uma retração das forças populares” (1985, p. 82).
Importante destacar que a retração da mobilização popular não se faz por medo do poder governante, apesar dos sucessivos regimes brasileiros de repressão, e sim porque persiste a ideia de que a movimentação popular funcionaria como uma ferramenta de extrema intervenção na conjuntura política quando a situação se mostra insuportável à sociedade, “cessando de existir depois de solucionada a carência” (CHAUÍ, 2005, p. 30).
Por isso que, os movimentos populares ganham para o Estado a conotação de um termômetro do controle sobre a sociedade, tornando-se um objetivo político aplacar a sanha popular para não despertar o que Raymundo Faoro registra como sendo o “vulcão adormecido”.
“A política brasileira tem a perturbá-la, intimamente, secretamente, desde os dias longínquos da Independência, o sentimento de que o povo é uma espécie de vulcão adormecido. Todo perigo está em despertá-lo. Nossa política nunca aprendeu a pensar normalmente no povo, a aceitar a expressão da vontade popular como base da vida representativa”. (FAORO, 2008, p. 371)
Desde o movimento dos “caras-pintadas” se observa a contração da mobilização popular em prol da pauta da democracia, em que pese ainda perdurarem grandes carências à plenitude desse direito (CARVALHO, 2000). As razões que outrora levavam às manifestações das ruas, agora não se mostram mais suficientes ao dispêndio de forças do cidadão brasileiro, o qual, a exemplo de outras civilizações (BOBBIO, 1997), parece ter naturalizado as deficiências de sua sociedade.
Alguns fatores podem ser arrolados como fundamentais a essa retração da natureza contestadora do povo brasileiro.
3.2 O Direito Penal da violência “de cima”
Diante do abalroamento de direitos resultantes de leis restritivas e políticas públicas deficientes, o povo responde com lutas e ocupações do espaço público (CHAUÍ, 2005). À mobilização, o Estado responde com ferro e fogo. Yves Michaud denomina essa resposta estatal pautada na contenção popular e imposição da ordem pública mediante a violência como a “violência do poder ou violência de cima” (1989, p. 26).
Essa contenção estatal violenta tem formado o perfil do Estado brasileiro atual, onde os três poderes, cada um a seu modo, percorrem uma estratégia de promoção da ordem pública mediante o monopólio do poder da violência (CHAUÍ, 2005).
Enquanto o Poder Executivo despeja o arsenal de seu aparato policial na promoção da ordem, o Legislativo se apresenta como um criadouro de leis “inócuas, inúteis ou incompreensíveis, feitas para serem transgredidas e não para serem transformadas”; e o Judiciário, por sua vez, é “claramente percebido como distante, secreto, representante dos privilégios das oligarquias e não dos direitos da generalidade social”. (CHAUÍ, 2005, p. 26). Sobre os aspectos de repressão aos movimentos populares, Sauer (2008, p. 01) traça alguns pontos:
“Em linhas gerais, pode-se dizer que as estratégias de repressão adotadas (usadas de forma simultânea ou complementarmente) foram: a) isolamento político, não dando voz nem conferindo legitimidade às demandas, visando à desintegração e à desmobilização; b) cooptação, tanto de grupos de base como de lideranças importantes, concedendo pequenos privilégios, buscando o definhamento do movimento social, e, c) repressão pura e simples, especialmente com o uso de aparelhos policiais de Estado.”
Por seu turno, a legitimidade do uso da ordem de violência, infelizmente, tem encontrado guarida na legislação, produto da vontade democrática do poder soberano, contraditoriamente deturpada à serviço de uma política intolerante a movimentos populares.
Assim, a resposta estatal diante das prementes necessidades que o contexto popular conclama vem sendo dada na forma da lei criminal. Recorre o Estado, portanto, à sua instancia suprema de coerção, valendo destacar a preferência pela seara criminal das normas emanadas, em absoluto confronto com o princípio da ultima ratio do Direito Penal[3]. Exemplos disso consistem desde os recentes protestos veementes contra o Projeto de Lei n.º 2016/2015, conhecida como “Lei Antiterrorismo”, até a polêmica Lei n.º 7.170/83 – Lei de Segurança Nacional, cuja criminalização sobre movimentos populares é questionável (TANGERINO et al, 2012).
A primazia pela resposta legal diante dos apelos populares que tomam as ruas não é novidade para o Brasil. Como leciona Aury Lopes Júnior (2001), “legislar é fácil e a diarreia legislativa brasileira é prova inequívoca disso. Difícil é reconhecer o fracasso da política econômica, a ausência de programas sociais efetivos e o descaso com a educação”.
Deste modo, mais barata do que a criação de políticas sociais capazes de tornar completa a democracia de um Estado e mitigar suas desigualdades, a lei penal que pune o cidadão dos movimentos populares é, frequentemente, a primeira resposta do Estado brasileiro às reivindicações que assolam sua sociedade desde sua fundação.
A história do Direito Penal, enquanto ferramenta de fácil manejo pelo Estado, é uma crônica longa e triste que lança a inapagável jaça ao perfil político do legislador brasileiro como figura faminta pela pena; um representante do poder soberano que é carrasco implacável de seus súditos.
Mas, sobre quem incide a lei penal? A banalidade responderá que incide sobre a figura do “delinquente”, aquele que, sob a ótica de um Estado não convencido pelas reinvindicações populares, agrupa-se num coletivo que “invade as ruas” e “transgride a paz social”. Mas tal resposta não satisfaz a outra questão: e quem é este “delinquente” criminalizado nos movimentos populares? Raúl Zaffaroni e Nilo Batista remontam à história da figura do indivíduo sobre o qual se abate o Direito Penal:
“(...) a delinquência se restringe aos segmentos subalternos da sociedade, e este conceito acaba sendo assumido por equivocados pensamentos humanistas que afirmam serem a pobreza, a educação deficiente etc., as causas do delito, quando, na realidade, são estas, junto ao próprio sistema penal, fatores condicionantes dos ilícitos desses segmentos sociais, mas, sobretudo, de sua criminalização, ao lado da qual se espalha, impune, todo o imenso oceano de ilícitos dos outros segmentos, que os cometem com menor rudeza ou mesmo com refinamento”. (2003, p. 48).
A criminalização dos movimentos populares se torna uma ferramenta de dupla utilidade, pois além de reprimir as mobilizações, por via reflexa, encarrega-se de impingir às classes mais marginalizadas a conveniente contenção da lei penal. Como confirma Baratta (1999, p.80), “realmente, as classes subalternas são aquelas selecionadas negativamente pelos mecanismos de criminalização”.
E se a criminalização dos movimentos populares se faz sobre a seleção desses estereótipos, por outro lado, evidencia-se a conclusão de que as mobilizações do povo são formadas pela parcela da população menos abastada da prestação dos serviços e das políticas públicas, aqueles distantes dos muros do palácio do Estado e que estão longe de serem “os amigos do Rei”. São os segmentos das classes mais vulneráveis e hipossuficientes quem ocupam os espaços públicos, em luta pelos avanços da democracia (CHAUÍ, 2005).
Desta maneira, a criminalização dos movimentos populares revela uma preferência de sua incidência sobre aqueles destituídos de propriedade, reafirmando a relação entre criminalização de conduta e classe social na “vasta maioria de infrações pelas quais as pessoas da classe trabalhadora são presas e punidas” (TAYLOR et al, 1980, p.41).
A relação entre criminalização e propriedade aponta outro fator contrário aos movimentos populares: o capitalismo do Estado globalizado e neoliberal.
3.3 A democracia no plano econômico e os movimentos populares
Não é mais possível abordar democracia no plano moderno sem adentrar nas questões econômicas que circundam a atualidade, resultantes da transformação do modelo capitalista vivenciado em grande parte das civilizações, inclusive no Brasil; de forma que uma sociedade democrática é uma sociedade também menos socioeconomicamente desigual.
Como registra Delacampagne, as “democracias modernas não deveriam apenas se preocupar em proteger as ‘liberdades’, mas também em reduzir as ‘desigualdades’ sociais mais evidentes” (2001, p. 23).
A redução dessas desigualdades sociais tem se mostrado um nó conflituoso decorrente da interação entre a democracia e o capitalismo do mundo globalizado. Uma democracia que se projete enquanto governo da maioria, é sistema concebido exatamente para salvaguardar também o direito das minorias. As balizas democráticas se fincam nas pilastras da igualdade e da liberdade, impedido que a maioria dominante atropele infrene os que não lhe compactuam as ideias. Onde a minoria não é respeitada, não sobrevive a democracia. Conforme Delacampagne,“a ‘maioria’, pelo simples fato de que é ‘maioria’, goza da liberdade de impor, em qualquer circunstância, o seu ponto de vista à ‘minoria’? E a democracia não corre o risco de transformar-se, com o tempo, em tirania?” (2001, p. 20).
Bem por isso que a democracia se coloca como um sistema de mudança de posições, onde os segmentos sociais não podem permanecer engessados e o fluxo de rotatividade é a essência da alternância do poder vigente, propiciando um sistema de representatividade onde “o adversário não é mais um inimigo (que deve ser destruído), mas um opositor que amanhã poderá ocupar o nosso lugar” (BOBBIO, 2000, p. 39).
Mas numa estrutura social marcada pela globalização da economia, os efeitos das investidas do capital estrangeiro influem de forma abrasadora na oxigenação democrática de uma sociedade (OLIVEIRA, 2005). Se, tradicionalmente, a constituição de um sistema democrático se idealizou desde suas origens “da contradição entre a maioria da pólis e a minoria do poder econômico” (OLIVEIRA, 2005, p 18), agora a sociedade democrática, subtraída às decisões da maioria e rigorosamente privatizada pelo poder econômico, tem aquela contradição acentuada de forma inversamente proporcional (menos pólis, mais poder econômico), “de modo a sufocar a democracia e quase anular a política” (idem, ibidem.).
“A ameaça à democracia no Brasil não vem da falta de institucionalização, da permanente tutela das Forças Armadas que foi um longo pesadelo talvez afastado para sempre, de insurreições e rebeliões, de partidos e formações políticas autoritárias, à esquerda como à direita (...). Agora ela provém do núcleo mais duro do capitalismo globalizado com sua incoercível tendência a avassalar o Estado, a dilapidar as relações entre as classes, a tornar intransponível a desigualdade, retirando o terreno comum de interesses e aspirações capaz de construir a comunicação e o consenso pelo dissenso; no passado, muitas das crises e das impossibilidades da democracia no Brasil deveu-se à disputa de sentido e da hegemonia sobre o projeto nacional” (OLIVEIRA, 2005, p. 20).
Os Estados, em razão da carência de recursos financeiros e diante da mundialização da economia, passam a ter necessidade de atrair o poderio econômico estrangeiro para suas fronteiras, cedendo suas muralhas de garantias e direitos sociais ao cavalo de Tróia capitalista, obtendo como consequência a diminuição do número de empregos, a evasão dos lucros e a ausência de garantias para os investimentos (KURZ, 1995).
O resultado disso é um Estado de Mal-Estar, onde os segmentos sociais se encontram cada vez mais fixos, e a igualdade, entre os cidadãos, abissalmente distante. O sistema político democrático conhecido por seus três poderes, agora, caduca diante de dois processos em curso: a desterritorialização da política e a juridificação da mercadoria (OLIVEIRA, 2005). O primeiro irrompe dos organismos internacionais, tornados centros de decisões externos de políticas nacionais. O segundo é visto nas organizações empresariais, cujos regulamentos próprios desafiam até as “cartas cidadãs” e impõem ao Estado suas próprias regras e noções sobre direitos, sob pena de, em caso de intervenção estatal, demandarem uma “Fuga do Egito” (KURZ, 1995), levando consigo as promessas de desenvolvimento e progresso.
E a democracia? E sociedade? Estas para onde vão neste cenário apocalíptico? Francisco de Oliveira (2005, p. 18) responde:
“Não há mais sociedade, só há mercado. Este é a política e esta é o mercado. A pólis supõe uma forma, e o mercado é a não-forma. Ele é, por definição, a descartabilidade em ato, e antagônico, por isso, à institucionalização das formas. Sem o que não há política. E sem esta não há democracia. É do fundo do seu processo que o capital se coloca contra a democracia.”
E onde se inserem os movimentos populares nessas circunstâncias?
Ora, a desigualdade social decorrente da política de mercantilização predatória de um consumo globalizado às custas da precarização das relações sociais, laborais e solapamento de direitos sociais e individuais é o novo câncer que gangrena a mobilização popular e “impede a constituição de uma sociedade democrática” (CARVALHO, 2000, p. 229), estimulando que o cidadão seja “cada vez mais um consumidor, afastado de preocupações com a política e com os problemas coletivos” (CARVALHO, 2000, p. 226), reforçando, em última análise, uma despolitização provocada com escopo à “fragmentação e dispersão das classes populares (sob os efeitos da economia neoliberal sobre a divisão e organização sociais do trabalho)” (CHAUÍ, 2005, p. 30).
“Diante dessas mudanças, países como o Brasil se vêem frente a uma ironia. Tendo corrido atrás de uma noção e uma prática de cidadania geradas no Ocidente, e tendo conseguido alguns êxitos em sua busca, vêem-se diante de um cenário internacional que desafia essa noção e essa prática. Gera-se um sentimento de perplexidade e frustração. A pergunta a se fazer, então, é como enfrentar o novo desafio.”
4. NOVOS HORIZONTES DA DEMOCRACIA AOS MOVIMENTOS POPULARES
4.1 CiberDemocracia
A despeito da violência estatal com seus mecanismos criminalizantes e a repressão do capital neoliberal, os produtos do mundo moderno e o futuro não se mostram absolutamente nefastos às mobilizações populares quando o assunto é democracia.
Um dos reflexos mais discutidos da modernidade democrática é o impacto tecnológico nas esferas de poder, destacando-se então a área politica. A tecnologia, hoje, é uma condição de inclusão social do cidadão. Como assevera Aires José Rover, “podemos dizer que quem não estiver conectado a essa rede mundial fica fora da vida social, econômica, científica, que desenrola em tempo real através dos caminhos da Internet” (2004, p. 29).
O mundo informático trouxe à baila novas maneiras de reunião, conscientização e diálogo, as quais são apresentadas e absorvidas também pelos agentes políticos e cidadãos no diálogo entre a Administração Pública e seus administrados.
Em virtude disso, têm surgido movimentos populares que, munidos de ferramentas tecnológicas, vêm atuando na conjuntura política do Estado e reformulando a clássica concepção de participação cidadã. Fóruns, redes sociais, e-mails coletivos e outras mais ferramentas tecnológicas mostram, assim, uma capacidade integrativa novel sobre o corpo coletivo.
Essa evolução social tecnologicamente instrumentalizada deu ao Estado Democrático de Direito uma face mais próxima do indivíduo, numa socialização virtual que alguns convencionaram chamar de “Ciberdemocracia”. De acordo com as palavras de Pierre Levy (2003, p. 123-124):
“A ‘espantosa disponibilidade das informações, de toda a espécie, respeitantes à vida política, assim como o frequentar de fóruns de discussão civilizados e bem organizados, tornam o debate político cada vez mais ‘transparente’ e preparam uma nova era do diálogo político que conduz a democracia a um estágio superior: a ciberdemocracia’”.
A Ciberdemocracia não é vista como um novo Estado construído pelo povo munido de ferramentas tecnológicas, mas um novo comportamento daquele em relação a uma sociedade que, conectada ao espaço virtual das redes de internet, detém maior poder de fiscalização e proximidade com o administrador público, ganhando mecanismos participativos de representação que vencem as barreiras físicas espaciais.
Diante disso, estudiosos têm sugerido a importância de que a representação popular, por vezes atualmente atravancada por processos normativos estabelecidos numa época ainda não modernizada, adequem sua configuração e acompanhem a modernização tecnológica, permitindo que a sociedade moderna tenha a seu dispor cada vez mais meios modernos de intervir diretamente na construção sociopolítica de sua nação, numa participação popular ainda mais direta. A propósito, eis o escólio de Paulo Márcio da Cruz e José Francisco Chofre Sirvent (2006, p. 13):
“Atualmente é muito fácil organizar consultas rápidas à população sobre temas de interesse imediato e que requeiram um pronunciamento de relativa urgência. Plebiscitos e referendos não teriam porque serem casos excepcionais na vida social e política. Ao menos tecnologicamente já não há mais desculpas.”
O uso da internet e de suas redes sociais, desta maneira, tem mostrado uma inegável revolução cultural dos povos, os quais agora transpõem ao plano virtual suas diversas formas de participação e representatividade, reunindo grupos e formando passeatas por meio de grupos interconectados digitalmente, propondo projetos e elaborando petições virtuais, programando ações e fiscalizando gastos públicos e a conduta do administrador.
Exemplo da força tecnológica na movimentação política de uma sociedade foi a Primavera Árabe, uma série de protestos sociais que exigiam a derrubada de regimes ditatoriais em países árabes. Como afirma Pavlik (2011, p. 15):
“Esta história de sinergia entre as mídias sociais e a transparência online na Primavera Árabe continuou na Síria, na Líbia e em outros lugares na região. No Egito, as autoridades tentaram acabar com os distúrbios ao cortar o serviço da Internet. Ironicamente, esta ação poderá ter alimentado ainda mais a revolta, ao tornar os cidadãos mais raivosos.”
No Brasil, ilustrações dessa moderna representatividade têm sido frequentemente assistidas, tais como nos episódios do movimento “Ficha Limpa”, onde se pedia maior lisura dos agentes políticos e conduta ilibada para serem elegíveis, ou o movimento “Fora Renan”, que pediu a saída do cargo político do Senador Renan Calheiros. Por tudo isso, bem se vê a relevância dos espaços virtuais para um aprimoramento da representatividade popular, “criando um potencial de democratização no âmbito das relações sociais e políticas” (SCHERER-WARREN, 2008, p. 509).
4.2 A mídia na Democracia: amiga ou inimiga dos movimentos populares?
Com os avanços da tecnologia, o estado nunca teve tanto poder de inspeção e polícia sobre seus governados. Com espanto, salientava Bobbio (2000, p. 31):
“Nenhum déspota da antiguidade, nenhum monarca absoluto da idade moderna, apesar de cercados por mil espiões, jamais conseguiu ter sobre seus súditos todas as informações que o mais democrático dos governos atuais pode obter com o uso dos cérebros eletrônicos. A velha pergunta que percorre toda a história do pensamento político – “Quem custodia os custódios?” – hoje pode ser repetida com esta outra fórmula: “Quem controla os controladores?” Se não conseguir encontrar uma resposta adequada para esta pergunta, a democracia, como advento do governo visível, está perdida.”
Na democracia plena, o fluxo de informações entre representantes e representados deve ser uma via de mão dupla. Nesse sentido, uma relevante ferramenta de controle social do poder popular sobre seu governo é a imprensa. Segundo Jorge, “há muito que se diz que a imprensa são os olhos da sociedade: na verdade, ele incorpora uma missão e um papel”.
Porém, cumpre destacar a cautela com a qual deve ser vista o grau de influência do meio de comunicação no comportamento coletivo no plano da realidade. Isso porque é muito comum também que os meios midiáticos repercutam de forma negativa a influenciar a ação social, através de falsas notícias rapidamente propaladas pelos meios virtuais, incitando imotivadas reações sociais ou instigando a concretização de comportamentos os quais possuem a disfarçada natureza de atender vontades de grupos dominantes detentores ou modeladores dos meios de comunicação.
Trata-se de utilizar a sociedade como massa de manobra de estratagemas políticos fundados na vontade de indivíduos específicos e mascarados pela pseudovontade popular.
As consequências desse mau uso da tecnologia de comunicação é a ação social acéfala, inconsciente ou movida como uma marionete por cordas de interesses escusos de classes ou segmentos os quais não correspondem à vontade geram da sociedade a qual manejam. Como cita Bertrand (1999, p. 53) “inegavelmente, a mídia determina a ordem do dia da sociedade: ela não pode ditar às pessoas o que pensar, mas decide no que elas vão pensar”. Uma mídia tendenciosa a não apenas informar, mas a transmitir o que lhe é conveniente, torna-se um dos maiores problemas da democracia moderna, como salienta Paulo Bonavides (2001, p. 64):
“(...) trata-se aqui da mídia - esta, sim, a caixa preta da democracia, que precisa da ser aberta e examinada para percebermos quantos instrumentos ocultos, sob o pálio legitimante e intangível da liberdade de expressão, lá se colocam e utilizam para degradar a vontade popular, subtrair-lhe a eficácia de seu título de soberania, coagir a sociedade e o povo, inocular venenos sutis na consciência do cidadão, construir falsas lideranças com propaganda enganosa e ambígua, reprimir e sabotar com a indiferença e o silêncio dos meios de divulgação, tornados inacessíveis, a voz dos dissidentes e seu diálogo com a sociedade, manipular, sem limites e sem escrúpulos, a informação, numa aliança com o poder que transcende as raias da ética e tolher, enfim, a criação de uma opinião pública, livre e legítima, consciente e oxigenada pelos valores da justiça e da liberdade.”
Logo, uma sociedade que se pretende democrática deve ter a mídia como uma de suas ferramentas e fiscalização sobre os governantes, bem como tê-la como objeto de constante exame e aprimoramento, a fim de que o povo esteja sempre seguro acerca da idoneidade desse poderoso instrumento de comunicação e certo de que ele transmitirá a informação de maneira imparcial, construtiva, crítica, ética e voltada para atender os anseios da fiscalização popular.
Não há qualquer empeço para que a imprensa fique livre dos ditames do controle de um Estado Democrático. René Ariel Dotti (2009, p.11) já advertia em sua carta aberta ao Ministro Marco Aurélio, sobre o julgamento da ADPF n.º 130:
“(...) a insensata afirmação de que a liberdade de informação deve ficar à margem de controle de um Estado Democrático de Direito é um poderoso incentivo para a formação e o progresso de núcleos de terror no jornalismo marrom e a licença para os sicários da dignidade humana atentarem impunemente contra valores, bens e interesses fundamentais da sociedade e dos cidadãos como a paz pública, a defesa da privacidade e da honra e a proteção dos Direitos Humanos.”
Para o aperfeiçoamento de uma imprensa democrática, o povo pode, e deve, aquinhoar sua participação com igual interesse nas esferas política e de comunicação social - deve se inserir e construir tanto o projeto político que pretende ter como governo, quanto à mídia que deseja ter como veículo idôneo de informação e fiscalização social, pois “o termômetro que mede a democracia numa sociedade é o mesmo que mede a participação dos cidadãos na comunicação” (SOUZA apud GUARESCHI, 2002).
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Uivemos, disse o cão”. A epígrafe da obra “Ensaio sobre a lucidez”, do autor José Saramago, exprime a necessidade da irresignação, do protesto e da manifestação popular.
E a natureza popular está metaforicamente representada pelo cão. Sim, somos nós, cidadãos detentores exclusivos do poder soberano, os cães quando aceitamos que o Estado nos conduza para passear pelo caminho apontado por suas diretrizes políticas, mas que também nos satisfazem, principalmente, quando somos os cães-guias desse trajeto rumo à garantia de direitos. Negativamente, podemos ser os caninos pela docilidade passiva com a qual, infelizmente, muitas vezes lidamos diante de sistemas que não agradam a representatividade. Positivamente, somos os cães quando, não tolerando dadas situações, ferozmente abraçamos uma causa e uivamos pelos direitos.
Assim o foram os movimentos populares durante a história brasileira, aguerridamente combativos ao se verem acuados pelas restrições impostas ameaçadoras ao sucesso da democracia, mesmo que esta força, constantemente, tenha mostrado um apaziguamento frustrante quando as ações políticas tidas como nocivas se amenizavam.
Mas não se vive atualmente o luto da mobilização popular. Sobrevive a luta. É verdade que esta luta tem mostrado um perfil de “movimentação popular cardíaca” durante sua existência: relaxando quando as carências objetos de mobilizações são sumariamente resolvidas ou mitigadas pelo Estado (momento diástole); mas contraindo as forças populares e imprimindo a reação de um sujeito coletivo contra as violações à democracia (momento sístole).
É preciso apenas mudar essa crença de que a mobilização popular deve se apresentar somente nos períodos derradeiros da calamidade democrática. Mesmo porque a democracia, enquanto direito complexo e milenar, não se satisfaz pleno num único instante, ou numa saraivada de promessas políticas. Enquanto direito, a democracia tem sua plenitude no eterno porvir, de modo que seu aperfeiçoamento é uma constante a ser buscada e o povo é esse instrumento de busca.
Hodiernamente, novos desafios se rompem, e outros desafios mais conhecidos, modernizam-se, fazendo frente obstativa ao pleito popular, tais como a criminalização dos movimentos, as desigualdades sociais, etc. Porém, a história da luta das mobilizações brasileiras já demonstrou a capacidade constante de se reinventar, evoluir e se adaptar a contextos diversos.
É chegada a hora, contudo, de aprender definitivamente com esse histórico e absorver do eco do passado, as lições já “uivadas”, de que a democracia se faz hoje, amanhã e sempre, bastando um povo presente, o qual não pode recuar quando as mais densas trevas se dissolvem, mantendo-se vigilante, sempre em frente, para que também não retornem. Os movimentos populares vêm aprendendo que os uivos são o brado heroico e retumbante de um povo que, assim, reafirma-se como herói de sua democracia.
Formulamos, então, de forma sucinta, algumas conclusões decorrentes de tudo quanto foi exposto:
· A democracia no Brasil tem sido uma pauta de reivindicações ao longo de sua história nacional, avançando gradualmente com a política;
· Os movimentos populares têm se mobilizado para pleitear direitos referentes à democracia, sempre que o contexto sociopolítico se mostra intolerável a violações de direitos fundamentais;
· A noção de democracia foi, por muito tempo, confundida com a do poder de voto, embora tenha evoluído para abranger, atualmente, também o exercício da cidadania e a igualdade socioeconômica;
· Os movimentos populares têm apresentado momentos ora de grande propulsão na luta, ora de grande retração, conforme a carência do momento e a ação estatal, figurando como um vulcão adormecido;
· O direito penal e a economia mundial têm repercutido prejudicialmente às mobilizações populares, ajudando a retrair os movimentos e dissolver o sujeito coletivo;
· Os avanços da tecnologia têm mostrado novos espaços de discussão dos movimentos populares através do que ficou conhecido como “ciberdemocracia”;
· A mídia, por sua vez, não deve ser vista como inimiga, mas as manifestações populares devem ter como pauta também sua inserção na construção de uma imprensa livre e democrática;
· Os movimentos populares vêm aprendendo, como resultado de suas lutas à democracia, o importante papel que possuem para os avanços de direitos e a relevância de se manterem em constante mobilização e discussão política.
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[1] O “massacre de Anhatomirim” marcou a cidade de Nossa Senhora do Desterro, quando Floriano Peixoto governava o Brasil, contando, à época, com mais de duzentas pessoas sumariamente executadas. Meses depois do ocorrido, a cidade teria seu nome sarcasticamente mudado para Florianópolis – uma ode ao “mentor político dos verdugos dos ilhéus revolucionários” (VERA, 2011).
[2] Como disse um senador francês em 1919: “as mãos das mulheres foram feitas para serem beijadas e não para manusear uma lista de votos”. (CANÊDO, idem, p. 532).
[3] El Derecho Penal es subsidiario respecto de las demás posibilidades de regulación de los conflictos, es decir, sólo se debe recurrir a él cuando todos los demás instrumentos extrapenales fracasan”. (ROXIN, Claus; ARZT, Gunter; TIEDAMAN, Klaus. Introducción al Derecho Penal y al Derecho Penal Procesal. Barcelona: Ed. Ariel, 1989, p. 23.)
Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade Damásio. Mestre e Doutorando em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Servidor Público Federal. Professor de Processo Civil. Palestrante e advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, Lucas Correia de. Uivemos: um estudo sobre a democracia e a luta dos movimentos populares brasileiros pela democracia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 mar 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/49677/uivemos-um-estudo-sobre-a-democracia-e-a-luta-dos-movimentos-populares-brasileiros-pela-democracia. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: WALKER GONÇALVES
Por: Benigno Núñez Novo
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Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
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