Introdução
Trata-se da análise da recente decisão da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça – STJ que, no julgamento do recurso especial nº 1.640.084, descriminalizou o crime de desacato, bem como os reflexos dessa decisão (na 6ª Turma do STJ e no TRF da 5ª) no direito penal como um todo, tomada com fundamento no instituto jurídico do controle de convencionalidade das leis.
1. Do Desacato:
Insta frisar que, localizado no capítulo II do título XI da parte especial do código penal, sob a denominação “Dos Crimes Praticados por Particular Contra a Administração em Geral”, o artigo 331 descreve o crime de desacato. Eis o seu teor: “Art. 331 - Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela: Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa”.
Conforme a doutrina, o crime de desacato pode ser classificado como crime simples, comum, de concurso eventual, de ação livre, comissivo ou omissivo, de mera conduta, instantâneo e doloso.
Cite-se, o desacato não se confunde com o crime de injúria, pois esse é realizado fora da presença do funcionário público, enquanto aquele pressupõe que a ofensa seja proferida em sua presença. Por essa razão, enquanto os crimes contra a honra do funcionário público, em razão do exercício de suas funções, são de ação privada ou, alternativamente, de ação pública condicionada à representação, segundo o enunciado da súmula 714 do STF, o crime de desacato se processa sempre mediante ação pública incondicionada.
Isto porque, a razão de ser da ação pública incondicionada no crime de desacato se dá pelo fato de que o sujeito passivo primário do crime é o estado, diferentemente do que ocorre no crime de injúria, em que o é o próprio funcionário público - no crime de desacato, esse é o sujeito passivo secundário.
Conforme Cléber Masson:
“Todo funcionário público, do mais humilde ao mais graduado, representa o Estado, agindo em seu nome e em seu benefício, buscando sempre a consecução do interesse público. Consequentemente, no exercício legítimo do seu cargo, o agente público deve estar protegido contra investidas violentas ou ameaçadoras. [...] O bem jurídico penalmente protegido é a Administração Pública, especialmente no tocante ao desempenho normal, à dignidade e ao prestígio da função exercida em nome ou por delegação do Estado. Secundariamente, também se resguarda a honra do funcionário público.” MASSON, Cléber. Direito penal esquematizado, vol. 3: parte especial, arts. 213 a 359-H/Cleber Masson - 6. ed. rev. atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2016.
Assim, não pode a tutela do bem jurídico principal, que é a própria administração pública, estar sujeita à vontade do funcionário. Fica clara a intenção do legislador de preservar a autoridade das manifestações estatais, exercida dentro da legalidade, das ofensas porventura perpetradas por um particular.
2. Da decisão do STJ e a reverberação do tema.
Recentemente, em 15 de dezembro de 2016, o STJ decidiu, em recurso especial, que o crime de desacato não pode mais ser considerado crime. Tal decisão foi tomada, conforme já parcialmente exposto, com fundamento no controle de convencionalidade do artigo 131 do código penal em relação à Convenção Americana de Direitos Humanos – CADH (Pacto de São José da Costa Rica). No relatório, o Ministro Ribeiro Dantas, relator, resume:
"o processo em tela apura suposta prática de crime de desacato pelo recorrente (art 331 do Código Penal), crime que não existe mais em nosso ordenamento jurídico. É que a Relatoria para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos firmou entendimento de que as normas de direito interno que tipificam o crime de desacato são incompatíveis com o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos."
Perceba que, a defesa do réu, representada pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, requereu a absolvição do mesmo, com relação ao crime de desacato, com base no artigo 13 do Pacto de São José da Costa Rica, que estabelece a proibição de atos e legislações que atentarem contra o direito à liberdade de pensamento e expressão. Eis o seu texto:
Artigo 13 - Liberdade de pensamento e de expressão:
1. Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha.
2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito à censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para assegurar:
a) o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas;
b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.
3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias e meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões.
4. A lei pode submeter os espetáculos públicos a censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2.
5. A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência.
Na origem, o TJSP se manifestou no sentido de que “o Tratado não é incompatível com o crime de desacato, pois a garantia da liberdade de expressão e pensamento não autoriza ofensa gratuita dirigida a servidores públicos”; alegando ainda que “a previsão do delito de desacato insere-se em hipótese de responsabilidade ulterior pela ocorrência das violações mencionadas no item 2 do art. 13 da Convenção”, não tendo acolhido a pretensão da defesa. Já no STJ, o Relator Ministro Ribeiro Dantas discordou dessa tese, nos seguintes termos:
“O art. 2º, c/c o art. 29, da Convenção Americana de Direitos Humanos prevê a adoção, pelos Estados Partes, de ‘medidas legislativas ou de outra natureza’, visando à solução de antinomias normativas que possam suprimir ou limitar o efetivo exercício de direitos e liberdades fundamentais: [...] Artigo 29. Normas de interpretação. Nenhuma disposição desta Convenção pode ser interpretada no sentido de: a. permitir a qualquer dos Estados Partes, grupo ou pessoa, suprimir o gozo e exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los em maior medida do que a nela prevista [...]”.
Por outro lado, o parecer da Subprocuradoria-Geral da República foi pelo provimento da alegação defensiva do recurso especial, sob os seguintes argumentos:
“[...] A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) já se pronunciou no sentido de que a criminalização do desacato contraria a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). [...] Na colisão entre normas de direito interno e previsões da CADH, as regras de interpretação nela previstas (art. 29) determinam a prevalência da norma do tratado. [...] O Supremo Tribunal Federal já firmou entendimento de que os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo país e incorporados ao direito interno na forma do artigo 5º, § 2º, da Constituição brasileira, têm natureza supralegal (RE n. 466.343). [...] Resta inviabilizada a condenação por desacato com fundamento em norma interna incompatível com Tratado Internacional de Direitos Humanos (norma supralegal), do qual o Brasil é signatário”.
No STJ, eis o entendimento do Ministro Relator sobre o mérito da alegação de descriminalização do desacato com base na Convenção Americana de Direitos Humanos – CADH (Pacto de São José da Costa Rica):
“A Comissão Interamericana de Direitos Humanos - CIDH já se manifestou no sentido de que as leis de desacato se prestam ao abuso, como meio para silenciar ideias e opiniões consideradas incômodas pelo establishment, bem assim proporcionam maior nível de proteção aos agentes do Estado do que aos particulares, em contravenção aos princípios democrático e igualitário. [...] A adesão ao Pacto de São José significa a transposição, para a ordem jurídica interna, de critérios recíprocos de interpretação, sob pena de negação da universalidade dos valores insertos nos direitos fundamentais internacionalmente reconhecidos. Assim, o método hermenêutico mais adequado à concretização da liberdade de expressão reside no postulado pro homine, composto de dois princípios de proteção de direitos: a dignidade da pessoa humana e a prevalência dos direitos humanos. [...] A criminalização do desacato está na contramão do humanismo, porque ressalta a preponderância do Estado - personificado em seus agentes - sobre o indivíduo. [...] A existência de tal normativo em nosso ordenamento jurídico é anacrônica, pois traduz desigualdade entre funcionários e particulares, o que é inaceitável no Estado Democrático de Direito. [...] Punir o uso de linguagem e atitudes ofensivas contra agentes estatais é medida capaz de fazer com que as pessoas se abstenham de usufruir do direito à liberdade de expressão, por temor de sanções penais, sendo esta uma das razões pelas quais a CIDH estabeleceu a recomendação de que os países aderentes ao Pacto de São Paulo abolissem suas respectivas leis de desacato. [...] O afastamento da tipificação criminal do desacato não impede a responsabilidade ulterior, civil ou até mesmo de outra figura típica penal (calúnia, injúria, difamação etc.), pela ocorrência de abuso na expressão verbal ou gestual utilizada perante o funcionário público”.
Além disso, abordando a distinção na relação funcionário público – particular estabelecida pelo conteúdo dos tipos penais definidos como desacato, o Ministro Ribeiro Dantas acrescenta que a Convenção Interamericana de Direitos Humanos – CIDH, em seu 108º período ordinário de sessões, realizado de 16 a 27/10/2000, aprovou a Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão, que afirma no princípio 11:
“Os funcionários públicos estão sujeitos a um maior controle por parte da sociedade. As leis que punem a manifestação ofensiva dirigida a funcionários públicos, geralmente conhecidas como 'leis de desacato', atentam contra a liberdade de expressão e o direito à informação."
O Relator chama a atenção, ainda, dentre as justificativas da elaboração de tal princípio 11, as seguintes:
“[...] Essa distinção inverte diretamente o princípio fundamental de um sistema democrático, que faz com que o governo seja objeto de controles, entre eles, o escrutínio da cidadania, para prevenir ou controlar o abuso de seu poder coativo. [...] Juntamente com as restrições diretas, as leis de desacato restringem indiretamente a liberdade de expressão, porque carregam consigo a ameaça do cárcere ou multas para aqueles que insultem ou ofendam um funcionário público. [...] Nesse contexto, a distinção entre a pessoa privada e a pública torna-se indispensável. A proteção outorgada a funcionários públicos pelas denominadas leis de desacato atenta abertamente contra esses princípios. Essas leis invertem diretamente os parâmetros de uma sociedade democrática, na qual os funcionários públicos devem estar sujeitos a um maior escrutínio por parte da sociedade. [...]”
Quanto ao entendimento reverberado do STJ, vê-se que o TRF5 adotou integralmente:
PROCESSUAL PENAL E PENAL. Recurso do acusado ante sentença que o condena pela prática do crime de desacato e resistência, tendo por vítimas A situação factual vivida nos autos evidencia a presença de ofensas a patrulheiros rodoviários federais, no exercício de suas funções, além de resistir ao atendimento de exibição de documentos pessoais, cometendo, desta forma, os crimes de desacato e de resistência, desenhados no art. 331 e 329, ambos do Código Penal. O douto do eminente relator buscou amparo em decisão emanada do Superior Tribunal de Justiça, precisamente no Resp 1640084-SP, da relatoria do Min. Ribeiro Dantas, julgado em 15 de dezembro de 2016, para afastar, com fulcro no Pacto de São José da Costa Rica, o caráter delituoso da conduta. Pedem-se as mais respeitosas vênia para discordar, vendo-se, como se vê, a diferença entre o desacato e o direito de liberdade de manifestação. A ementa do julgado referido, inclusive, menciona as ideias e opiniões consideradas incômodas pelo establishment, que, evidentemente, não se confundem com ofensas. Uma coisa é defender ideias e opiniões que vão de encontro a um regime ou a uma política adotada acerca de disso ou daquilo. Outra coisa é ofender, é ridicularizar o servidor público em suas atribuições, chegando, inclusive, a atingir um deles, fisicamente, com um chute, recusando-se a entregar seus documentos pessoais, no que, no aspecto, incide no delito de resistência. Não se enxerga, desta forma, como os fatos deixaram de ser delitos, e, no aspecto, agregam-se a este voto os fundamentos do voto oral prolatado pelo des. Paulo Roberto de Oliveira, durante o julgamento, pelo que dele emana, em torno da distinção entre ofensas e defesa de ideias e de opiniões. Improvimento ao recurso, para manter a condenação, nos termos alojados na douta sentença. (TRF 5ª R.; ACR 0003751-68.2011.4.05.8201; PB; Segunda Turma; Rel. Juiz Fed. Conv. Ivan Lira de Carvalho; DEJF 06/03/2017; Pág. 34)
Além disso, o STJ através da 6ª Turma voltou a se posicionar sobre o tema:
PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS ASSESTADO CONTRA ACÓRDÃO DE APELAÇÃO. DESCABIMENTO. AUSÊNCIA DE FLAGRANTE ILEGALIDADE. QUESTÃO NÃO SUSCITADA PELA DEFESA NAS RAZÕES DE APELAÇÃO NÃO OBRIGA O COLEGIADO A SE MANIFESTAR NO PARTICULAR. DESACATO. INSUBSISTÊNCIA DIANTE DA CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA). JULGAMENTO ISOLADO DESTE SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. INDEFERIMENTO LIMINAR DA PRESENTE IMPETRAÇÃO. 1. Em regra, não é cabível habeas corpus contra acórdão de apelação, como se fosse o STJ uma terceira instância revisora e como se a impetração fizesse as vezes de uma segunda apelação (apelação da apelação). 2. Ausência de flagrante ilegalidade no caso concreto, dado que não está o Tribunal de Justiça obrigado a se manifestar sobre matéria que não foi suscitada pela defesa em suas razões. 3. A insubsistência do crime de desacato frente à Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) foi nesta Corte sufragada em julgamento isolado, de um dos seus órgãos julgadores, não havendo, ainda, consenso sobre a questão, tampouco é essa a "voz" do Superior Tribunal de Justiça. 4. Indeferimento liminar da presente impetração. (STJ; HC 386.771; Proc. 2017/0018907-1; SC; Sexta Turma; Relª Minª Maria Thereza Assis Moura; DJE 06/02/2017)
DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. ROUBO, DESACATO E RESISTÊNCIA. APELAÇÃO CRIMINAL. EFEITO DEVOLUTIVO AMPLO. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. NÃO OCORRÊNCIA. ROUBO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. DESCLASSIFICAÇÃO DO CRIME DE ROUBO PARA O DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. SÚMULA Nº 284/STF. TEMA NÃO PREQUESTIONADO. SÚMULAS NºS 282 E 356 DO STF. DESACATO. INCOMPATIBILIDADE DO TIPO PENAL COM A CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE. 1. Uma vez interposto o recurso de apelação, o Tribunal, respeitando o contraditório, poderá enfrentar todas as questões suscitadas, ainda que não decididas na primeira instância, desde que relacionadas ao objeto litigioso recursal, bem como apreciar fundamentos não acolhidos pelo juiz (arts. 10 e 1.013, §§ 1º e 2º, do Código de Processo Civil, c/c art. 3º do Código de Processo Penal). 2. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça afasta a aplicabilidade do princípio da insignificância em crimes cometidos mediante o uso de violência ou grave ameaça, como o roubo. 3. O pleito de desclassificação do crime de roubo para o de constrangimento ilegal carece da indicação do dispositivo legal considerado malferido e das razões que poderiam fundamentar o pedido, devendo-se aplicar o veto da Súmula nº 284/STF. Além disso, o tema não foi objeto de apreciação pelo Tribunal de origem, nem a parte interessada opôs embargos de declaração para suprir tal omissão, o que atrai o óbice das Súmulas nºs 282 e 356 do STF. 4. O art. 2º, c/c o art. 29, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) prevê a adoção, pelos Estados Partes, de "medidas legislativas ou de outra natureza" visando à solução de antinomias normativas que possam suprimir ou limitar o efetivo exercício de direitos e liberdades fundamentais. 5. Na sessão de 4/2/2009, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar, pelo rito do art. 543-C do CPC/1973, o Recurso Especial 914.253/SP, de relatoria do Ministro LUIZ FUX, adotou o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário 466.343/SP, no sentido de que os tratados de direitos humanos, ratificados pelo país, têm força supralegal, "o que significa dizer que toda Lei antagônica às normas emanadas de tratados internacionais sobre direitos humanos é destituída de validade. " 6. Decidiu-se, no precedente repetitivo, que, "no plano material, as regras provindas da Convenção Americana de Direitos Humanos, em relação às normas internas, são ampliativas do exercício do direito fundamental à liberdade, razão pela qual paralisam a eficácia normativa da regra interna em sentido contrário, haja vista que não se trata aqui de revogação, mas de invalidade. " 7. A adequação das normas legais aos tratados e convenções internacionais adotados pelo Direito Pátrio configura controle de constitucionalidade, o qual, no caso concreto, por não se cuidar de convenção votada sob regime de Emenda Constitucional, não invade a seara do controle de constitucionalidade e pode ser feito de forma difusa, até mesmo em sede de Recurso Especial. 8. Nesse particular, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, quando do julgamento do caso Almonacid Arellano y otros V. Chile, passou a exigir que o Poder Judiciário de cada Estado Parte do Pacto de São José da Costa Rica exerça o controle de convencionalidade das normas jurídicas internas que aplica aos casos concretos. 9. Por conseguinte, a ausência de Lei veiculadora de abolitio criminis não inibe a atuação do Poder Judiciário na verificação da inconformidade do art. 331 do Código Penal, que prevê a figura típica do desacato, com o art. 13 do Pacto de São José da Costa Rica, que estipula mecanismos de proteção à liberdade de pensamento e de expressão. 10. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos. CIDH já se manifestou no sentido de que as Leis de desacato se prestam ao abuso, como meio para silenciar ideias e opiniões consideradas incômodas pelo establishment, bem assim proporcionam maior nível de proteção aos agentes do Estado do que aos particulares, em contravenção aos princípios democrático e igualitário. 11. A adesão ao Pacto de São José significa a transposição, para a ordem jurídica interna, de critérios recíprocos de interpretação, sob pena de negação da universalidade dos valores insertos nos direitos fundamentais internacionalmente reconhecidos. Assim, o método hermenêutico mais adequado à concretização da liberdade de expressão reside no postulado pro homine, composto de dois princípios de proteção de direitos: a dignidade da pessoa humana e a prevalência dos direitos humanos. 12. A criminalização do desacato está na contramão do humanismo, porque ressalta a preponderância do Estado. Personificado em seus agentes. Sobre o indivíduo. 13. A existência de tal normativo em nosso ordenamento jurídico é anacrônica, pois traduz desigualdade entre funcionários e particulares, o que é inaceitável no Estado Democrático de Direito. 14. Punir o uso de linguagem e atitudes ofensivas contra agentes estatais é medida capaz de fazer com que as pessoas se abstenham de usufruir do direito à liberdade de expressão, por temor de sanções penais, sendo esta uma das razões pelas quais a CIDH estabeleceu a recomendação de que os países aderentes ao Pacto de São Paulo abolissem suas respectivas Leis de desacato. 15. O afastamento da tipificação criminal do desacato não impede a responsabilidade ulterior, civil ou até mesmo de outra figura típica penal (calúnia, injúria, difamação etc. ), pela ocorrência de abuso na expressão verbal ou gestual utilizada perante o funcionário público. 16. Recurso especial conhecido em parte, e nessa extensão, parcialmente provido para afastar a condenação do recorrente pelo crime de desacato (art. 331 do CP). (STJ; REsp 1.640.084; Proc. 2016/0032106-0; SP; Quinta Turma; Rel. Min. Ribeiro Dantas; DJE 01/02/2017)
3. Conclusão
Fato é que o tipo penal de desacato ainda se encontra em plena vigência, pois no Poder Judiciário apenas o STF pode retirar do ordenamento jurídico tipos penais de forma definitiva e erga omnes, através do controle abstrato de constitucionalidade.
Isto é, torna-se possível que os delegados de polícia continuem lavrando autos de prisão, os promotores de justiça denunciando e os juízes julgando.
Não obstante, a decisão serviu de premissa para juízes e demais tribunais inferiores, como demonstrando a adoção da tese pela 6ª Turma do STJ e pelo TRF 5ª.
Referências
GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito penal esquematizado: parte especial – 6. ed. – São Paulo : Saraiva, 2016.
MAZZUOLI, Valério. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 2ª ed. v.4. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
NOTAS:
RE 1.640.084 – SP, rel. Min. Ribeiro Dantas, 15.12.2016 (2016/0032106-0).
Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Pós Graduado em Direito Civil pela UNIDERP/LFG. Pós Graduando em Direito Processual Tributário pela UNIDERP/LFG. Assessor Técnico Judiciário em Gabinete de Desembargador do Tribunal de Justiça de Pernambuco. <br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DUQUE, Felipe Viana de Araujo. Do desacato - "descriminalização" pela 5ª Turma do STJ e adoção do entendimento pela 6ª Turma e pelo TRF da 5ª Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 mar 2017, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/49716/do-desacato-quot-descriminalizacao-quot-pela-5a-turma-do-stj-e-adocao-do-entendimento-pela-6a-turma-e-pelo-trf-da-5a. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: LUIZ ANTONIO DE SOUZA SARAIVA
Por: Thiago Filipe Consolação
Por: Michel Lima Sleiman Amud
Por: Helena Vaz de Figueiredo
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